José Carlos Gobbis Pagliuca
MIRANDA v. ARIZONA, 34 ANOS DEPOIS.
Garantias e serenidades num contexto de arestos
O dia 13 de junho trouxe de volta uma bela data. Marcou-se mais um aniversário da decisão da Suprema Corte americana sobre o caso Miranda v. Arizona.(1) Além da questão processual, Miranda qualifica-se como um marco no Direito. Membros da American Bar Association (similar à OAB), colocou-o, no ano de 1976, em quarto lugar entre os milhares de casos na história do Direito americano, sendo o primeiro no campo do Direito Penal. O caso Miranda serviu para frear muitos abusos empregados na aplicação da lei quando da atuação policial, já na implementação repressiva de polícia judiciária.
Quando se diz de Miranda, sempre se diz o melhor, sem contudo, outras considerações.
A quinta emenda da Constituição Federal norte-americana diz que “nenhuma pessoa será tida como responsável por um crime capital ou infame, a menos que sob acusação ou processo perante o grande júri, exceto em casos originados quando crimes militares ou em serviço em tempo de guerra ou perigo público; nenhuma pessoa será sujeita a mais de um julgamento pelo mesmo fato; ninguém será compelido em nenhum caso criminal a fazer prova contra si mesmo (princípio da não incriminação própria), nem ser privado da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; ninguém será privado de sua propriedade para uso público sem a devida indenização”. A sexta emenda diz que “em todo processo penal o acusado usufruirá o direito de ter um julgamento público e célere, por um júri imparcial do estado ou circuito federal, previamente competente pela lei e ser informado sobre a natureza e causa da acusação; bem como de contrariar as provas contra si e ter possibilidade de produzir provas a seu favor e obter assistência de advogado em sua defesa.” Pois bem. Os predecessores do caso Miranda haviam distorcido ambas emendas. A Corte encontrara compulsão onde não havia; ela tinha elevado a investigação para um nível de caso criminal ou processo penal e definiu um suspeito como próprio acusado. No processo, o tribunal impôs sobre os policiais encarregados da investigação e autuação (law enforcement officers), uma irrazoável carga legalista e tornou um sério negócio de investigação como desafio esportivo.
O juiz White viu tal por longos tempos atrás. Em maio de 1964, a Corte reverteu sua convicção com o caso de Winston Massiah, acusado de contrabando de cocaína.(2) Algumas provas evidenciais contra ele foram obtidas depois de seu indiciamento por delação de um cúmplice. A Corte julgou por 6 votos a 3 que para Massiah a sexta emenda fora violada. White dissentiu dizendo : “a meu ver, uma sociedade civilizada deve manter a capacidade para descobrir transgressões da lei e identificar aqueles que a burlam… É por conseguinte, uma especial ocasião quando uma regra constitucional é estabelecida excetuando uma prova que é relevante, confiante e altamente probante de sucesso para julgamento da Corte que antes a tem se o acusado cometeu o ato do qual é acusado.”
White denunciou o que chamou de “tratamento esportivo de esportistas vendedores de narcóticos”. À lei de execução (investigação- enforcement) ele adicionou, poder ter os elementos de uma contestação, “mas não de um jogo”.
Ao caso Massiah seguiu-se, em 1964, Escobedo v. Illinois (3). Foi outra questão acerca da emenda número 6. Relatando sobre ele o juiz Goldberg, a Corte Suprema votou por 5 a 4, alargando o direito da defesa em superar o testemunho voluntário feito por um suspeito enquanto em custódia, mas antes de seu indiciamento ou acusação formal. Também assim ao juiz Stewart, voto vencedor em Massiah, embora lamentando sobre “o vasto e altamente desafortunado impacto da decisão de hoje sobre a imparcial administração da justiça criminal.” Por outra banda, o juiz Harlan, discordando em separado, em elevada crítica afirmou: “Eu penso que a regra é mais inconcebida e que ela séria e injustificadamente entrava perfeitos métodos de aplicação da lei investigatória de aplicação criminal.” Sem embargo, White fez percuciente observação. Viu Escobedo como um passo mais importante na direção da meta que seus pares igualmente tinham em mente, “para impedir todas as evidências advindas de um suspeito de crime se voluntariamente feita ou não.”
Então surgiu Miranda. Do que foi acordado em Miranda, em algumas vezes, supõe-se que a longa e repetitiva opinião de Warren foi esculpida em pedra, com a concordância de seus colegas. Porém não. A votação foi 5 a 4, com Harlan, White, Stewart e Clark discordando com toda ênfase. A maioria criou estendendo novas regras de interrogatório sob custódia. O direito à defesa foi levado como um absoluto pré-requisito ao interrogatório. Antes de qualquer questionamento, o tribunal decretou que uma “pessoa deve ser informada que ela tem o direito de permanecer calada, e que qualquer depoimento que fizer poderá ser usado como prova contra si mesma,” e assim por diante.
O magistrado Clark ficou temeroso, pensando estar a maioria indo muito longe.
Por exigir todas estas coisas de uma única vez, “poderia a Corte causar a obstrução de futuros casos”. Então objetou para alterar “as tradicionais regras de investigação e custódia, numa extensão das regras de doutrina. O juiz Harlan discordou, afirmando que a opinião era “pobreza da lei constitucional e transmitia nocivas conseqüências para todo o País.” Depois disse “não ter considerável suporte na história de privilégio contra a auto-incriminação na linguagem da quinta emenda. White tomou por base que a Constituição proibia a auto-incriminação somente se constrangido a tal. Porém Warren postulou “fazer pouca diferença em termos de compulsão o que proibia a quinta emenda.”
Por outro lado, com feliz interpretação, White observou que a decisão da Corte era uma suspeita de todas as confissões, um sentimento inerentemente errado para a polícia reunir provas de uma auto-acusação. Essa era a essência de sua discordância. Não chegava a ver nada imoral ou ilegal no fato de um policial perguntar a um suspeito uma rude questão- você matou sua mulher? – tão distante quanto o suspeito tivesse sido advertido de seus direitos de ficar calado. Às regras Miranda, White disse: “será mensuravelmente enfraquecida a habilidade da lei criminal para desempenhar suas tarefas.”
Nos anos seguintes a Miranda, White repetidamente protestou. Em Mathis v. US, envolvendo depoimentos obtidos durante uma investigação civil acerca de tributos, ele continuou a acreditar que a decisão em Miranda fora uma extravagância e inábil interpretação da quinta emenda. (4) Em Orozco v. Texas, um caso de homicídio, ele achou que seus pares haviam levado a doutrina de Miranda para um novo e inseguro extremo.(5) Em Brewer v. Williams, ele colocou a majoritária decisão como completamente insensata.(6)
O caso Williams abasteceu o exemplo de Miranda como o pior.
Na véspera do Natal de 1968, em Des Moines, estado de Iowa, Pamela Powers, com dez anos, foi seqüestrada e assassinada. Das provas policiais, se foi capaz de identificar Robert Anthony Williams como suspeito, sendo este encontrado em Davenport, 160 milhas distante (aproximadamente 250 Km). A Williams, então, leram-se os direitos Miranda e dois policiais de Des Moines trouxeram-no de volta. Os agentes de polícia decidiram não interrogar ou questionar o suspeito na viagem. No entanto, durante a condução, um dos policiais lembrou-se da melancolia na hipótese de ser o corpo da pequena vítima encontrado debaixo da neve. “Ela merecia um funeral cristão”. Tocado por remorso, Williams, voluntariamente, encaminhou os agentes da lei ao local onde o corpo foi então, encontrado. Numa votação por 5 votos a 4, a Suprema Corte julgou a conduta dos policiais como uma violação inconstitucional dos direitos de Williams pela emenda 5.
O juiz Burger não concordou e disse : “o resultado neste caso é intolerável numa sociedade que supõe chamar-se a si mesma de organizada. Continua a Corte, por estreita margem, criticada no curso de punição ao público para os erros e culpa dos oficiais da lei, em lugar de punir diretamente estes, se do fato têm culpa, por alguma má conduta. É mecanicamente cego afastar confiáveis provas para o júri se a reclamada violação constitucional envolve erro grosseiro de desvio de conduta policial ou erro humano honesto.”
A decisão Williams de 1977 foi o divisor de águas de Miranda. Em maio de 1980, a corrente começou a decair. Em Rhode Island v. Innis sustentou-se uma relembrança similar com o Iowa case. (7) Um taxista de Providence, estado de Rhode Island, foi achado morto com um disparo de arma de fogo na cabeça. A investigação acenou para a autoria com a prisão de Thomas Innis. A ele leram-se, por quatro vezes, seus direitos Miranda. Por fim, ele pediu entrevista com seu advogado. A polícia interrompeu suas indagações, mas como estavam conduzindo Innis por sua própria indicação, passaram defronte a uma escola para crianças deficientes. Então um dos policiais fez algum comentário sobre o sofrimento humano daqueles infantes. Innis disse para os agentes voltarem e, por vontade própria, demonstrou onde estava a arma.
Desta vez o tribunal votou por 6 a 3 que não houve violação aos direitos do sujeito. Innis não tinha sido interrogado “com os princípios de Miranda.” Começou-se a ver a volta do senso comum da quinta emenda legal.
Desde então a tendência tem sido sensível. Para estar certo disso, em maio de 1981, a Corte pôs abaixo duas unânimes afirmando os princípios de Miranda (8). Não há disposição na Corte para Miranda dominar, mas claramente, uma maioria pode causar uma modificação. Em California v. Prysok, seis membros (maioria), julgou que as garantias Miranda não necessitavam ser dadas, palavra por palavra, como decidido pelo juiz Warren.(9) Em New York v. Quarles, o Tribunal votou por 5 a 4 criar uma exceção quando excedido a casos de segurança pública envolvida. O caso surgiu quando um suspeito de estupro, armado com um revólver calibre 38, fugiu de um supermercado. Policiais cercaram-no e sem apresentarem os direitos Miranda, perguntaram pela arma. O suspeito apontou para onde havia deixado-a. O juiz Marshall, discordando, comentou que numa “quimérica averiguação por segurança pública, a maioria abandou a regra trazida por dezoito anos de tranqüila doutrina no campo da inquirição sob custódia.” Na verdade, opiniões opostas dizem ser ridículo para juízes da Corte Suprema, sentados em sua fria torre de mármore, decretar o que o policial deve fazer ou não fazer, ou dizer ou não dizer, quando sua adrenalina está fervilhando, muitas vezes, com uma arma rondando contra si.
A tendência dessa razão ganha momento em junho de 1984 com a sensível decisão da Corte na segunda apelação envolvendo Robert Anthony Willliams e a morte de Pamela Powers. (10) Desta vez o Tribunal concluiu que a busca poderia ter encontrado o corpo da criança mesmo que Williams não o indicasse voluntariamente aos policiais de Des Moines. O juiz Burger então incorporou a doutrina da “descoberta inevitável”, junto da rubrica Miranda.
Em 10 de março de 1986, mais um abrandamento. Aderindo ao voto do juiz O’Connor, seis magistrados não encontraram inconstitucionalidade no questionamento de um suspeito de roubo, Brian Burbine, para quem, por duas vezes se leram os direitos de Miranda, não sendo suficientes para a obtenção de um defensor. Analisando os complicados fatos do caso, a maioria decidiu promover a extensão do alcance Miranda.(11)
O juiz Stevens enfaticamente dissentiu. Disse que a decisão em Burbine não fazia total sentido. Ele acusou a maioria de ter desprezado sobre o já estabelecido sistema de princípios legais e burlado o sistema acusatório de justiça.
Pessoas menos esclarecidas podem querer ver a lei voltar aos maus dias antigos. Porém, o Tribunal noticia, com freqüência, documentos com abusos aos direitos da quinta emenda.(12) Isso não deve ser tolerado. Destarte, é absurdo requerer que os cuidados de Miranda sejam ritualisticamente dados igualmente em todas as circunstâncias. O senso comum deve informar-nos que a confissão voluntária é valorável na apreciação e produção das provas e que a voluntariedade deve ser apreciada com a totalidade das evidências, num contexto fático global. Durante a maior parte desses trinta e poucos anos, por causa de Miranda, a escala tem sido, para alguns, insensatamente medida em favor dos acusados. Porém, em vezes, a Corte traz de volta um juízo que admite os direitos da sociedade também.
Em face disso, tudo deve ser analisado “cum grano salis”, uma vez que, como adrede exposto, nem sempre a situação fática permite a escorreita e ideal apresentação das regras defensivas constitucionais. Não obstante, por vezes, mesmo em assim sendo, não se encontra vício na conduta policial, porque não determinada por má-fé ou intenção desvirtuada do sentimento legal, mas sim, por mera contingência natural. Daí porque, a serenidade esperada aos magistrados com o convencimento probatório.(13)
Notas:
1. Miranda v.Arizona, 384 US 436 (1966).
2. Massiah v. US, 377 US 201 (1964).
3. Escobedo v. Illinois, 378 US 478 (1964).
4. Mathis v. US, 391 US 324 (1969).
5. Orozco v. Texas, 394 US 324 (1969).
6. Brewer v. Williams, 430 US 387 (1980)
7. Rhode Island v. Innis, 446 US 291 (1980).
8. Estelle v. Smith, 451 US 454 ( 1981), Edwards v. Arizona, 451 US 477 (1981).
9. New York v. Quarles, 52 USLW 4790 (1984).
10. Nix v. Williams, 52 USLW 4732 (1984).
11. Moran v. Burbine, 54 USLW 4265 (1985).
12. Brown v. Mississipi, 297 US 278 (1936), Chambers v. Florida, 309 US 227 (1940), Ashcraft v. Tenessee, 322 US 143 (1944), etc…
13. Texto produzido e adaptado a partir das ementas dos casos mencionados, bem como doutrina norte-americana (biblioteca da Suprema Corte e John Jay College of Criminal Justice/ City University of New York).
São Paulo, junho de 2000.
José Carlos Gobbis Pagliuca é Promotor de Justiça em São Paulo, mestrando em Direito Processual Penal pela PUC/SP e doutorando em Direito Penal pela UNED/Madrid