Mesmo em amadurecimento, acordo de leniência é instrumento que veio para ficar

Autor:  Igor Tamasauskas (*)

 

Chega ao final o ano de 2016 e, como não poderia deixar de ser, vem a hora de se avaliar o que se viveu e as perspectivas para o ano seguinte. Costuma ser assim com a vida pessoal, não é muito diferente na vida profissional. Dentre as inúmeras vertentes de atuação do advogado vocacionado para o direito administrativo, sobressaíram temas relacionados à corrupção administrativa nesse 2016. Feliz ou infelizmente, trata-se de tema recorrente há alguns anos e dificilmente deixará de sair da pauta para o ano que vem. Ainda temos muito a evoluir na nossa institucionalidade e o enfrentamento desse tema é um passo doloroso nessa direção.

Ao lado das operações criminais que se avolumam na mídia, há invariavelmente uma ação de improbidade sobre os mesmos fatos ou as apurações administrativas que necessariamente emergem como natural reação do Estado quando confrontado com desvios em seu âmago.

Isso significa material de trabalho para o administrativista, que emprestará seu conhecimento especializado em licitações e contratos, em regulação, em processos administrativos, dentre outros, a fim de possibilitar o indispensável incremento de defesa técnica para a empresa ou o indivíduo que se veja enredado nessas situações nada confortáveis.

Esse ano que passou exigiu esse tipo de trabalho deste profissional. Exigiu mais: a adaptação e o aprimoramento de seus instrumentos jurídicos para a negociação, em razão dos acordos de leniência, para minimizar os efeitos da prática de atos ilícitos.

Mesmo sendo matéria já consolidada em questões relacionadas ao direito concorrencial, a Lei Anticorrupção colocou o ferramental da leniência à disposição de autoridades e advogados para solucionar negociadamente os impasses gerados pela descoberta de ilícitos empresariais. Se antes a regra era o ajuizamento da ação de improbidade (ou de ações reparatórias) passou-se a considerar fortemente a saída negociada do impasse, em ordem a permitir que empresas virassem a página em relação a atos ilícitos descobertos nessas megaoperações.

Não faltaram críticas a esse sistema negocial — talvez haja dúvidas até mesmo se já temos um sistema em funcionamento. De toda forma, essas críticas fundam-se, dentre outros argumentos, na renúncia à mediação do judiciário, porque as tratativas ocorrem diretamente com a acusação; na possível violação de direitos individuais, porquanto muitas vezes envolvem uma pressão adicional (e muito forte, por sinal) na seara criminal; na disputa de protagonismo em relação aos acordos, dada a multiplicidade de entidades legitimadas a perseguir um ato de corrupção no Brasil, desde o cidadão comum, pela via da ação popular, até o Ministério Público, a pessoa jurídica lesada pelo desvio de conduta, os Tribunais de Contas, a Controladoria Geral da União e congêneres estaduais e municipais, cada qual com seus instrumentos próprios.

Todas essas críticas são bem-vindas, por sinal, porque fazem parte do amadurecimento institucional e organizacional. Ao apontarem fragilidades ou incongruências, funcionam como catalisadores para o aperfeiçoamento dos mecanismos em questão. Para esse aperfeiçoamento, todavia, é preciso que haja predisposição dos envolvidos para a evolução desses mecanismos negociais, o que se alcança mediante novos dispositivos legais, mas, sobretudo, pela reiteração da prática nos casos concretos.

O fato é que esse tipo de mecanismo veio para ficar em nossa realidade, haja visto que foram, ao menos, uma dezena de acordos de leniência cuja celebração foi tornada pública em 2016, somente em relação à operação “lava jato”. Outros tantos podem estar sob negociação, mas não são ainda de conhecimento público, em razão de expresso sigilo legal durante as tratativas.

É importante destacar que esses acordos foram ajustados com o Ministério Público Federal, homologados pela 5a Câmara de Coordenação e Revisão, e também pelo juízo criminal, em razão de, ou terem sido ajustados em paralelo a colaborações com pessoas físicas, nos termos da Lei 13.850/2013, ou se destinarem a produzir provas também na seara criminal, ou ambas as situações.

Ainda não se logrou, contudo, repetir essa experiência na seara do poder executivo federal. Por maiores que foram os esforços que as seguidas equipes do atual Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria Geral da União, e também da Advocacia Geral da União, trata-se de grande mudança de paradigma que essa forma de lidar com o ilícito, ao menos na instância administrativa.

No mês de julho, veio a lume auspiciosa notícia quanto a um primeiro acordo dessa natureza envolvendo o Poder Executivo Federal e o Ministério Público Federal, inaugurando uma fase que se espera seja a de regularidade na utilização desse instrumental. Entrementes, por questões relacionadas à efetividade da colaboração com as investigações, à reparação integral do dano e à destinação de parcela dos recursos, o ajuste não recebeu o aval da 5a Câmara de Coordenação do MPF, e as negociações certamente retornaram alguns passos.

Um dos pontos destacados como impeditivos foi a destinação de recursos, sob a rubrica de multa decorrente da prática de lavagem de capitais, aos órgãos de investigação e controle. Colhe-se do parecer da 5a Câmara do MPF que não se admitiu o repasse direto de recursos para o enfrentamento desse tipo de criminalidade, posto que a lei em questão exige a formatação de um fundo específico que, entretanto, ainda depende de regulamentação do Poder Executivo. Esta aí uma questão espera-se seja solucionada em 2017.

O papel do Tribunal de Contas nesse processo também não se resolveu. Invocando a possibilidade de controle concomitante, o TCU editou uma resolução que o coloca na mesa de negociações, acompanhando o passo-a-passo das etapas. Isso travou as discussões pois, se o poder executivo está sob a alçada do TCU, a atribuição final do Ministério Público não possui outro controle senão o CNMP ou o poder judiciário. O impasse se colocou, sobretudo em acordos conjuntos ou que, pela natureza, tenham de ser replicados tanto perante o MPF quanto no Ministério da Transparência/CGU.

Sabe-se que o Supremo Tribunal Federal, a quem compete definir esses limites, já decidiu, em caráter cautelar e apenas uma vez, em favor de não se admitir esse controle concomitante sobre acordos de leniência. Mas, como a palavra final será do plenário do STF, ainda há muito o que aguardar.

No plano parlamentar, pululam sugestões de alteração do marco legislativo acerca do tema. Uma delas prevê deixar mais claro o papel de cada órgão durante essas tratativas. Seria ótimo que isso ocorresse, mas o clima de crise política constante não permite antever se o processo legislativo se concluirá e, caso finalize, para qual lado essa balança irá pender.

Não se esqueça que todo o mundo político está impactado com inúmeras investigações em curso e essas tensões repercutem no processo legislativo. A modificação de posições, dada a magnitude das tensões, ocorre de um dia para outro, às vezes até mesmo ao longo de um mesmo dia. Seja pela via da prática (mediante a conclusão de um caso concreto), seja pela modificação legislativa, aguarda-se que seja um dos pontos elucidados no próximo ano, já que oportunidades não faltam.

Ao lado dos expedientes administrativos para reparação do ilícito, há também a perspectiva de alienações de ativos das companhias enredadas nos problemas judiciais e a expertise do administrativista será indispensável, haja vista a necessidade de anuência prévia do poder concedente, por exemplo, quando a alienação envolver uma concessão pública. Ou, ainda, avaliar-se a matriz de riscos para o adquirente, sobretudo em razão do possível alcance do artigo 4o da Lei Anticorrupção.

Enfim, como não somente de corrigir seus desvios vive um país, espera-se pela retomada dos investimentos em infraestrutura, paralisados pelas graves crises política e econômica. Espera-se sejam implementados projetos de novas licitações setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário, objeto de recente medida provisória editada pelo governo.

As novas gestões municipais que se iniciam, nesse momento de grave crise econômica e, por consequência, severa restrição orçamentária, terão de se valer, ao máximo e com a maior segurança possível, de novos mecanismos para viabilizar parcerias com a iniciativa privada e a captação de investimentos para a aplicação na infraestrutura urbana.

Há muito a ser feito. Temos que superar a crise que é política, econômica e, cogitam alguns, também institucional e da ordem jurídica. Quem milita na órbita do Estado, seja como advogado público ou privado, possui sua parcela de responsabilidade para ultrapassarmos essas dificuldades.

 

 

 

 

 

Autor:  Igor Tamasauskas é sócio do Bottini & Tamasauskas Advogados.


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