Recentemente segmentos da magistratura, da OAB, entre outros, recriminaram as operações da Polícia Federal pela maneira como abordaram altos integrantes do Poder Judiciário. A crítica mais contundente foi sobre o uso de algemas para conduzir os suspeitos, haja vista serem eméritos magistrados.
Longe dessa controvérsia, a CCJ do Senado aprovou o uso de pulseira com GPS em presos, a qual permitirá o monitorando daqueles elementos perigosos à sociedade.
Embora sejam distintas, essas duas circunstâncias travam embate sublinear. De um lado, situam-se as elites ratificando suas benesses. De outro, o povo amargando suas penúrias. Essa discussão não é deslocada, pelo contrário, é apropriada para que injustiças não sejam perpetuadas.
A questão de tratamento desigual a magistrados acusados de corrupção exemplifica bem. A investigação da Polícia Federal conseguiu chegar aos figurões da máfia dos bingos e caça-níqueis, e entre eles estavam graduados agentes públicos. A despeito do sucesso dessa operação, ela suscitou o debate do uso ostensivo de algemas em pessoas consideradas inofensivas. Contudo, isso só ganhou dimensão porque os envolvidos acreditam pertencer a uma classe distinta, julgam-se acima das leis.
É curioso. Apesar de todo perigo que circunda o crime organizado, como é caso do esquema de jogos ilegais, os magistrados ligados a ele são considerados inofensivos. Daí o uso de algemas foi descabido.
Nessa situação e noutras, as algemas são necessárias, pois não servem apenas para prender, mas também para resguardar o policial de possíveis investidas. O risco da atividade policial não tem como se nortear na alegação de “aparentemente inofensivo”. Porquanto qualquer pessoa surpreendida numa situação ilícita pode praticar atitudes inesperadas, sobretudo quando correligionária do crime organizado.
Sobre o uso de algemas tramita no Congresso Nacional projeto visando sua regulamentação. As pessoas inofensivas e não violentas prescindirão dos malfadados braceletes. Aplicar-se-á, notadamente, aos criminosos de colarinho branco e autoridades corruptas. A justificativa é que essas pessoas praticam crime do tipo intelectual, o qual não implica violência.
Destarte, há pessoas que não podem ser algemadas e outras sim. Há crimes intelectuais e crimes tolos. O dano e a apropriação indevida do patrimônio público, onde se desviam milhões de reais, seriam os crimes intelectuais. Já o furto de bugigangas, de míseros reais, seriam os crimes tolos.
No primeiro caso, o uso de algemas é uma afronta à integridade da pessoa, bem como da instituição para qual serve. No segundo, a algema só não é suficiente. É preciso cadeia para o delinqüente, e ainda pulseira para monitorá-lo diariamente.
Defender que certas autoridades não possam ser algemadas —como as demais pessoas comuns, por que isso macula a imagem da instituição a qual se vinculam— é no mínimo aviltoso. Aliás, tal fato só favorece a pessoa do acusado, que por ser notório e ter cometido crime de escopo intelectual, não pode ser submetido a constrangimento.
Até mesmo o cerceamento da imprensa foi aventado quando o crime envolver magistrados federais. Afinal, não bastam aos integrantes do Poder Judiciário, bem como de outros Poderes, as garantias, o foro privilegiado e as imunidades?
Muitas das vezes aquele pobre que comete o crime do tipo tolo o faz por necessidade. Enquanto as autoridades que dilapidam intelectualmente os cofres públicos o fazem por ganância.
Não se tece aqui apologia aos pobres marginalizados. Contudo, rechaço a insensatez de autoridades abastadas, as quais se valem das prerrogativas institucionais para cometer atos ilícitos e prosseguir impune. As elites dirigentes, que administram, fazem leis e dizem os direitos, atuam diligentemente em causa própria. Arquitetar maneiras exclusivas para prisão de magistrados tão-somente mostra como elas trabalham para manter o status quo.
A utilização de pulseira em presos ou apenados em liberdade condicional é medida salutar. Entretanto, muito dos que apóiam essa inovação criticam o velho uso de algemas em autoridades apanhadas em ações ilícitas. Essa contradição reporta-nos à gênese da discriminação social. Decerto, isso em vez de preservar as instituições, transmite a sensação de que elas consentem com a balburdia praticada por seus agentes.
Em nossa cultura “macunaímica”, o combate a qualquer tipo de crime só será efetivo quando as leis, assim como as algemas e pulseiras, não evocarem a distinção de classe, de posição social. Ou seja, enquadrem indiscriminadamente ladrões pé-de-chinelo, traficantes, magistrados, parlamentares, promotores, policiais; enfim, seja quem for.
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Alexandre Pereira Rocha é cientista político e mestre pela UnB (Universidade de Brasília)