Autor: Leonardo Isaac Yarochewsky (*)
O Ministério Público Federal comemorou no último dia 25, com toda pompa e circunstância, inclusive com direito à presença de artista global, o fato de ter conseguido as assinaturas necessárias (mais de 1,5 milhões) para encaminhar projeto de lei de iniciativa popular em favor das “10 medidas contra a corrupção”.
Durante cerca de sete meses de campanha por todo o país, alguns membros do MPF — procuradores que atuam na “lava jato” — fizeram palestras, até mesmo em igrejas, defendendo as referidas medidas. Nem sempre com ética e responsabilidade, mas sempre em nome da sanha punitivista, os procuradores da República com suas vocações acusatórias convenceram pessoas de diversas classes sociais, instruídas ou não, a assinar a proposta. Até mesmo o nome de “Deus” foi usado em vão para obtenção das assinaturas necessárias.
Entre as dez medidas, os procuradores propõem: tornar crime o enriquecimento ilícito de agentes públicos, responsabilizar os partidos pelo crime de caixa dois, transformar a corrupção envolvendo altos valores em crime hediondo com penas altas e acelerar as ações contra a conduta desonesta no setor público, a chamada improbidade administrativa.
Em artigo publicado no jornal Zero Hora (28/2)[1] sobre o “pacote do MP” que propõe, entre outros absurdos, que os agentes públicos se submetam a testes que apontem se eles são ou não propensos a cometerem crimes, Lenio Streck afirma, com toda propriedade, que se trata de uma “eugenia cívica”. De acordo com Lenio, “o pacote retroage mais de mil anos ao restringir a possibilidade de pedido liminar em habeas corpus”.
Em outro viés autoritário, a maioria esmagadora dos membros do Ministério Público (Federal e Estadual) comemora a decisão do Supremo Tribunal Federal que relativizou o princípio da presunção de inocência. O procurador-geral da República Rodrigo Janot declarou que a referida decisão “trata-se de um passo decisivo contra a impunidade”. Em carta dirigida aos seus pares, o chefe do Ministério Público exaltou a decisão autoritária, afrontosa aos direitos humanos e que destroçou a Constituição da República.
Nilo Batista, com atuação em vários processos em defesa de acusados e presos políticos durante o regime ditatorial de exceção, já asseverou que “o direito penal é a porta de entrada do fascismo”.
De igual modo, Christiano Falk Fragoso[2] observa que o processo penal é um campo fértil para as diversas formas de manifestações de autoritarismo.
É no direito penal e no processo penal — como formas de manifestações e instrumentos de poder — que o autoritarismo e fascismo brotam e se desenvolvem. Através do direito penal e do processo penal se busca controlar a sociedade e neutralizar os indesejáveis — eleitos como inimigos — sejam na concepção de Carl Schmitt ou na de Gunther Jakobs.
Aliado à Polícia Federal (PF), com o aval de alguns magistrados e o apoio da mídia repressora, o Ministério Público vem orquestrando e conduzindo o avanço do Estado penal que ocupa cada vez mais espaço no seio da sociedade.
A influência perniciosa e vil dos meios de comunicação que usam e abusam do poder — decorrente principalmente do monopólio — é empregada pelo braço repressor do Estado (PF e MP) para, através do discurso do medo, da violência, da corrupção etc. conquistar não só o apoio da sociedade, mas para obter uma “carta branca”, com a qual tudo é permitido e os fins justificam os meios, para combater o crime.
Interessante observar a análise feita por Massimo Pavarini sobre como a “Operação Mãos Limpas” — exemplo para alguns aqui no Brasil — que relegitimou o sistema penal na Itália. Segundo Pavarini, “na Itália, durante muito tempo e diferentemente do que se registrou em outras realidades nacionais, os sentimentos coletivos de insegurança puderam se manifestar como demanda política por mudança através de uma participação democrática mais intensa. O que equivale a dizer que a comunicação social, através do vocabulário da política, favoreceu uma construção social de mal-estar e de conflito fora das categorias morais de culpa e pena”. [3]
Em razão de novos critérios de criminalização primária e secundária a população carcerária aumentou 50% ao ano. A seletividade repressiva dirigiu-se, especialmente, para duas figuras de marginalidade — drogaditos e imigrantes de cor.
Mais adiante, Pavarini assevera que um exemplo que pode explicar a mudança de paradigma da construção social do inimigo interno é “oferecido hoje na Itália pela campanha denominada jornalisticamente como ‘Mãos Limpas’, de repressão judicial à corrupção política”. [4]
O paradigma político social da corrupção dá lugar, segundo Pavarini, ao paradigma moralista. “Os magistrados que conduzem as investigações sobre corrupção política são novos ídolos populares, os grandes ‘moralizadores’ porque são grandes ‘justiceiros’”.[5] Qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência.
Ao se referir sobre uma sociedade autoritária, a filósofa Marilena Chaui observa que a sociedade brasileira conheceu a cidadania através de uma figura inédita: “o senhor-cidadão, e que conserva a cidadania como privilégio de classe, fazendo-a ser uma concessão regulada e periódica da classe dominante às demais classes sociais, podendo ser-lhes retirada quando os dominantes assim o decidem (como durante as ditaduras)”. [6]
Para Marilena Chaui, a sociedade brasileira é, também, autoritária, porque as leis sempre foram armas utilizadas para manutenção de privilégios e “instrumento para a repressão e a opressão, jamais definindo direitos e deveres”. [7]
Dúvida não há, e os dados comprovam, que os mais vulneráveis (jovens, negros e pobres) são os que mais sofrem com a repressão penal. Contudo, hodiernamente, os agentes do Estado punitivista buscam a criminalização do “colarinho branco”, da “criminalidade dourada” e da política (pelo menos em relação há alguns) para mostrar que o direito penal é igual para todos. O direito penal jamais será igual para todos em uma sociedade de classe e capitalista, porque nem todos são iguais.
O cerceamento de direitos e garantias, a relativização dos princípios fundamentais e o incremento da criminalização, em nome do combate a corrupção ou a qualquer espécie de criminalidade, só tem o condão de transformar o Estado democrático de direito em um Estado autoritário e fascista, no qual a polícia Federal passa a ter o papel de uma polícia política nos moldes dos estados nazifascistas e o Ministério Público um aparelho do estado repressor.
Autor: Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista, doutor em Ciências Penais e professor de Direito Penal da PUC-Minas.