Autor: Adilson Abreu Dallari (*)
Toda norma jurídica, para ser aplicada, deve ser primeiro interpretada, sendo certo que toda norma comporta uma pluralidade de interpretações. Divergências entre juristas são inevitáveis. Cabe ao intérprete e aplicador da lei, diante das circunstâncias do caso concreto, buscar, entre as interpretações possíveis, aquela que seria a mais adequada, à luz dos valores consagrados pelo sistema jurídico.
A interpretação, portanto, não é uma atividade lúdica, mas sim, um trabalho voltado para a obtenção de resultados práticos, pois toda norma jurídica é instrumental, ou seja, objetiva atingir uma determinada finalidade. Portanto, a interpretação não se resume a uma dedução de lógica pura, destinada a desvendar a única solução universal correta e verdadeira, mas, sim, deve buscar a identificação do comportamento mais razoável, no sentido da melhor adequação aos princípios consagrados pelo sistema jurídico.
Entretanto, o super princípio da segurança jurídica exige que, nessa busca da melhor interpretação, haja uma coerência metodológica ou, pelo menos, um rigor conceitual, para o que é muito valiosa a contribuição da doutrina:
“É a doutrina que constrói noções gerais, conceitos, classificações, teorias, sistemas. Com isso, exerce função relevante na elaboração, reforma e aplicação do direito, devido à sua grande influência na legislação e na jurisprudência, que se inspiram no estudo dos juristas, que, com sua grande formação científico-jurídica, dedicam-se a aprofundar os problemas jurídicos, oferecendo em suas obras o resultado de suas reflexões e estudos. Por carecerem de quaisquer interesses políticos ou econômicos ao defender seus pontos de vista, apoiam-se apenas em sua probidade científica, daí o seu prestígio. Deveras, é na obra dos juristas que se encontram a origem de várias disposições legais e a inspiração de julgados que visam aperfeiçoar o direito. Foi o que se deu com as teorias da imprevisão, do abuso do direito, do direito social, do direito da concubina e dos filhos adotivos e adulterinos, da responsabilidade civil em geral e, em especial, por dano moral etc.”
(Maria Helena Diniz, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 2ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, 1989, p. 287).
Colocadas essas premissas, pode-se agora passar ao exame das normas constitucionais que disciplinam a matéria em exame.
Análise do texto constitucional
A Constituição Federal de 1988, em seu arigo 127, §1º, dispõe, expressamente, que um dos princípios institucionais do Ministério Público é a “independência funcional”. Coerentemente, logo em seguida (artigo 128, §5º, II) aplica uma decorrência desse princípio aos membros da instituição, aos quais são impostas algumas vedações, das quais duas merecem especial destaque: “d) exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério”; e) exercer atividade político-partidária”.
Entretanto, o mesmo texto constitucional, em suas disposições transitórias (artigo 29, § 3º) dispõe: “Poderá optar pelo regime anterior, no que respeita as garantias e vantagens, o membro do Ministério Público admitido antes da promulgação da Constituição, observando-se, quanto às vedações, a situação jurídica na data desta.”
De imediato, cabe destacar uma importantíssima distinção. Note-se o destaque para as vedações. Uma coisa é a manutenção de regime quanto a garantias e vantagens, e outra coisa são as vedações, para as quais deve ser observada a situação jurídica vigente em 5 de outubro de 1988.
Dado que não existe disposição constitucional totalmente desprovida de eficácia, cabe indagar qual o sentido dessa específica exceção, no tocante às vedações, de maneira compatível com o princípio geral, fundamental e permanente, da independência da instituição e de seus membros.
Cabe lembrar que um princípio fundamental de hermenêutica é aquele no sentido de que toda exceção deve ser interpretada restritivamente. Assim, obviamente, não é possível dar interpretação extensiva à exceção, atribuindo a antigos membros do MP o privilégio de violar a Constituição.
À luz desses parâmetros chega-se ao entendimento no sentido de que, o membro do Ministério Público que, nessa data, se encontrasse em acumulação que passou a ser vedada, poderia assim permanecer. Trata-se de uma oportuna aplicação do princípio da segurança jurídica. Porém, de maneira alguma é possível extrair daí que integrantes do Ministério Público naquela data incorporaram ao seu patrimônio jurídico o direito de acumular funções expressamente proibidas pelo texto constitucional.
Isso ficou muito claro no julgamento do RE 157538-7 Rio de Janeiro (STF, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, VU, presentes os Ministros Sydney Sanches, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello e Ilmar Galvão, 22/6/93), de cuja ementa consta, expressamente, que “não há direito adquirido contra a Constituição”.
Porém, especificamente quanto ao cargo de ministro de Estado, cabe lembrar que o artigo 76 o qualifica como integrante do Poder Executivo. Ou seja, ministro de Estado não é um cargo como outro qualquer, integrante da função administrativa, mas é, sim, um cargo eminentemente político. O exercício das atribuições de ministro de Estado não é uma atividade tipicamente político-partidária, mas tem, indiscutivelmente, uma ligação com tal atividade, muito especialmente por não ter qualquer independência funcional, podendo ser exonerado a qualquer momento.
Diante desse quadro normativo e em face das considerações iniciais, é pertinente uma ligeira passagem pelos ensinamentos doutrinários no tocante à interpretação constitucional em decorrência de realidades emergentes.
A realidade emergente
Entre os vários métodos interpretativos, merece destaque a chamada interpretação evolutiva, segundo a qual a norma jurídica (e muito especialmente a norma constitucional) deve ser interpretada em face da realidade existente no momento de sua aplicação, conforme ensina Antonino Pensovecchio Li Bassi, (L‘ Interpretazione delle Norme Costituzionale, Milano, 1972, p. 62 e 81), numa tradução para o português, alertando que o intérprete deve estar atento para com as cambiantes exigências político-sociais da coletividade e, assim: “Deve aplicar as normas não com base no sistema no qual o dispositivo historicamente nasceu, mas, sim, com base no sistema atual no qual vive. Deve levar em conta a realidade concreta, na qual operam as normas constitucionais, para trazer do exame da realidade oportunos elementos de valorização que permitam ajustamento ao processo evolutivo das normas e evitar conclusões incompatíveis com a vida real.”
É um dado inegável da realidade que o Ministério Público foi bastante valorizado pelo texto constitucional em vigor. A instituição hoje não é a mesma que havia anteriormente. Além disso, ao longo do tempo, a instituição e seus membros foram ganhando força, prestígio e respeito. Isso se deve, em grande parte, exatamente á eficácia da garantia da independência funcional.
O que se pretende destacar é a impossibilidade, em face da realidade emergente, de se interpretar o texto sobre vedações aos membros do Ministério Público, da mesma forma que isso poderia ter sido feito em 1988. À luz da interpretação evolutiva, é forçoso considerar que a amplitude e a força da regra geral proibitiva cresceram consideravelmente, enquanto que a exceção foi sendo reduzida, quase chegando à perda de eficácia.
Em face do exposto, com base nos fundamentos adotados, pode-se afirmar, objetivamente, que a Constituição Federal veda o exercício do cargo de Ministro de Estado por qualquer integrante do Ministério Público, mesmo que tenha ingressado na instituição anteriormente à promulgação da Constituição em vigor, tendo em vista a relevância e a eficácia do princípio fundamental da independência funcional do Ministério Público, que se estende aos seus integrantes, e considerando a natureza eminentemente política e instável do cargo de Ministro de Estado.
Autor: Adilson Abreu Dallari é professor de Direito Urbanístico dos cursos de pós graduação da PUC-SP e presidente da Comissão de Estudos de Urbanismo e Mobilidade do IASP.