MP não pode dispor de interesses fiscais na colaboração premiada

Autores: Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Nathalia Hoffmann Monteiro de Castro (*)

 

A colaboração premiada consiste num dos principais instrumentos estatais para a efetividade da persecução penal. Prevista em diversas leis especiais, tais como a Lei 8.072/90 (artigo 8º), a Lei 9.613/98 (artigo 1º, §5º), a Lei 11.343/06 (artigo 41) e a Lei 9.807/99 (artigos 13 e 14), e até mesmo em tratados internacionais (Convenção de Palermo e Convenção de Mérida), teve sua disciplina inicialmente vinculada apenas à delação de coautores e partícipes.

Mais recentemente, o legislador autorizou outras formas de auxílio, deixando claro que a delação premiada é somente uma das espécies do gênero colaboração premiada. O instituto também evoluiu quanto aos prêmios legais: inicialmente restrito à redução de pena, hoje permite até mesmo o perdão judicial.

O regramento mais pormenorizado está estampado na Lei 12.850/13. Essa técnica especial de investigação criminal (meio extraordinário de obtenção de prova)[1] ganhou enorme notoriedade em virtude da operação “lava jato”, e tem sido bastante utilizada pelos investigados e réus para auxiliar na busca da verdade. Não há dúvidas quanto à sua natureza dúplice, porquanto não se resume a mero instrumento persecutório do Estado-Investigação e Estado-Acusação, consistindo também em estratégia de defesa.

Possuem legitimidade [2] para celebrar o acordo de colaboração premiada tanto o delegado de polícia quanto o membro do Ministério Público (artigo 4º da Lei 12.850/13), em razão de o primeiro ser o presidente do inquérito policial (artigo 144 da CF e artigo 2º, §1º da Lei 12.830/13) e o segundo ser o titular da ação penal pública (artigo 129, I da CF e artigo 24 do CPP).

Importante ressaltar que a celebração de colaboração premiada possui certos limites, cujo desrespeito pode acabar culminando na declaração de sua ineficácia perante a Fazenda Nacional.

É consabido que cabe à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional representar a União nas causas de natureza fiscal (artigo 131, §3º da CF e artigo 12, V da Lei Complementar 73/93). Deve, por isso, representar e defender judicialmente os interesses da Fazenda Nacional para garantir a recuperação de créditos tributários. É a PGFN quem representa o sujeito ativo, titular da competência para exigir o cumprimento da obrigação tributária.

A defesa do crédito público possui certamente um papel fundamental:

O Estado brasileiro baseia-se em receitas tributárias. Um texto constitucional como o nosso, pródigo na concessão de direitos sociais e na promessa de prestações estatais aos cidadãos, deve oferecer ao Estado instrumentos suficientes para que possa fazer frente às inevitáveis despesas que a efetivação dos direitos sociais requer. O tributo é esse instrumento. [3]

No âmbito de operações de combate a corrupção, muitos créditos tributários são apurados pela Receita Federal quando descobertos os crimes perpetrados contra a ordem tributária e contra o sistema financeiro.

Pois então. Sabe-se que um dos possíveis resultados da colaboração premiada é a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito do delito (artigo 4º, IV da Lei 12.850/13). Ou seja, o órgão de acusação pode realizar o acordo em relação a um dos efeitos secundários extrapenais da condenação (artigo 91, II do CP).

Todavia, o fato de o Ministério Público Federal ser o responsável pela denúncia de crimes em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (artigo 109, IV da CF) não significa que possa transacionar os interesses fiscais da União, imiscuindo-se em área fora do seu alcance de atuação. Não tem o MPF atribuição para dispor do crédito tributário, direito sobre o qual a Administração Pública só pode abrir mão mediante lei especifica (artigo 150, §6º da CF).

Nesse panorama, a natureza negocial destes acordos (negócio jurídico processual personalíssimo)[4] impede que atinja terceiros, no caso a Fazenda Pública. Sendo assim, havendo cláusulas nos acordos de colaboração premiada firmados por devedores tributários que liberam do confisco bens como carros, imóveis e obras de arte (instrumento, produto ou proveito do crime), seus efeitos se restringem ao campo penal. Não gera reflexos sobre a Fazenda Nacional o acordo de transferência de certos bens para esposas e familiares ou mesmo a liberação de bens do cumprimento da obrigação de mitigar o dano causado pelo crime.

Portanto, o bem liberado dos efeitos da seara penal pode perfeitamente ser constringido para satisfação do crédito tributário. Afinal, este crédito prefere a qualquer outro, ressalvados os decorrentes da legislação do trabalho ou acidente de trabalho (artigo 186 do CTN).

Desta forma, os acordos de colaboração celebrados não excluem a possibilidade de execução de bens para satisfazer crédito tributário, mesmo tendo havido liberação ou transferência de bem em acordo com o MP.

Ademais, também são inválidas as cláusulas que destinam ao Parquet uma porcentagem dos valores devolvidos pelos investigados ou acusados. Inclusive porque, como ressaltou o Ministro Marco Aurélio, “não há como, sob o princípio da razoabilidade, cogitar-se de uma carona no que é cobrado, seja em decisão criminal, seja em acordos. Não consigo conceber que se tenha considerado que o órgão público receba uma espécie de gorjeta”.[5]

O Supremo Tribunal Federal,[6] contrariando iniciativa do Ministério Público Federal, decidiu que não se afigura razoável limitar a restituição à vítima e direcionar parte dos ativos repatriados a outros órgãos públicos. De fato o artigo 91, II, b, do Código Penal estabelece, como um dos efeitos da condenação, “a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso”. Mas, como se nota, o dispositivo legal ressalva expressamente o direito da vítima. E o silêncio eloquente da Lei 12.850/13 não autoriza aplicação analógica enviesada do artigo 7º, §1º da Lei 9.613/98 para autorizar o negociante a destinar, de antemão e a si mesmo, bens, direitos e valores em relação aos quais não houve declaração de perda, mas apenas voluntária entrega.

Portanto, independentemente do acordo firmado pelo Ministério Público, nada impede que valores e bens, produtos ou proveitos de crime, negociados nos acordos de colaboração premiada, sejam destinados para a reparação dos danos causados à União.

 

 

 

 

 

 

Autores: Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp e especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF. Professor da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola do Ministério Público do Paraná, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná. Professor Coordenador do Curso CEI e da Pós-Graduação em Ciências Criminais da Faipe.

 Nathalia Hoffmann Monteiro de Castro é procuradora da Fazenda Nacional, especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.


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