1 Conceito de Meio Ambiente
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem essencial à sadia qualidade de vida (art. 225, CF). A defesa do meio ambiente é obrigação do Poder Público e da coletividade (art. 225, CF), sendo essa defesa realizada mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação (art. 170, VI, CF).
Não há uma definição constitucional de meio ambiente. Empregamos aqui a definição da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente: o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas (art. 3º, I). Compõem o meio ambiente: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora (art. 3º, V).
A Constituição Federal de 1988, pela primeira vez em nossa história constitucional, utiliza a locução “meio ambiente” e o faz pelo menos quatorze vezes (art. 23, VI; art. 24, VI; art. 24, VIII; art. 129, III; art. 170, VI; art. 174, III; art. 200, VIII; capítulo VI do Título VIII; art. 225; art. 225, § 1º, IV; art. 225, § 1º, V; art. 225, § 2º; art. 225, § 3º e art. 225, § 4º).
A locução “meio ambiente” tem um sentido jurídico unitário e abrangente, pois nela também está inserido o ser humano, além da flora, da fauna e do solo, das águas e da atmosfera. Em certos tópicos da Constituição Federal, quando se abordam os temas da competência, encontram-se a locução “meio ambiente” e a menção de alguns de seus elementos, indicados separadamente.
2 A Federação Brasileira
2.1 O Federalismo nas Constituições Brasileiras
Em 1891, os “representantes do Povo Brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte” promulgaram a nova Constituição, que diz em seu art. 1º: “A Nação Brasileira adota como forma de governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1989, e constituise, por união perpétua e indissolúvel de suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil”. Essa Constituição explicita o direito e o dever de os Estados
exercerem o governo próprio e diz: “Incumbe a cada Estado prover, a expensas próprias, as necessidades de seu Governo e administração; a União, porém prestará socorros ao Estado que, em caso de calamidade pública, os solicitar.” (art. 5º)
A intervenção da União nos Estados consta como uma exceção, afirmando-se como princípio geral que “o Governo Federal não poderá intervir em negócios peculiares aos Estados…” (art. 6º CF/91). Com os mesmos termos está disposto na Constituição Federal de 1934 (art. 12). Observe-se que já nos primeiros cinqüenta anos da República Federativa foram demarcados expressamente campos de atuação diferentes entre a União e os Estados, como se vê na fórmula utilizada – “negócios peculiares aos Estados”.
Peculiaridade é a “característica de alguém ou de algo que se distingue por traços particulares; originalidade, singularidade, particularidade” 1. Desde o início da vida federativa do país, reconheceu-se a realidade de que os Estados não tinham, e nem eram obrigados a ter, a mesma realidade geográfica, histórica, econômica e cultural, isto é, tinham peculiaridades próprias.
A Constituição Federal de 1988, ao tratar da competência concorrente, prescreve que, inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender às suas peculiaridades (art. 24, § 3º).
O federalismo veio para conservar a união da nação, o que não implicou, nem implica, na necessidade de instaurar-se um regime jurídico único para todo o país. Visando harmonizar os diferentes níveis de intervenção, através da competência de legislar, formulou-se um tipo especial de competência – a competência concorrente.
2.2 O Federalismo na Doutrina
“A competência federal não é uma competência de princípio, mas de atribuição. Isso significa que a esfera de competência das autoridades federais encontra-se constitucionalmente garantida e que o princípio da ‘subsidiariedade’ 2 dá a estrutura para o federalismo. Em síntese, o sistema federal não se caracteriza por uma hierarquia, um nível comandando o outro, como num sistema piramidal. A figura geométrica mais apropriada seria de dois círculos, com circunferências desiguais.” 3
“O princípio constitucional no qual se baseia o Estado Federal é a pluralidade de centros de poder soberanos coordenados entre eles, de modo tal que ao Governo Federal, que tem competência sobre o território inteiro da Federação, seja conferida uma quantidade mínima de poderes, indispensável para garantir a unidade política e econômica, e aos Estados Federais, que têm competência cada um sobre o próprio território, sejam assinalados os demais poderes.” 4
A Argentina – integrante do MERCOSUL e também federalista – reformou sua Constituição em 1994, inserindo no art. 41: “Corresponde a la Nación dictar las normas que contengan los presupuestos mínimos de protección, y a las províncias, las necesarias para complementarlas, sin que aquellas alteren las jurisdicciones locales”. A reforma constitucional argentina coincide com a doutrina exposta, pois se concedeu à Nação, isto é, ao poder central, competência para legislar sobre os fundamentos mínimos de proteção ao meio ambiente. A Nação Argentina tem o dever de estabelecer os alicerces da proteção ambiental, mas não pode querer ela mesma levantar todo o edifício legislativo, pois isso é missão das Províncias. Além disso, a reforma constitucional foi expressa em apontar que as normas nacionais não têm poderes de alterar as “jurisdições locais”. Nem excesso de descentralização, onde se notava a ausência do Estado Nacional, nem a centralização de poderes, com esvaziamento dos poderes periféricos.
3 O Exercício de Algumas Competências Privativas e a Competência Concorrente de Legislar sobre o Meio Ambiente
Legislar sobre águas, energia, telecomunicações, atividades nucleares, jazidas, minas e outros recursos minerais, trânsito e transporte, entre outras matérias, é competência privativa da União, como se lê no art. 22, CF/88.
O termo “privativo” significa “peculiar, próprio” 5, “que é peculiar a um indivíduo ou grupo; característico, específico, exclusivo” 6. A competência privativa não pode ser interpretada do mesmo modo no regime unitário e no regime federativo. No sistema unitário não há um dever constitucional de repartir competências, pois as mesmas são concentradas no poder central. Já no regime federativo, o normal é que as competências sejam compartilhadas, com maior ou menor intensidade. É, portanto, lógico entender-se que no regime federativo o grau de exclusividade vai depender de um balanço entre o exercício da competência privativa e da competência concorrente. Essa ponderação de competências leva em conta a existência de matérias que interajam numa e noutra competência.
O legislar sobre águas não pode ficar isolado do legislar sobre a proteção do meio ambiente; o legislar sobre telecomunicações (por exemplo, sobre ondas eletromagnéticas e antenas para telefones celulares) não pode excluir o legislar sobre a proteção e defesa da saúde. Vêem-se aí típicos casos em que as competências privativa e concorrente devem integrar-se. Uma regra que teria um caráter de norma única, no exercício da competência privativa, passa a ter a característica de norma geral, uma das qualidades da competência concorrente.
Uma razoável interpretação integradora das duas competências nada mais faz do que observar os fins do federalismo que é a união “perpétua e indissolúvel” dos entes federados. Os ideais dos primeiros republicanos devem persistir na busca do bem comum da União, dos Estados e dos Municípios.
Uma visão integradora das normas federais e estaduais, em primeiro plano, vê que na dúvida de interpretação não deve prevalecer o isolamento legislativo da União, isto é, não se deve aplicar rigidamente a competência privativa, mas é razoável o exercício da competência suplementar dos Estados (art. 24, § 2º). A dúvida na partilha da competência no sistema federativo, diferentemente do sistema unitário, deve levar à comunhão no exercício da competência e não à exclusividade da competência.
Na competência concorrente, “a norma geral federal deve deixar espaço para que os Estados e os Municípios exerçam sua competência suplementar. A norma geral federal não pode ser completa, que tudo prevê e tudo dispõe, caso contrário a norma geral converte-se em norma exclusiva ou em norma privativa” 7.
A Constituição Federal de 1988, ao inserir a competência suplementar, não a conceitua. Adequado pesquisar-se o conceito inserido em Constituições anteriores, como a Constituição Republicana de 1934: “As leis estaduais, nesses casos, poderão, atendendo às peculiaridades locais, suprir as lacunas ou deficiências da legislação federal, sem dispensar as exigências desta.” (art. 5º, § 3º).
No federalismo cooperativo, o conceito da Constituição de 1934 continua valendo atualmente, pois a norma federal ambiental não fica adstrita à sua auto-suficiência, mas admite que as normas estaduais possam suprir as lacunas ou deficiências dessa norma federal, sem que se dispensem as suas exigências.
4 Competência Constitucional para Administrar o Meio Ambiente
A Constituição Federal diz ser competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; preservar as florestas, a fauna e a flora”. (art. 23). Trata-se da competência de implementar a legislação ambiental, pondo em prática o direito e o dever de tomar as medidas administrativas para prevenir e reparar os danos ambientais, exercendo o controle público através do estudo prévio de impacto ambiental, licenciamento ambiental, monitoramento e auditoria ambientais e aplicação das penalidades administrativas. Em suma, na competência comum do art. 23 da CF está o poder de fazer a gestão ambiental e de implementar políticas públicas pertinentes.
Merece análise o emprego do termo “comum” na locução constitucional “competência comum” do caput do art. 23. Os dicionaristas apontam uma das acepções como “pertencente a todos ou a muitos” 8 e “que pertence a dois ou a mais de dois, à maioria ou a todos os seres ou coisas” 9. A União, os Estados, o DF e os Municípios têm, portanto, os mesmos poderes no tocante à competência nas matérias arroladas no referido art. 23 CF. “Competência comum significa que a prestação de serviço por uma entidade não exclui igual competência de outra – até porque aqui se está no campo da competência-dever, porque se trata de cumprir a função pública de prestação de serviços população” 10.
A matéria enseja duas questões específicas: qual a norma apta para repartir a competência comum e qual a norma adequada para criar licenças ou autorizações ambientais?
5 A Norma Apta para Repartir Competência
Repartir competências entre os entes federados foi tarefa que a Constituição da República tomou para si. Essa divisão de poderes está presente no título III da Constituição, que trata da Organização do Estado. A legislação infra-constitucional não tem a função de criar competências ou inovar nessa matéria, a que menos que a própria Constituição lhe dê essa possibilidade. Duas possibilidades, somente, foram previstas: no art. 22, parágrafo único 11 e no art. 23, parágrafo único da Constituição 12. Nas duas hipóteses, o instrumento que poderá inovar o já disposto na Constituição é a lei complementar, que deve ser aprovada por maioria absoluta (art. 69, CF).
Não se menosprezam as leis ordinárias, os decretos e as resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Evidentemente, cada um desses diplomas tem a função devida. Mas são inócuos e impróprios para repartir as competências dos entes federados. Não podem conceder competência, retirar competência e nem limitá-la. Contudo, têm acontecido essas impropriedades, que mesmo antes de serem declaradas inconstitucionais, merecem ser marginalizadas pelos que têm consciência do valor de um texto constitucional na vida de uma nação.
6 Sugestões para um Projeto de Lei Complementar
6.1 As Matérias de Baixo Impacto Ambiental e de Interesse Local Devem Ser Atribuições dos Municípios
“A direção dos assuntos ou negócios de todos pertence a todos, isto é, aos representantes e delegados de todos. O que não interessa senão a uma parcela do todo deve ser decidido por essa parcela: aquilo que não tem relação senão com o indivíduo, somente deve ser submetido ao indivíduo” 13. Há graus de interesse no exercício das competências constitucionais e deve-se buscar a identificação o mais precisa possível do espaço em que esse interesse se situa – privado ou público – e de sua localização territorial.
6.2 Quando Houver Interesse Nacional e Interesses Estaduais que se Interpenetrem é Prudente e Eficiente que a Competência Comum Seja Exercida pela União e pelos Estados
A busca de resultados benéficos para a coletividade, que é um dos fins do licenciamento ambiental, indica como vantajosa a cooperação, nessa atividade, entre União e Estados. “A administração pública tem de dispor também da capacidade de controlar os ciclos produtivos, as instalações e os projetos, com competência técnica e científica superior à das indústrias, pois com uma competência inferior, tal controle não teria sentido” 14. Não podemos pôr de lado a desigualdade econômico-financeira dos Estados Brasileiros, o que aconselha que ambas as entidades – União e Estados – respeitando suas respectivas autonomias, possam licenciar usando laboratórios e dados fornecidos somente por uma das instituições. O interesse regional não se isola do interesse nacional e este daquele, observando-se o respeito da independência administrativa e política de cada um dos entes. Quando a vontade dos mesmos for a mesma, o licenciamento ambiental será concedido, e quando houver discrepância nos entendimentos, o pedido não será deferido, enquanto os impedimentos ou deficiências não estiverem superados.
6.3 Devem Ser Tomadas Medidas Especiais de Controle Social e Público nos Casos de Auto-Licenciamento Ambiental
Esse tipo de licenciamento ambiental ocorre quando os órgãos públicos forem licenciar obras ou atividades financiadas pelo próprio ente federado licenciador (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios). Exemplifique-se com hipóteses, que devem ser evitadas: a União licenciar sozinha a transposição de rios federais (que banhem diversos Estados), a localização e o funcionamento de portos, estradas e aterros de rejeitos radioativos; os Estados licenciarem com exclusividade as estradas, que necessariamente passem por diversos Municípios; Municípios que queiram licenciar isoladamente depósitos de rejeitos perigosos.
O que se questiona é a impessoalidade ou imparcialidade do ato administrativo, condição indispensável para que esse ato sirva realmente à coletividade (art. 37, CF). Aplica-se aqui a máxima de que ninguém pode ser juiz na causa em que tem interesse. A lei complementar que deverá regrar a competência comum haverá de exigir, nesses casos, um duplo ou tríplice licenciamento ambiental, evitando-se um licenciamento deturpado, enfraquecido ou mistificador.
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Paulo Affonso Leme Machado
Professor de Direito Ambiental na Universidade Metodista de Piracicaba, na UNESP – Universidade Estadual Paulista (1980-2004) e na Universidade de Limoges – França (1986-2003); Mestre em Direito Ambiental pela Universidade Robert Schuman, de Strasbourg (França); Doutor Honoris Causa pela UNESP; Doutor em Direito pela PUC/SP; Prêmio Internacional de Direito Ambiental “Elizabeth Haub” (1985); Autor dos Livros: “Direito Ambiental Brasileiro” (14. ed.), “Ação Civil Pública e Tombamento”, “Estudos de Direito Ambiental”, “Recursos Hídricos: Direito brasileiro e
internacional” e “Direito à informação e meio ambiente”.