Autoras: Camila Marques e Mariana Rielli (*)
Nos últimos meses, o Superior Tribunal de Justiça tem se dividido em torno de um debate essencial para a liberdade de expressão em uma sociedade democrática: o status do crime de desacato no ordenamento jurídico.
No dia 24 de maio, a 3ª Seção do STJ, composta pelas 5ª e 6ª turmas do tribunal, firmou entendimento sobre a manutenção e aplicação do crime, com o fim de uniformizar sua jurisprudência, já que havia entendimentos divergentes na corte.
A decisão vem na esteira de outra anterior, proferida em dezembro de 2016 pela 5ª Turma que, subsidiada por manifestação do Ministério Público Federal, havia decidido no sentido diametralmente oposto. Dentre os argumentos dos ministros que votaram pela continuidade da aplicação do desacato como crime, está o de que a tipificação visa coibir exclusivamente manifestações ofensivas que faltem com a ”civilidade e educação” e, por isso, não prejudicaria a liberdade de expressão.
Tal decisão representa um grande retrocesso em relação a uma tendência de consolidação de teses jurídicas segundo as quais a existência do crime de desacato é contrária à ordem constitucional, bem como a tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Esse entendimento, consagrado na referida decisão da 5ª Turma, já vinha sendo construído por meio de decisões judiciais de primeiro grau, além de posicionamentos institucionais de órgãos como a Defensoria Pública de São Paulo – que em mais de uma ocasião denunciou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a continuidade do desacato no Brasil – e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, que elaborou representação ao Procurador-Geral da República para que propusesse uma ação direta de inconstitucionalidade em relação ao crime de desacato.
Para além do debate jurídico já avançado em torno da questão, o próprio contexto fático de aplicação do desacato no cotidiano revela sua incompatibilidade com premissas democráticas e voltadas à proteção da liberdade de expressão.
O desacato é um tipo penal que, a uma só vez, visa proteger o “prestígio e dignidade da máquina pública” e a honra e reputação de agentes públicos. Dessa forma, confere uma proteção superior aos funcionários públicos em razão de sua função, ideia incompatível com a noção largamente defendida por organismos internacionais de direitos humanos de que a Administração Pública e seus membros não devem ser mais tolerantes a críticas e opiniões que os cidadãos comuns, para que o controle e a participação social sejam viabilizados. Além disso, trata-se de tipo penal que, por sua redação, é excessivamente amplo, o que viola o princípio da taxatividade, bem como o princípio internacional segundo o qual a liberdade de expressão só pode ser limitada de forma legítima por leis ou atos elaborados de forma clara e precisa.
Uma vez que não há definição exata sobre em que consiste “desacatar’’ um funcionário público, resta ao aplicador da norma e, não raro, ao próprio ofendido, realizar tal definição e avaliar unilateralmente a linha entre ofensa e exercício legítimo da liberdade de expressão. O amplo potencial para arbitrariedades decorrente desta configuração legal é concretizado quando se observa os contextos de aplicação cotidiana do desacato, cabendo já a ressalva inicial de que em todos os casos há a reprodução da comum seletividade em relação aos alvos preferenciais da violência e arbítrios do Estado; pessoas negras, pobres e periféricas. Tal panorama se evidencia nas periferias e favelas, onde o desacato também é aplicado em conflitos cotidianos tradicionalmente marcados pela violência e o arbítrio das autoridades públicas.
Neste caso, há ainda o grave fato de que, em razão de ocupações militares em favelas e a transferência das funções de polícia para o Exército, civis podem eventualmente ser julgados por desacato na Justiça Militar. Em geral, portanto, as maiores vítimas das arbitrariedades que permeiam o desacato são indivíduos no seu exercício legítimo da liberdade de manifestação do pensamento e de resistência contra abusos do poder estatal, bem como pessoas em situações gerais de reconhecida vulnerabilidade em relação ao Poder Público.
Recentemente, um caso que exemplifica esse contexto chamou a atenção: no dia 3 de maio, um morador de rua da Zona Sul de São Paulo foi agredido e indiciado por desacato e resistência, dentre outras condutas, por ter tentado evitar que os guardas da Guarda Civil Metropolitana confiscassem seus pertences em uma operação da prefeitura.
O desacato também tem sido muito utilizado em protestos de rua, que mais e mais vêm sendo alvo de intensa repressão e criminalização por parte do Estado. Nos últimos tempos, tem ocorrido o registro de inúmeros casos manifestantes detidos e eventualmente processados pelo crime.
O desacato sob a ótica dos padrões internacionais
Diante da constatação acerca das graves violações à liberdade de expressão causadas pela existência e aplicação do crime de desacato, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos consolidou entendimento de que as leis de desacato não são compatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos no que se refere à garantia da liberdade de expressão e, por isso, devem ser revogadas por todos os países signatários do documento.
As orientações do Sistema Interamericano de Direitos Humanos são relevantes na medida em que o Brasil, enquanto signatário do tratado, deve adotar suas disposições que possuem status supralegal (hierarquicamente superior, portanto, ao Código Penal) no ordenamento jurídico brasileiro, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal. Esse argumento, denominado de “tese da ‘não-convencionalidade’” do desacato, vem ganhando respaldo no meio jurídico a partir das referidas defesas de instituições e decisões judiciais, dentre elas, a da 5ª Turma do STJ, que aplicou a tese em sua integralidade.
A mais recente decisão da 3ª Seção do STJ vai na contramão dos inegáveis avanços realizados para a harmonização do sistema jurídico brasileiro ao Sistema Interamericano e acaba reafirmando várias das premissas anteriormente criticadas.
A exigência de ”educação e civilidade” em manifestações voltadas a agentes públicos, por um lado, demonstra uma indisposição a priori frente a críticas mais incisivas realizadas por cidadãos. Por outro, também recai no problema de conferir aos próprios servidores o poder de interpretar o “excesso” na crítica. Outro argumento levantado pelos votos vencedores é que, ainda que o desacato fosse afastado, trataria-se de medida inócua pela possibilidade de aplicação dos crimes contra a honra (que possui o mesmo objetivo), como a injúria, por exemplo.
O que tal defesa ignora é que o cerne do problema do desacato está em sua proteção diferenciada a funcionários públicos e à Administração Pública como um todo, revelando uma quebra de isonomia em relação aos cidadãos. Ainda que haja outros dispositivos penais que possam ser eventualmente aplicados (e que merecem críticas à parte, vale dizer), o afastamento definitivo do desacato representaria um avanço no combate a uma cultura arraigada de autoritarismo e violações à liberdade de expressão e de protesto contra a Administração Pública.
Em suma, ao entender pela manutenção do crime de desacato no ordenamento jurídico brasileiro, a decisão da 3ª Seção do STJ legitima a arbitrariedade que é a regra da aplicação desse tipo penal nos diversos cenários apresentados. Além disso, prejudica ainda o importante papel que o Poder Judiciário deve cumprir na consolidação de uma jurisprudência positiva e que promova a de direitos fundamentais, com destaque, no caso, para a liberdade de expressão.
Autoras: Camila Marques é advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da Artigo 19.
Mariana Rielli é assistente jurídica do Centro De Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da Artigo 19.