Autor: Cleber Lopes (*)
O processo penal, como instrumento de reconstrução da história, jamais correspondeu de modo satisfatório às expectativas da sociedade, e por isso mesmo nunca se mostrou suficiente para cumprir a missão do sistema punitivo, entendida aqui como a repressão das condutas violadoras do direito posto, dentro de uma perspectiva de que o crime sempre estará entre nós, cabendo ao judiciário penal mantê-lo em níveis toleráveis.
Algo bem diferente ocorre com a criminalidade, que sempre esteve organizada e capaz de penetrar cada vez mais nas estruturas do estado, produzindo consequências danosas em todos os campos e acentuando o sentimento geral de que algo precisava ser feito para combater o crime organizado.
O legislador bem que tentou cumprir a sua parte, editando leis para criar tipos penais, incrementar as penas para condutas tidas como graves, mas nada disso se mostrou capaz de resolver o problema, por razões óbvias, mas que precisam ser sempre lembradas para que os ingênuos percebam que o Direito Penal não irá mesmo resolver o problema da criminalidade, cujas causas são complexas e as soluções passam por uma série de providências, dentre as quais certamente a repressão penal, mas em termos e modo compatíveis com a função do sistema punitivo.
Feito esse pequeno histórico, faremos uma reflexão sobre o instituto da colaboração premiada, à luz da lei de regência, levando em conta também a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, ao examinar a Questão de Ordem da petição 7.074, de relatoria do ministro Edson Fachin.
Pois bem. O primeiro aspecto a ser considerado é o fato de que a lei 12.850/13 não criou no ordenamento pátrio — até por que não poderia fazê-lo —, a justiça negociada, vigente, por exemplo, nos Estados Unidos, de modo que é preciso levar em conta que o acordo de colaboração embora não tenha a participação do magistrado, na sua elaboração, será sim por ele julgado em momento processual próprio.
Nesse particular, veja-se que não poderia ser diferente, pois a lei é clara em dizer que o “juiz poderá, a requerimento das partes” conceder os benefícios que a própria lei estabelece, o que mostra de modo incontrastável que a palavra final sobre a eficácia da colaboração é do órgão judicante, e ponto!
O que tem causado toda a controvérsia, exposta durante o julgamento levado a efeito pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao examinar a questão de ordem já referida, é exatamente a forma do acordo, ou seja, são as cláusulas e condições que o Ministério Público tem estipulado, diga-se de passagem, sem qualquer previsão legal, fazendo surgir a discussão sobre a dimensão jurídica da decisão que homologa o acordo.
Para a maioria dos ministros da Suprema Corte, parece certo que o magistrado ao homologar o acordo, assume o compromisso de que os benefícios ali prometidos pelo Ministério Público haverão de ser cumpridos, salvo se o colaborador não cumprir a sua parte, ou seja, o estado deve garantir ao delator que ele fará jus, por exemplo, ao perdão judicial se cumprir o que acertado com o MP.
Penso eu, com todas vênias, que o erro está exatamente na forma do acordo, pois a lei não diz que nessa fase do procedimento, devam ser estabelecidas as consequências da colaboração. E a razão é óbvia, pois somente depois de instruído o feito é que se saberá se a colaboração rendeu ao estado os resultados contidos no artigo 4º e seus incisos, da lei 12.850/13, para que o juiz possa reconhecer em favor do corréu colaborador os benefícios descritos no mesmo dispositivo.
Não tenho dúvida de que a estratégia adotada pelo Ministério Público, é exatamente seduzir o investigado, com a promessa de “lote no céu”, comprando, assim, a delação a um preço muito caro e criando todo esse embaraço para o Poder Judiciário. Também não tenho dúvida de que a longo prazo, prevalecendo essa forma de acordo com a promessa de perdão, penas irrisórias, regimes diferenciados, ou até imunidade, teremos a banalização do instituto na medida em que muitos juízes irão deixar de confirmar os termos desse negócio e os investigados irão pensar duas vezes antes de delatar os colegas do crime.
Em uma palavra, penso que o acordo deve estar limitado à pertinência temática e aos demais aspectos da legalidade formal, devendo a discussão sobre a eficácia ser estabelecida ao tempo das alegações das partes, sobretudo por que o terceiro delatado pode impugnar os elementos de convicção produzidos a partir da colaboração, como também a defesa do colaborador pode pedir mais do que o Ministério Público possa requerer em favor do acusado, cabendo, como já disse, ao juiz decidir sobre os benefícios a serem reconhecidos.
Da maneira como se está fazendo, além subestimar a importância do juiz nesse processo, o acordo ganha ares de propaganda enganosa, pois não me parece razoável antevê, na aurora da investigação, que a colaboração terá a eficácia compatível com o máximo de benefício que a lei prevê, que é o perdão judicial. Insisto nisso, pois mais dia menos dia, os investigados, vendo que o Ministério Público não tem a palavra final sobre a eficácia do acordo, dirão que foram enganados para fazerem a delação.
Não quero aqui nem discutir o absurdo que tem ocorrido com a utilização da prisão como instrumento de coação para que os investigados venham a fazer delação, pois isso parece que já foi percebido pelo Supremo Tribunal Federal, que saberá corrigir tal distorção no memento certo, mas não posso deixar de registrar o impacto psicológico do encarceramento, sobretudo quando a autoridade policial, ou o Ministério Público se apresentam com a promessa dos benefícios da lei, a partir da colaboração, que só interessa quando o preso diz o que se quer ouvir.
Autor: Cleber Lopes é advogado criminalista em Brasília.