Autora: Isabela Bessa (*)
A corrupção faz parte da natureza humana, manifestando-se das mais variadas formas desde os primórdios da humanidade e em diversos tipos de relações. Com base nessa premissa e diante do atual contexto político-jurídico do país, o presente artigo pretende abordar a problemática dos acordos de leniência tal como vem sendo celebrados atualmente. É dizer: não apenas o Ministério Público vem usurpando a competência outorgada por lei no âmbito do Poder Executivo Federal à Controladoria Geral da União (artigo 16, § 10, da Lei 12.843/2013), como também acordos por ele celebrados ficam sujeitos a invalidação. Tal atuação descoordenada por parte do Poder Público causa extrema insegurança jurídica, especialmente, para as empresas que com ele celebram tal acordo, podendo por em risco um instrumento de importância fundamental no combate à corrupção.
A matéria carece de uma regulamentação que possibilite uma atuação integrada e coordenada de todos os órgãos que atuam nessa seara. Os desafios no âmbito governamental, portanto, são inegáveis. Tais acordos vem sendo celebrados com órgãos públicos e empresas envolvidas em escândalos de corrupção, com a possibilidade de se por em risco a confiança e a credibilidade do instituto caso sejam invalidados. Assim, uma solução consensual para as controvérsias geradas em seu âmbito se faz fundamental diante dos possíveis efeitos deletérios, inclusive, perante à sociedade. É com o intuito de se buscar uma atuação coordenada entre os órgãos envolvidos em celebrações de tais acordos, bem como visando a concretização dos primados da eficiência administrativa, da segurança jurídica e da expectativa legítima, que se escreve este artigo.
Ele é fruto de um Parecer jurídico emitido em processo que envolve a operação “lava jato” e cujo julgamento recente pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região reconheceu a competência da CGU para celebrar acordos de leniência. No caso concreto o MPF celebrou acordo de leniência com valor próximo à metade do valor da ação de improbidade ajuizada pela Advocacia Geral da União.
Muitos foram os órgãos incumbidos pelo Constituinte na missão de fiscalizar a res publica, em especial o Tribunal de Contas da União. À Advocacia Pública, por seu turno, juntamente com o Ministério Público, cumpre o papel de função essencial à justiça (artigos 127 e 131, da CRFB). Todos estes órgãos tiveram as suas atribuições delimitadas e vem cumprindo esse mister de fiscalização da coisa pública e das suas missões constitucionais. O que menos se precisa nessa toada da história do país é que se inicie uma guerra institucional. O momento é de conjugar esforços pois os ganhos sociais são imensuráveis. A mudança cultural pela qual passa a sociedade brasileira é um ativo o qual não se pode admitir retrocesso. O que se propõe é uma análise pragmática a fim de que os órgãos incumbidos dessa nobre missão de combate à corrupção passem a agir de forma integrada, coordenada e em regime de cooperação.
Na prática, com o advento da lei de improbidade em 1992, o Ministério Público acabou assumindo protagonismo nessas ações. São poucos os casos em que a própria pessoa jurídica interessada toma essa iniciativa, tendo sido esse papel ocupado majoritariamente pelo Parquet. No âmbito da AGU, somente em 2009, 17 anos após a publicação da lei 8.429/1992, foi constituído o Grupo Permanente de Atuação Proativa da AGU (Portaria PGU nº 15/2008) com a missão de buscar a recuperação judicial de valores desviados dos cofres públicos federais, a partir de constatações realizadas pelos órgãos de controle da União, dentre eles a CGU, o TCU e a Polícia Federal.
Com efeito, a Advocacia Pública vem buscando exercer efetivamente o seu papel de função essencial à justiça, bem como de Advocacia de Estado, na defesa da juridicidade dos atos praticados por agentes públicos. Além disso, outros instrumentos normativos surgiram após o advento da lei de improbidade, com o mesmo fim de recuperação do patrimônio público, dentre eles, a delação premiada e o acordo de leniência.
O instituto da delação premiada ganhou notoriedade com a operação “lava jato”, iniciada pela Polícia Federal. A mencionada operação, como se sabe, começou com a investigação de um grupo de doleiros envolvidos em desvio de dinheiro no âmbito da Petrobras. Trata-se de um acordo firmado com o Ministério Público ou Polícia Federal no qual o suspeito de cometer crimes se compromete a colaborar com as investigações e denunciar outros integrantes da organização criminosa em troca de benefícios. No Brasil, o instituto existe desde a década de 90, e vem passando por uma série de aprimoramentos acompanhado do amadurecimento institucional do MP e da Polícia Federal. Trata-se de instituto de extrema importância para a descoberta de infrações penais, em especial o crime de corrupção, que pode envolver estruturas extremamente sofisticadas de organização criminosa, estruturas dessas muitas vezes em funcionamento dentro da própria Administração Pública.
Em paralelo a este importante instrumento, surgiu o Acordo de Leniência na esfera administrativa. Tal instrumento está previsto nas denominadas Lei do Cade (artigo 86), Lei Anticorrupção (artigo 16 a 21) e, recentemente, também no âmbito do Banco Central (artigo 30, da MP 784/2017). É evidente o interesse da Administração Pública em celebrar estes acordos não somente para obter informações a respeito de eventuais ilícitos praticados por outras empresas envolvidas, mas também o reconhecimento da prática do ilícito pela pessoa jurídica além do ressarcimento dos prejuízos aos cofres públicos.
A maior dificuldade que se enfrenta está no fato de que muitos dos atos tipificados na Lei Anticorrupção podem também configurar atos de improbidade administrativa, crimes e até mesmo irregularidades verificadas pelos tribunais de contas. O pior que pode acontecer nesses casos é a sobreposição de atuação dos órgãos envolvidos. O momento é de conjugação de esforços para se elucidar ilícitos já cometidos além de coibir infrações futuras, criando-se uma cultura de desincentivo à prática de tais atos, bem como de incentivo à colaboração com o Poder Público para o seu desmantelamento.
Por expressa previsão legal, no âmbito do Poder Executivo Federal, a competência para a celebração de acordos de leniência é da CGU. Assim, ainda que louvável a celebração de acordos pelo Ministério Público, trata-se de usurpação de competência. O Parquet pode celebrar acordos de natureza penal com fundamento na delação premiada. Já os acordos de leniência na esfera administrativa cabem ao Poder Executivo. Contudo, não se está aqui a querer de forma alguma invalidar os acordos celebrados pelo Parquet que adentraram nessa competência. Repise-se, o momento é de conjugação de esforços no combate à corrupção.
Aliado a esta questão legal, tem-se que o acordo de leniência tem natureza jurídica de ato convencional por meio do qual “Administração e administrado estipulam a mitigação ou a supressão de um plexo de penalidades passíveis de imposição à pessoa jurídica pelo cometimento doloso de atos ilícitos (…)”, conforme Maurício Zockum. Ora. Sendo ato convencional, em muito se assemelha ao TAC, previsto na Lei 7.347/1985. Se prevalecer o entendimento do TCU de legitimidade para fiscalização prévia de acordos de leniência (IN 74/2015), o mesmo tipo de raciocínio teria de ser aplicado aos TACs eventualmente celebrados pelo MP. E mais. Em se tratando de espécie de contrato, a sua sustação somente poderia ser feita diretamente pelo Congresso Nacional, e não pelo TCU (artigo 70, § 1º, da CRFB). A atuação prévia do TCU, portanto, pode até mesmo ser considerada inconstitucional.
Não há dúvidas de que o sistema de freios e contrapesos seja uma grande conquista do constitucionalismo moderno, visando que os Poderes constituídos não exorbitem de suas atribuições. É salutar e fundamental para o Estado Democrático de Direito. Todavia, da mesma forma, o constituinte previu a independência e harmonia entre os poderes, de forma que é chegado o momento de se sopesar esses princípios, conjugados com as competências conferidas a cada órgão. Da mesma forma que os criminosos se reúnem em quadrilhas para fortalecer a sua atuação, os órgãos responsáveis pelo combate à corrupção e recuperação dos prejuízos por ela causados devem se reunir em uma ação coordenada visando o atingimento de objetivos comuns, deixando de lado vaidades institucionais.
A lei anticorrupção é clara ao fixar a competência para firmar acordos de leniência como sendo da CGU. Por outro lado, o ideal seria operacionalizar estas tratativas em regime de cooperação. O objetivo principal é se evitar decisões sobrepostas de diversos órgãos. Esse tipo de postura pode desmotivar as empresas a colaborarem e, consequentemente, dificultar o desmantelamento das organizações criminosas.
Diante disso, o que se sugere como meio de aperfeiçoamento do uso dos acordos de leniência é que sejam tomadas medidas no sentido de se implementar a mediação durante as tratativas do acordo, com a participação de representantes da CGU, AGU, MPF e TCU, medida a qual pode ser viabilizada mediante Decreto (artigo 84, VI, “a” e pu, da CRFB). O que se propõe possui fundamento legal. A 13.140/2015 possui disposições expressas sobre Mediação na Administração Pública.
E, sendo a competência dos Acordos de Leniência conferida por lei à CGU, não há vedação legal para regulamentação de um modelo de Acordo Global de Leniência com os demais órgãos interessados (Arts. 10 e 16, §§6º da Lei 12.846/2013; Arts. 2º, 21, 30 §1º, 32§ 3º e 40, da Lei 13.140/2015 c/c Arts. 20 e 86, §9º da Lei 12.529/2015). Em entrevista concedida recentemente, Francisco Ortigão, especialista em compliance e anticorrupção, também segue a linha da proposta aqui sugerida:
“(…) As empresas acusadas de corrupção, como as envolvidas na operação “lava jato”, terão de enfrentar um longo caminho para regularizar sua situação perante o Executivo e evitar cobranças futuras. Da forma como hoje os acordos de leniência são regulamentados no país, as companhias que buscam segurança são obrigadas a negociar, separadamente, com quatro órgãos: Ministério Público, Ministério da Transparência, Tribunal de Contas e Advocacia-Geral da União. Não existe, no Brasil, previsão de acordo global de leniência, como nos Estados Unidos, onde os órgãos interessados trabalham em conjunto para encerrar a questão. “Há um vácuo legislativo no Brasil e esse é o pior dos mundos para as empresas”, afirma o professor e coordenador do mestrado profissional da FGV-Direito, Mario Engler. Segundo ele, falta uma regulamentação no país que permita a esses órgãos trabalhar em conjunto. (…) evitaria divergências posteriores entre os órgãos – que possuem visões distintas sobre o tema – e mesmo o risco de anulação de acordos. (…) O professor acrescenta que sem um consenso, essas questões vão acabar sendo judicializadas. (…) Com a lacuna hoje existente na lei brasileira, o professor Francisco Ortigão acredita que o melhor caminho seria criar acordos administrativos entre o MP, TCU e Executivo para que os processos de leniência abrangessem obrigatoriamente esses órgãos. Enquanto isso não existir, Ortigão afirma que o prejuízo é de todos, pois os acordos deixam de ser efetivos.”
No mesmo sentido Maurício Zockun:
Com efeito, o acordo de leniência é um dos meios concebidos pela ordem jurídica para tutela do interesse público, permitindo não só a identificação do ilícito ou do seu agente, mas a recondução das práticas da entidade faltosa aos trilhos da legitimidade, sem prejuízo da recomposição do dano causado. Desse modo, não apenas se evita a perpetuação de situação de ilicitude como, adicionalmente, premia-se a solução pacífica de um conflito, sem prejuízo da integral preservação do patrimônio público. (…) Alguma celeuma poderá surgir quando as autoridades envolvidas estiverem em desacordo quando à intensidade da mitigação da penalidade pecuniária imponível à entidade leniente. Uma vez mais, espera-se que os agentes públicos reconheçam neste instrumento negocial um especial modo de pacificar (e não estimular) conflitos sociais (…)
Não se desconhece do relevante papel protagonizado pelo MPF na celebração de acordos com vistas a desmantelar organizações criminosas. Todavia, não sendo estes acordos de natureza penal, não pode o Parquet efetuar acordos de natureza administrativa no âmbito do Poder Executivo, cuja competência é da CGU, conforme recente Acórdão do TRF 4ª Região na Ação de Improbidade 5025956-71.2016.4.04.7000.
Por mais louvável que seja a iniciativa do Ministério Público, trata-se de usurpação de competência. Assim, o que se propõe é que o Poder Público envide esforços no sentido de implementar uma atuação coordenada entre CGU, AGU, MPF e TCU, por meio da regulamentação do instituto da mediação nos Acordos de Leniência, a fim de se dirimir eventuais divergências que surjam entre os envolvidos nas negociações.
Registre-se que não há prejuízo na suspensão de enventuais processos para que se efetivem as tratativas pois os prazos prescricionais ficam suspensos (artigo 16, § 9º, da Lei 12.846/2013 combinado com artigo 14, parágrafo único, da Lei 13.140/2015). Salienta-se, ainda, que recentemente esta articulista participou da Comissão de Mediação do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), realizado em Florianópolis neste ano, no qual foi aprovado o “Enunciado 617: (artigo 3º, §2º; artigo 36, §4º, da Lei 13.140/2015; artigo 17, § 1º, da Lei 8.429/1992) A mediação e a conciliação são compatíveis com o processo judicial de improbidade administrativa”. Na ocasião, não incluímos o Acordo de Leniência por não se tratar de matéria atinente ao processo civil.
Por derradeiro, havendo processos em curso, eventuais valores
a maior ou a menor poderão ser compensados ou complementados. Não há risco de prescritibilidade pois o STF, recentemente, fixou a tese da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário por danos decorrentes de ilícitos penais ou de atos de improbidade administrativa (RE 669.069).
Com esta breve exposição, espera-se ter contribuído para a reflexão sobre a problemática dos acordos de leniência tal qual vem sendo entabulados atualmente, sendo um dos grandes desafios para o Estado Brasileiro atualmente. Acredita-se firmemente que uma atuação coordenada e cooperada entre CGU, AGU, MPF e TCU seja capaz de aperfeiçoar o uso de instrumento tão relevante, sendo juridicamente possível que isso seja implementado por meio de outro novel instituto, a Mediação Extrajudicial.
Autora: Isabela Bessa é advogada da União.