por Cristiano Paixão Araújo Pinto
No alvorecer do século XXI, o mundo do trabalho é marcado pela complexidade. Essa constatação se faz ainda mais evidente no contexto brasileiro, em que convivem, lado a lado, situações de extrema precariedade das condições de trabalho e demandas típicas de uma sociedade pós-industrial. Ao mesmo tempo, o núcleo componente do direito do trabalho no Brasil — ou seja, os princípios e normas jurídicas que asseguram a tutela do trabalho humano, estabelecendo um mínimo de direitos — passa por uma constante redefinição (como se observou pela tentativa de impor a prevalência do “negociado” sobre o “legislado” e como se constata pelas atividades do Fórum Nacional do Trabalho).
É esse panorama complexo, atribulado e diversificado que motiva a atuação do Ministério Público do Trabalho, a partir das atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição da República de 1988. Sua missão institucional não poderia ser mais relevante, especialmente no momento atual. Respondendo a demandas sociais prementes e interagindo com uma sociedade civil ativa e que procura meios institucionais de atuação e defesa de direitos, o Ministério Público do Trabalho acabou por estabelecer diferentes campos de atuação no mundo das relações sociais.
Para uma breve apresentação dessas linhas de atuação, podemos recorrer à simplificação e densificação da linguagem. Convidamos, então, o leitor a seguir o percurso aqui traçado: quatro palavras para descrever a atuação do Ministério Público do Trabalho no Estado Democrático de Direito.
Libertação – Em tempos recentes, a imprensa e a opinião pública no Brasil revelaram uma dura realidade: a chaga do trabalho escravo. Historicamente existente, tanto no meio rural como nas cidades – mas ignorado pelas autoridades do Poder Executivo ao longo dos anos –, o trabalho escravo finalmente atraiu a atenção dos atores sociais e políticos. Pesquisas da Comissão Pastoral da Terra indicam a existência de cerca de 25 mil trabalhadores em condições análogas à de escravo. O número real é provavelmente superior, em face da dificuldade em obter dados precisos.
O que está em jogo, em situações como esta, é a própria estrutura da idéia de Estado Democrático de Direito. Se, numa comunidade política organizada, não for possível assegurar o patamar mínimo da dignidade da pessoa humana, então a própria concepção de um Estado de Direito estará comprometida. Diante desse desafio, o Ministério Público do Trabalho — por meio de seus membros, em todas as 24 Procuradorias Regionais — tem como uma de suas prioridades o combate ao trabalho escravo. Atuando em parceria com organizações não-governamentais e entes estatais, o MPT vem obtendo resultados notáveis na erradicação de uma prática tão aviltante.
A concreta possibilidade da aprovação, pelo Congresso Nacional, de emenda constitucional estabelecendo a expropriação de propriedades rurais em que tenha sido encontrado o trabalho escravo é um dos desdobramentos relevantes da mobilização nacional que se criou em torno do combate ao trabalho escravo. O MPT é participante dessa luta, e seu horizonte é bastante claro: trata-se da defesa do Estado Democrático de Direito, da dignidade da pessoa humana e da liberdade (Constituição, art. 1º,caput e inciso III, art. 5º, caput e incisos XIII e XV).
Civilização – O Brasil registra, lamentavelmente, situações no mundo do trabalho que parecem anacrônicas. Não é possível tolerar a permanência de violações concretas e maciças à saúde e segurança do trabalhador. Deparando-se com denúncias – originárias de sindicatos, entes estatais ou trabalhadores lesados – referentes à precariedade das condições de trabalho no campo, na indústria e no setor de serviços, a totalidade das Procuradorias Regionais do Trabalho tem como meta o combate às irregularidades e violações a direitos decorrentes do meio ambiente do trabalho.
Trabalhadores expostos a agrotóxicos, silicose, arriscando a própria vida na utilização de compressores para a pesca da lagosta, submetendo-se a risco concreto de acidentes na construção civil e nos serviços de eletricidade e telefonia, degradando-se na exploração de lixões ou perdendo a capacidade laborativa por doenças profissionais (como os numerosos casos de LER/DORT): esse é um estado de coisas que não poderia ser tolerado numa nação que se pretende civilizada. A tarefa a ser cumprida, aqui, é a de “construir uma sociedade justa, livre e solidária” (Constituição, art. 3º, I), em que se possa assegurar a constante proteção referente aos riscos inerentes ao trabalho (art, 7º, XXII). O MPT, atuando em procedimentos investigatórios, inquéritos e ações, ou mesmo em sintonia com a sociedade civil (participando e incentivando o funcionamento dos fóruns estaduais de proteção ao meio ambiente do trabalho) e os órgãos estatais (Ministério do Trabalho e Emprego, FUNDACENTRO, Ministérios da Saúde e Meio Ambiente), tem o compromisso constitucional de defender um meio ambiente do trabalho saudável e digno.
Inclusão – A sociedade brasileira, como é notório, apresenta um dos índices mais altos de desigualdade na distribuição de renda. É dever de todos tentar superar essa feição excludente. Um dos campos em que essa tarefa se revela crucial é o mundo do trabalho. Situações como a discriminação por gênero, idade, características associadas à raça, orientação sexual, religião, aparência ou origem são repudiadas pelo ordenamento constitucional em vigor, mas ocorrem nas relações de trabalho. Num contexto de desemprego estrutural e criação modesta de postos de trabalho, vivido pelo Brasil desde a década de 1980, a manutenção do emprego torna-se vital para o trabalhador.
Não se pode aceitar, então, como natural a despedida arbitrária, ancorada em preconceitos como os acima enumerados. De igual modo, o MPT milita — em procedimentos investigatórios, ações judiciais e na sociedade civil — pela observância dos direitos das pessoas portadoras de deficiência, como o cumprimento das normas federais que determinam o estabelecimento de percentuais de admissão de trabalhadores e servidores públicos portadores de deficiência (Constituição, art. 37, VIII e extensa legislação infraconstitucional, na qual se destaca a Lei nº 8.213/91, art. 93).
A democracia, tão duramente conquistada após 20 anos de arbítrio, pressupõe a abertura para o pluralismo e o multiculturalismo. Ao combater a discriminação nas relações de trabalho, o MPT procura atuar na concretização de um dos objetivos fundamentais da República, qual seja, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Constituição, art. 3º, IV), além de zelar pela observância da igualdade, que é uma das bandeiras principais do constitucionalismo moderno e está consagrada no art. 5º, caput, da Constituição da República.
Educação – Uma outra forma de exclusão social — sutil, perversa e com efeitos a longo prazo — é a prática do trabalho de crianças e adolescentes. Vive-se numa sociedade pós-industrial, em que a informação é crucial para a própria inserção no mercado de trabalho. E, mesmo assim, subsiste, em alguns setores da sociedade, a idéia de que o trabalho infantil pode ser benéfico, na medida em que “tiraria” crianças e adolescentes das ruas e os afastaria da criminalidade.
Esse raciocínio, contudo, é simplista, falacioso e legitima a perpetuação de um ciclo vicioso de pobreza: crianças e adolescentes ingressam precocemente no mercado de trabalho, abandonam ou relegam seus estudos a um plano secundário, tornam-se adultos sem qualificação profissional e perdem a perspectiva de inclusão social. É clara a possibilidade de repetição do ciclo com as gerações seguintes.
Para romper essa cadeia, o MPT articula-se com a sociedade civil, a partir dos diversos fóruns estaduais para erradicação do trabalho infantil, empreendendo parcerias com órgãos e programas governamentais (como o PETI) e instaurando procedimentos investigatórios (que podem redundar na celebração de termo de compromisso de ajustamento de conduta ou no ajuizamento de ações) com o objetivo de combater a exploração do trabalho da criança e do adolescente. Trata-se de conferir concretude ao disposto nos arts. 7º, XXXIII e 227 da Constituição, além de várias normas infraconstitucionais, como o ECA e diversos preceitos da CLT.
Sintetizadas, de modo breve e parcial, algumas das atividades desenvolvidas pelo MPT (e deixando-se de mencionar, por razões de espaço, várias outras relevantes tarefas institucionais), cabe concluir com uma nota afirmativa. Os desafios postos à atuação do MPT são enormes e plurais. Mesmo assim, a notável inserção social da instituição, além do amadurecimento de muitas teses defendidas perante os tribunais do trabalho, indicam o aumento da conscientização da sociedade em relação aos problemas hoje enfrentados no mundo do trabalho. Se as quatro palavras aqui invocadas — libertação, civilização, inclusão e educação — puderem mobilizar os atores sociais para a importância do trabalho humano em nosso país, então o Ministério Público do Trabalho terá desempenhado um relevante papel na construção de uma nova ordem constitucional — justa, solidária e emancipatória.
Cristiano Paixão Araújo Pinto é procurador do Trabalho na 10ª Região, professor da Faculdade de Direito da UnB e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG