Metodologia de cálculo do benefício do PAT conforme Decreto 5/91 é ilegal

Autores: Felipe Azzi e David Valletta (*)

 

O Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) é um dos incentivos fiscais de mais ampla utilização, especialmente entre os contribuintes sujeitos aos Lucro Real. O objetivo principal do PAT é a melhoria das condições nutricionais dos trabalhadores de baixa renda, de forma a promover sua saúde e a diminuir o número de casos de doenças relacionadas à alimentação e à nutrição.

O benefício foi instituído pela Lei 6.321/76 e regulamentado pelo Decreto 78.676/76, o qual foi posteriormente revogado e substituído pelo Decreto 5, de 14/01/91.

A adesão ao programa é simples e feita eletronicamente, através de formulário disponível no site do Ministério do Trabalho, não requerendo grandes formalidades. Sob o ponto de vista contábil, a legislação exige somente que o empregador indique, com subtítulos por natureza de gastos, as despesas constantes do PAT (Artigo 7º, Decreto 5/91).

Sob o ponto de vista tributário, o benefício permite aos contribuintes sujeitos ao lucro real uma dupla dedução das despesas de custeio, desde que atendidos os requisitos legais. Ocorre que, confrontando a metodologia do benefício originalmente estabelecida pela Lei 6.321/76 com aquela trazida no Decreto 5/91, é possível perceber uma diferença na forma de beneficiar-se da chamada “dupla dedução”.

Isso pois, conforme a Lei 6.321/76, o contribuinte, sujeito ao Lucro Real, que aderisse ao PAT poderia deduzir, como despesa operacional duas vezes o valor incorrido com o fornecimento de alimentação aos seus empregados[1]. Aqui, portanto, o contribuinte deduziria a despesa do lucro tributável, ou seja, na formação da base de cálculo sobre a qual incidiria o IRPJ (incluindo o respectivo adicional).

Assim, consoante essa metodologia, uma empresa sujeita ao Lucro Real à alíquota de IRPJ de 25%, que efetuasse um dispêndio de R$ 100 mil com o PAT em um determinado ano acabaria tendo um efeito de redução do IRPJ de 50% da despesa incorrida (R$ 100 mil x 25% x2)[2].

De outro lado, o Decreto 5/91 trouxe uma metodologia distinta para o cálculo do benefício. Conforme a metodologia ali trazida, a pessoa jurídica deve, além de computar na determinação do lucro real as despesas de custeio incorridas na execução do programa, deduzir, diretamente do imposto de renda devido, o valor equivalente à aplicação da alíquota aplicável sobre a soma daqueles gastos. Posteriormente, com a limitação trazida pelo artigo 3º, §4º, da Lei 9.249/95[3], a dedução do Imposto de Renda devido limitou-se a 15%, sem incidir sobre o adicional.

Note-se, portanto que, diferentemente do que ocorre com a Lei 6.321/76, a dupla dedutibilidade, conforme o Decreto 5/91 não ocorreria integralmente na formação do lucro tributável. Nesta nova forma de cálculo, ela ocorreria em duas etapas distintas, a saber: (i) o contribuinte deduz 100% da despesa incorrida como custo, reduzindo-se o lucro tributável; e (ii) sobre o Imposto de Renda devido, acaba por excluir 15% da despesa incorrida com o PAT.

Ora, tomando como premissas os mesmos valores que utilizamos no cálculo exemplificativo da Lei 6.321/76, uma empresa sujeita ao Lucro Real cuja alíquota do Imposto de Renda seja de 25%, que efetuasse um dispêndio de R$ 100 mil com o PAT em um determinado ano acabará tendo um efeito de redução de impostos de 40% da despesa incorrida (R$ 100 mil x 25% somados a R$ 100 mil x 15%).

Veja-se, portanto, que o Decreto 5/91, a teor de supostamente regulamentar o contido na Lei 6.321/76, em verdade, acabou por introduzir uma nova metodologia de cálculo que, em última instância, reduziu o benefício originalmente instituído pela lei. Naturalmente, dada a limitação do benefício fiscal previsto em lei por ato infralegal, os contribuintes se insurgiram, buscando manifestações dos órgãos judiciários e administrativos.

Isso pois em direito, e sobretudo em direito tributário, é imperioso observar o princípio da legalidade, consagrado tanto no artigo 5º, II[4] quanto no artigo 150, I da Constituição Federal. Desse princípio decorre que qualquer aumento de carga tributária, salvo previsão específica para tanto, deve ocorrer por meio de lei, não se admitindo a majoração via Decreto, Instrução Normativa, Portaria ou qualquer outro veículo que não aquele expressamente designado na Carta Magna. Neste sentido a lição do professor Roque Antônio Carraza:

“Insistimos em que, no campo tributário, o princípio da legalidade, veiculado, em termos genéricos, no art. 5º, II, da CF, teve seu conteúdo reforçado pelo art. 150, I, do mesmo Diploma Magno. Este dispositivo, ao prescrever não ser dado às pessoas políticas “exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”, deixou claro que qualquer exação deve ser instituída ou aumentada não simplesmente com base em lei, mas pela própria lei. Noutras palavras, o tributo há de nascer diretamente da lei, não se admitindo, de forma alguma, a delegação ao Poder Executivo, a faculdade de instituí-lo ou, mesmo, aumenta-lo[5]”.

Bastaria confrontar a majoração (através da redução do benefício fiscal) via Decreto para concluir que a constitucionalidade do Decreto 5/91 seria passível de ser questionada. Ocorre, contudo, que também no âmbito infralegal tal aumento seria questionável. Isso pois, o artigo 99[6] do Código Tributário Nacional, refletindo e em absoluta consonância com o princípio da legalidade, ao tratar sobre o alcance dos Decretos, reforça que o conteúdo e o alcance destes é limitado pela lei em função das quais sejam expedidos. Em outras palavras, não pode o Decreto, a título de regulamentar uma lei, inovar, ultrapassando as obrigações impostas por lei ou restringindo benefícios por esta concedido. Não é outra a lição de José Eduardo Soares de Melo:

“Salvo expressas previsões constitucionais, o Executivo não tem o poder de inovar na ordem jurídica, não podendo estabelecer normas que disponham sobre a criação, modificação e extinção dos tributos, em atendimento ao princípio da estrita legalidade tributária. Considerando que a lei (emanada do Legislativo) contém os elementos básicos da norma de tributação, atribui-se ao Executivo a faculdade de expedir regras apenas para possibilitar sua operacionalidade, fixando deverem meramente administrativos.

[…] Os decretos/regulamentos têm como conteúdo regrar a aplicação de lei que institui tributos, de forma específica, tendo como limite os estritos termos da lei, não se concebendo a figura de regulamento autônomo. Assim, é vedado ao Executivo federal dispor que determinada despesa não poderá ser considerada na apuração do lucro real, para fins de apuração de imposto de renda, no caso de a lei ter disposto em sentido contrário, permitindo referida dedutibilidade, porque também não pode criar direitos e obrigações”[7].

É bastante claro que o Decreto 5/91, ao modificar a forma de aproveitamento do benefício fiscal, acabou acarretando uma majoração da carga tributária, extrapolando, seu poder regulamentar.

Dito isso, passamos à análise do posicionamento atual dos tribunais sobre o tema. Neste ponto, conquanto não se possa dizer que existe uma jurisprudência consolidada em favor dos contribuintes, sobretudo nos tribunais superiores, é possível identificar diversas decisões dos tribunais regionais federais reconhecendo a ilegalidade da inovação na metodologia de cálculo trazida pelo Decreto 5/91, como indicamos abaixo:

EMENTA: TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. IMPOSTO DE RENDA. PROGRAMA DE ALIMENTAÇÃO DO TRABALHADOR. SISTEMÁTICA DE APURAÇÃO DO INCENTIVO FISCAL. LEI Nº 6.321/76. DECRETOS REGULAMENTADORES E INSTRUÇÕES NORMATIVAS. HIERARQUIA DAS LEIS. ILEGALIDADE. 1. A Lei nº 6.321/76, em seu art. 1º, permitiu a dedução, do lucro tributável para fins de apuração do imposto sobre a renda, do dobro das despesas comprovadamente realizadas pelas empresas em programas de alimentação do trabalhador (PAT) na forma que dispusesse o regulamento. 2. As disposições de hierarquia inferior dos decretos regulamentadores e das instruções normativas não podem extrapolar os limites da lei. Portanto, não há dúvidas de houve violação ao princípio da hierarquia das normas, bem como ao art. 84, inc. IV, da Constituição Federal, que trata acerca do chamado poder regulamentar. (TRF4 5003476-35.2017.4.04.7107, PRIMEIRA TURMA, Relator ROGER RAUPP RIOS, DJ 09/11/2017)[8]

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, não identificamos decisões sobre o tema, embora seja possível esperar uma decisão proximamente. Isso pois, no REsp 1.650.041, em decisão monocrática a ministra Regina Helena Costa se manifestou contra a legalidade da fixação de valor máximo de refeição trazida pelo regramento infralegal. Contudo, na ocasião deixou de apreciar a questão da metodologia de cálculo trazida pelo Decreto 5/91, o qual foi efetivamente objeto de questionamento pela Fazenda Pública. Provido o Agravo Interno da Fazenda Pública, o REsp encontra-se agora pendente de decisão[9].

Ainda no âmbito do STJ, destaque-se que, quando analisando outro tema polêmico envolvendo o PAT (i.e. limitação de dedução com base em custo unitário por refeição), a Corte manifestou-se no sentido de que atos infralegais não poderiam alterar direitos decorrentes de lei. Neste sentido o trecho abaixo:

[…] Essas limitações estabelecidas por normas hierarquicamente inferiores restringiram a própria lei ordinária, portanto, são ilegais, uma vez que inovaram ao prever condições não previstas na Lei 6.321/76 ou no Decreto 78.676/76. É verdade consabida que ato infralegal não pode restringir, ampliar ou alterar direitos decorrentes de lei. A lei é que estabelece as diretrizes para a atuação administrativa-normativa regulamentar. (STJ, REsp 990.313/SP, Rel. Min. Castro Meira, DJ 19/02/2008).

Aqui, conquanto não seja possível concluir que os argumentos adotados no julgamento acima seriam replicados ao analisar o tema desse artigo, nos parece que tratam-se de questões bastante semelhantes.

Por fim, no âmbito dos tribunais administrativos, embora no Carf existam decisões a favor dos contribuintes, considerando que um dos principais argumentos para a exclusão do Decreto 5/91 seria uma ofensa ao princípio da legalidade tributária e, considerando que a apreciação dessa tema estaria excluído do âmbito do Carf, a discussão acaba por estar mais restrita no âmbito administrativo.

De fato, a Câmara Superior de Recursos Fiscais, ao analisar o acórdão 9101-00.147 acabou por proferir sentença favorável à Fazenda Pública, muito embora pela leitura do voto vencedor perceba-se claramente uma inclinação ao acolhimento da tese do contribuinte, limitado o julgador somente pela limitação trazida pelo artigo 62 do RICARF. Neste sentido:

“Ao invés de permitirem a dedução em dobro do lucro tributável das despesas com alimentação para o trabalhador tal como previsto em lei, os atos regulamentares acima transcritos restringiram a fruição do benefício legal à possibilidade de dedução de tais gastos na escrita comercial do contribuinte e à posterior redução, do imposto devido, do valor equivalente à aplicação da alíquota cabível do imposto de renda sobre tais despesas.

[…] A despeito dos precedentes administrativos e jurisprudenciais sobre o tema e do fato de esta tributação ser manifestamente censurável face às disposições da Lei 6.321/76 pelos motivos acima mencionados, entendo que é defeso ao Julgador Administrativo afastar a exigência fiscal impugnada, em vista da literalidade do disposto no art. 1º do Decreto n. 5/91 e nos artigos 428 e 429 do RIR/80. Referidos dispositivos indicam expressamente a forma de fruição do benefício fiscal em referência, não permitindo que tal benefício tenha qualquer reflexo sobre o valor do adicional do adicional do IRPJ a ser recolhido pelo contribuinte.

Ante os expressos termos da Súmula 2 do 1º CC, pois, inclino meu voto no sentido de dar provimento ao Recurso Interposto pela Fazenda Nacional”. (CSRF, 1ª Turma , Acórdão 9101-00.147, Relator Carlos Alberto Freitas Barreto, DJ 15/06/2009, pags. 18 e 25)

O mesmo entendimento foi acatado em recente decisão (março de 2017) também proferida pela Câmara Superior de Recursos Fiscais, no Processo 19515.721533/2012-17. Destacamos que na decisão, contrária ao contribuinte, não houve qualquer análise do mérito da questão, limitando-se o Carf a não apreciar a questão uma vez que tal análise teria de ser feita frente ao princípio da legalidade tributária

Assim, diante dos argumentos e do panorama jurisprudencial acima expostos, entendemos que existem bons argumentos para discutir a constitucionalidade da metodologia de cálculo introduzida pelo Decreto 5/91 bem como pleitear a restituição dos tributos pagos em excesso nos últimos cinco anos, sobretudo no âmbito judicial, haja vista a afronta ao princípio da legalidade e a existência de decisões de diversos Tribunais Regionais Federais positivas ao contribuinte.

 

 

 

Autores: Felipe Azzi  é advogado, especialista em direito tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialista em direito societário pela Faculdade Getúlio Vargas – SP.

David Valletta  é advogado formado na Universidade de Zurique, Suíça, especialista em direito tributário pela Faculdade Getúlio Vargas – SP.

 


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