Mais zetética, menos dogmática. A Hermenêutica como pressuposto para uma melhor formação dos alunos

Ícaro de Souza Duarte
acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)

Resumo: Perceber a importância da hermenêutica jurídica na formação acadêmica dos estudantes de Direito é o objetivo deste artigo; visto que esses graduandos são, atualmente, extremamente dogmáticos (e quase nada zetéticos) e pragmáticos. Portanto há a necessidade de se aprofundar no conhecimento da hermenêutica jurídica como pressuposto para a preparação e formação dos alunos para que estes logrem sucesso intelectual e conseqüentemente financeiro na vida, quer como advogado, promotor, procurador ou juiz, e principalmente que um estudo aprofundado em hermenêutica faça com que os alunos entendam de forma reflexiva e não mecânica as relações sociais, que se tornaram complexas por demais na sociedade contemporânea. Relações estas que são prescindíveis pelos estudantes de Direito, mas que na realidade são essenciais para uma maior interpretação e compreensão das normas jurídicas, e por dedução, uma aplicação mais coerente e justa destas normas, ou seja, a lei. É, portanto, este artigo escrito de forma a ilustrar de maneira clara que os estudantes de Direito caminham por vias que levarão ao pragmatismo total, sem compreensão racional da lei e do mundo, ou seja, relações sociais que os cercam e determinam de que maneira dever-se-á aplicar as leis.

Palavras-chave: Hermenêutica jurídica, dogmática, zetética.

1. Introdução

Primeiramente, para uma melhor compreensão do artigo, deve-se definir o que seria zetética e o que seria dogmática. Pois bem, zetética vem de zetein e significa perquirir, ter dúvida e dogmática vem de dokein e significa doutrinar, ensinar. Assim sabido, vê-se que os estudantes do curso de Direito são poucos zetéticos e por demais dogmáticos. Por isso o artigo começa com uma analogia entre essa concepção pragmática dos alunos e o mito da caverna de Platão, que denotará o quanto estes alunos preferem as sombras.

Em seguida, desenvolve-se o artigo numa perspectiva de que entender o contexto social contemporâneo, usando-se a hermenêutica, faz com que se torne mais racional o entendimento, interpretação e a aplicação das normas jurídicas, dando, assim, papel preponderante à hermenêutica jurídica no caminho que leva ao entendimento das normas jurídicas.

A concepção mecânica, ou seja, dogmática dos alunos, que não querem refletir, mas apenas serem doutrinados de forma simples e prática, tem conseqüências vergonhosas, que é o alto número de reprovação de bacharéis em Direito em concursos da OAB, concursos para juiz, promotor, enfim, carreiras jurídicas; tudo isso devida incorreta interpretação.

O último ponto discutido no artigo é em relação ao papel e posição social dos juízes, que têm pelo povo a imagem da arbitrariedade, mas que adquirem essa imagem pelo fato de não adequar as relações sociais às normas e sim o contrário. Nesse ponto será importante o esclarecimento de que a utilização de conceitos não-jurídicos, que seria a hermenêutica, para entendimento de normas é muito importante para que o juiz tome decisões mais “justas” e aparentemente menos arbitrária.

2. Mito da Caverna e Pragmatismo dos alunos de Direito

Se os alunos de Direito pudessem apenas aprender as leis e aplicá-las, ou seja, serem meros repetidores e operadores mecânicos das normas jurídicas sem precisarem aprender sobre as características da sociedade, na qual indivíduos estarão em conflitos e estes alunos resolverão, para eles seria ótimo. Mas isso seria como se estes alunos estivessem presos aos grilhões dos pés ao pescoço e dentro da caverna de Platão, vendo apenas as sombras; eles não querem discutir o direito de outra forma, ou seja, de forma reflexiva, que gere dúvidas e discussões, não querem enxergar a luz, a realidade e sim os objetos refletidos em sombras.

Esses estudantes repudiam a opção de se libertarem dos grilhões e através de conceitos ajurídicos, como a hermenêutica jurídica, alcançarem o pleno entendimento, compreensão, interpretação e aplicação das leis, de acordo com o contexto social contemporâneos. Portanto, não querem alcançar a luz, pois exigiria um esforço intelectual maior. Preferem, assim, se conformarem com a praticidade de serem meros repetidores de normas. Além disso, acham errado quem busca a “luz”, a “realidade” do direito e se pudessem tirariam de cena os “livres”, como leciona o grande filósofo Platão (2004, p. 212):

-E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?

– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.

É tão alto o nível de pragmatismo dos alunos de Direito que quando estes tentam aprender em um livro mais zetético, ou seja, mais reflexivo, acham graça do autor, rim dele, como se ele fosse doido, ou estivesse errado, como se esse autor mais reflexivo falasse apenas baboseiras sem importância prática para estes alunos, que estando nas sombras, têm como paradigma de ser o certo. É preciso, antes de criticarem um autor e um livro mais reflexivo, que esses alunos dogmáticos se perguntem, se questionem se na verdade são os alunos que estão nas sombras e não querem passar para a luz ou se estão na luz e não querem retornar para as trevas. É imprescindível descobrir onde se está antes de rir do livro ou do autor que seja diferente de seus paradigmas. Quanto a essa questão, finaliza com excelência essa analogia o ilustre Platão (2004, p. 213):

– Mas quem fosse inteligente – redargüi – lembrar-se-ia de que as perturbações visuais são duplas, e por dupla causa, da passagem da luz à sombra, e da sombra à luz. Se compreendesse que o mesmo se passa com a alma, quando visse alguma perturbada e incapaz de ver, não riria sem razão, mas reparava se ela não estaria antes ofuscada por falta de hábito, por vir de uma vida mais luminosa, ou se, por vir de uma maior ignorância a uma luz mais brilhante, não estaria deslumbrada por reflexos demasiadamente refulgentes; à primeira, deveria felicitar pelas suas condições e pelo seu gênero de vida; da segunda, ter compaixão e, se quisesse troçar dela, seria menos risível essa zombaria do que se aplicasse àquela que descia do mundo luminoso.

– Falas com exatidão – afirmou

– Temos então – continuei – de pensar o seguinte sobre esta matéria, se é verdade o que dissemos: a educação não é o que alguns apregoam que ela é. Dizem eles que arranjam a introduzir ciência numa alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista em olhos cegos.

3. Sociedade contemporânea: Hermenêutica fundamental para entendimento de normas

A hermenêutica jurídica é o caminho para a libertação do método extraordinariamente dogmático de interpretação de normas e sua aplicação utilizado pelos graduandos em Direito. O ponto de vista zetético de interpretação das normas leva em consideração, ou seja, a hermenêutica jurídica sob a técnica da interpretação, leva em consideração a realidade da sociedade contemporânea, que é quem vai estar em conflito. Destarte, os conflitos na sociedade atual são altamente complexos, pois estão em jogo interesses e valores de uma sociedade que se tornou pluralista.

Para se obter sucesso nesse desafio, é preciso se libertar dessa metodologia de aprendizagem do Direito estritamente formalista e incorporar no seu processo de aplicação de normas conceitos ajurídicos, como a hermenêutica. Portanto, é preciso se libertar dos grilhões dogmáticos da ordem jurídica positivada.

A libertação do pragmatismo, do dogmatismo exagerado, significa que o estudante de Direito perceberá a necessidade de adequar para a norma a realidade social que o envolve, e não o contrário. Mas, uma interpretação através de técnicas só dogmáticas não leva o estudante àquela forma acima de interpretação, ou seja, interpretação das normas sem questionamento não se leva em consideração os valores existentes entre o fato e a lei. A hermenêutica vem justamente para romper com esses pressupostos metodológicos e dar uma ênfase significativa para as questões valorativas da atual e complexa sociedade no que diz respeito na relação entre fato e lei.

Assim sendo, o que deve fazer o intérprete é descobrir quais são os valores protegidos no texto que traduz o comando legal, explorando as possibilidades gramaticais, bem como o que pode haver nas entrelinhas, conhecendo bem, primeiramente, a lei antes de aplicá-la ao caso concreto. É por isso que clama a hermenêutica, por mais zetética, menos dogmática, para que os alunos de Direito deixem de ser meros operadores do Direito e se tornem efetivamente entendedores das normas e assim possam aplicá-las de forma mais coerente e justa a um conflito que espera por decidibilidade.

O sentido do mais zetético, menos dogmático é no sentido de que os alunos abram espaço em seu aprendizado para livros que os levem a raciocinar, a pensar nas situações sociais aonde cada assunto, cada norma, cada conceito irá se encaixar. A concepção de aprendizagem de forma zetética é no sentido de que quando aparecer um livro que pareça ser difícil, muito reflexivo, o aluno deve desafiar a si mesmo e tentar aprender tudo que há no livro; até porque a complexidade das relações na sociedade contemporânea exige que o aluno se aprofunde nesse tipo de leitura e não faça o contrário, que é fugir.

A busca por livros e autores mais práticos por parte dos alunos de Direito é um vício trazido da época do ensino fundamental é médio, onde a metodologia de ensino é direcionada no sentido de aprovação do aluno no vestibular, este por sua vez exige que os alunos tenham seu conhecimento sintetizado de forma prática e através de “macetes”. Dessa forma, quando passam no vestibular, trazem consigo uma concepção formalista de conceito e praticidade. Mas, também, os próprios professores são assim e lecionam de forma a passarem conceitos práticos para os alunos passarem em concursos, como se o curso de direito tivesse se transformado em um cursinho pré-concurso para juiz e promotor. É por isso que quando aparecer um professor ou um autor que seja mais zetético, ou seja, que utilize a hermenêutica sob o ponto de vista zetético para uma melhor formação dos alunos, que estes não joguem fora essa oportunidade e se aprofundem o máximo que puderem no livro, para não se tornarem no futuro apenas tecnólogos das leis.

4. Muita dogmática, pouca zetética como causa fundamental para baixo índice de aprovação em concursos e exame da OAB

A simples assimilação de conceitos, sem um momento para refletir, de raciocinar durante todo o período acadêmico, acaba que por prejudicar a capacidade de compreensão e interpretação dos alunos. E a prova prática dessa deficiência interpretativa dos alunos é o pífio índice de aprovação desses em concursos de carreira jurídica. Além da vergonha de que menos de 50% desses alunos são aprovados no exame da OAB, que é o que dá a legitimidade para que o bacharel em Direito exerça a profissão de advogado e que segundo o bom senso, exige que pelo menos, sejam aprovados de 75 a 80%, no mínimo.

Esse baixíssimo índice de aprovação nesses exames se dá, em grande parte, à dificuldade que os alunos têm de interpretar e responder às questões. Dificuldade essa, que vai ser a mesma para interpretar as normas e aplicá-las ao caso concreto. Tudo isso retoma a discussão sobre a forma pragmática com a qual os alunos aprendem durante o período acadêmico. E é aí, novamente, que se volta a perceber o quanto é importante uma nova forma de aprender o direito, que é se utilizando do enfoque zetético da hermenêutica jurídica para uma melhor formação dos alunos e que no futuro não volte a ter resultados tão vergonhosos nesses concursos. Portanto, que se esteja em convivência com a realidade social.

5. Hermenêutica como pressuposto para juízes entenderem seu papel na sociedade.

De forma bastante pragmática pode-se conceituar que o papel social do juiz é assegurar a justiça na sociedade democrática e pluralista da contemporaneidade. Mas não é a dogmática o preponderante no objetivo desse artigo, e sim a zetética. E a questão é como os juízes vão assegurar a tão desejada justiça. Primeiro, é preciso, como explanado anteriormente, que o juiz se liberte da mecanicidade e parta para a utilização da hermenêutica jurídica para entender as normas.

Com a utilização da hermenêutica jurídica como método de entendimento de normas, numa dialética com a sociedade contemporânea, o juiz como “boca da lei”, deixa de ficar dependente de um modelo rígido de interpretação, ou seja, o juiz não mais aplicará mecanicamente conceitos dogmáticos, sem relação com a realidade social. Buscar-se-ia uma maior racionalidade na interpretação dos fenômenos jurídicos e aplicação da norma. Entende-se por racionalidade a utilização da razão para a formação do conhecimento, e esta razão é utilizada a partir de fatos. Portanto, não há como fugir das atuais e complexas relações sociais. Francesco Ferrara em seu Tratado de Direito Civil define muito bem o papel do juiz (1921, cap III):

O juiz é o intermediário entre a norma e a vida: é o instrumento vivo que transforma a regulamentação típica imposta pelo legislador na regulamentação individual das relações dos particulares; que traduz o comando abstrato da lei no comando concreto entre as partes, formulado na sentença. O juiz é a viva vox iuris.

Infere-se então, depois destas exposições, que o juiz é fundamental porque ele pondera e pesa a carga valorativa que possui uma lide, por isso, não pode aplicar a lei de forma mecânica, pois se assim fosse, uma máquina faria o papel de aplicar a lei. Mas o juiz é dotado de razão e sensibilidade para perceber o mundo de circunstâncias que cercam um conflito concreto e assim pode decidir de uma forma mais justa.

6. Conclusão

Do acima exposto tem-se que a hermenêutica jurídica refere-se a todo um processo de interpretação e aplicação da lei que implica na compreensão do fenômeno que requer solução. E o que esse artigo explanou é justamente isso, que se abra espaço para uma interpretação com boa carga de zetética, e que não se abandone a dogmática, mas que se alie as duas, pois é necessário que se resolva os conflitos.

Seria interessante que os estudantes de Direito percebessem a importância que tem a utilização da hermenêutica jurídica como método de interpretação, pois a sociedade contemporânea exige isso. As conseqüências são benéficas para o aluno e para a sociedade, que se sentirá mais segura. Assim, finaliza-se com uma frase de Vicente de Paulo Barreto da faculdade de Direito da UERJ: “constatamos que a nova realidade social, política e institucional da pós-modernidade fez nascer não somente um novo sistema jurídico, mas principalmente um sistema que exige para sua própria eficácia um novo método de leitura das normas”. E assim justifica-se o título deste artigo.

Referência Bibliográfica

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao Estudo do Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: renovar, 2001. 328p.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: Técnica, decisão, dominação. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2003. 370p.

FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica Jurídica. 6 ed. São Paulo: Saraiva, set. 1997. 183p.

PLATÂO. A República. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004. 320p.

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