Por Armando Rodrigues Coelho Neto
Uma Polícia Federal limpa, eficiente, cidadã, distante inclusive, das perniciosas ingerências políticas, tem sido a defesa intransigente da Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal. Longe de se permitir ser confundida com uma entidade meramente corporativista, sua posição tem sido de cautela, em especial nas questões delicadas em que seus associados possam vir a figurar como suspeitos de corrupção.
O momento de comoção, porém, nos intima a lembrar que o Estado Democrático e de Direito se consolida, não necessariamente pela liberdade plena, mas também pela liberdade relativa e com responsabilidade. Para consolida-lo, os indivíduos abrem mão de uma parcela daquele bem maior em favor da coletividade e passa a mover-se através da clicherizada trilha em que, a liberdade de alguém termina exatamente onde tem início a do próximo.
Assim, o grupo social abre mão da liberdade plena, elege lideranças às quais outorga poderes para agir em seu nome, conferindo-lhes os instrumentos necessários para, com legitimidade, decidir os impasses individuais e coletivos. Nesse diapasão, esse mesmo grupo cria não só mecanismos controladores dos atos coletivos, mas também atos especiais, típicos de quem concentra o poder de decisão, de forma a proteger o indivíduo ou a coletividade dos abusos desse mesmo poder, leia-se, o Estado.
Assim, ao mesmo tempo em que a sociedade confere poderes ao Estado, cria instrumentos de controle para que ela própria não se converta em vítima dos poderes que conferiu, para que o Estado não se converta em tirano, nem que o criador se torne vítima da criatura. Quando o faz, se consolida através de leis protetivas do indivíduo, tornando-se a lei, o instrumento limitador da ação do indivíduo e do Estado. Disso deriva que a sociedade precisa acreditar e respeitar essas normas, ou não haverá Estado. Ou quem sabe, desenvolver as ações necessárias que possam promover o aperfeiçoamento das leis ou sua exclusão do ordenamento jurídico.
Apesar dos freios e balanços, direitos e garantias individuais, assistimos hoje o linchamento moral de membros da polícia, do Judiciário, das organizações civis, sobre quem pesam indícios desfavoráveis. Um deles chegou a dizer: “Não se surpreendam se daqui a dez anos eu for absolvido”. Caso se concretize o vaticínio e seja ele um mero inocente técnico, urge reconhecer que a única condenação ou sanção que terá sofrido terá sido mesmo o escárnio pela imprensa, o linchamento moral. Aliás, é o que tem acontecido na maioria das vezes, exercendo a imprensa o fundamental papel de lavar a alma do brasileiro, cansada de tantos escândalos, seguidos de impunidade.
Nesses casos, ficam evidentes a dicotomia ou paradoxo entre o fato jornalístico e o fato jurídico. O primeiro seria todo o acontecimento naturalmente interessante ou inusitado que, quanto mais repercussão, comentários e derivações possam despertar, mais jornalístico será. Aliás, bem ao gosto do jargão redacional onde o cachorro que morde o homem não é notícia. Notícia é e será, com certeza, o homem que morder o cachorro. Já o fato jurídico, seria todo aquele que viole, altere ou repercuta num bem jurídico socialmente protegido, com no mínimo conseqüências nas esferas civil, penal e ou administrativa.
Incontáveis são os fatos jornalísticos coincidentemente jurídicos cujo final feliz ou infeliz na esfera judicial acaba frustrando o gran finale do fato jornalístico. O Direito é quase um jogo técnico, um diabólico exercício kelsiano, urdido para garantia do cidadão de bem e não para beneficiar o criminoso. Mas este, enquanto inserido nos mecanismos protecionistas do Estado, acaba mergulhando nos instrumentos de freios e benesses, que permitem a um Senador, por exemplo, violar um painel e depois valer-se do recurso técnico da renúncia para voltar com a carga toda para o reinos dos mortais, com o beneplácido da ordem jurídica.
São instrumentos legais que engordam nosso ordenamento jurídico, na prática responsáveis pelo assassinato do final feliz esperado pela sociedade. A ópera bufa do fato jornalístico é encerrada com um final melancólico, imposto pela sentença judicial. Com isso, acaba-se aumentando na população o sentimento de impunidade. O anticlímax promovido pela imprensa não tem seu equivalente final na sentença. O final esperado do fato jornalístico se dissocia da realidade jurídica, marcada pelo direito de defesa, direito à imagem e conjugado ao paradoxo da liberdade de expressão versus direito de imagem e de exercício do jornalismo, num insolúvel e aparente conflito de normas. Eis a antítese direito de imagem versus interesse público, este último, pretenso legitimador de eventuais anomalias jurídicas.
O conflito interno nos divide entre Lysander Spooner e Hans Kelsen. Mais que isso, ao mesmo tempo em que a alma cidadã torce para que, em sendo verdadeiras as imputações hoje feitas, tenham os culpados as condenações jurídicas e sociais à altura de suas culpas, a alma cristã torce para que tudo não passe de um pesadelo. Embora essa mesma alma cristã a tudo rejeite e chegue até a aplaudir a eficiência impactual de resultados da denominada Operação Anaconda, uma luzinha de alerta se acende: a lição primária dos bancos de escola. Entre elas, direitos humanos, direito de defesa, presunção de inocência, pressupostos que nos intimam à reflexão.
Não se pode esquecer os pífios resultados no Judiciário, de ações similares em Pernambuco e que atualmente documentos sigilosos são revelados às escâncaras e ao arrepio da lei, com a tolerância e cumplicidade da imprensa, da sociedade, dos meios jurídicos. O Ministério Público ou sabe-se lá quem noveliza e espetaculariza fatos jurídicos, através de capítulos e pílulas de factóides que alimentam o noticiário. A presunção de inocência corre o risco de sucumbir ao clamor público. Noutras palavras, as regras do jogo estão quebradas e é sobre isso que nos cabe refletir.
Muito embora já se tenha dito que as leis e as salsichas, melhor não saber como são feitas, elas aí estão como referência. Reformá-las será preciso e talvez tenhamos que trilhar o caminho das exceções. É impossível conceber que aquele investido do poder do Estado, dele se desinvista para se omitir ou que dele se prevaleça em proveito próprio, em detrimento do coletivo.
Assim, com a independência que nos é peculiar, a mesma que nos tornou um policial imprestável, inservível e abominável para todos os gestores da Polícia Federal, todos governos – dos ditadores aos novos republicanos – dos neoliberais aos stalinistas, urge dizer que o referencial ainda é a Lei, a Constituição. O linchamento moral pode até lavar nossa alma, mas o aperfeiçoamento da Democracia e do Estado de Direito estão em cheque. Mas, Roma quer ver sangue e os leões estão famintos.
A ópera bufa do fato jornalístico é encerrada com um final melancólico, imposto pela sentença judicial. Com isso, acaba-se aumentando na população o sentimento de impunidade.
Armando Rodrigues Coelho Neto é delegado