Este nosso sintético estudo foi feito a propósito do Encontro jurídico continental sobre a Alca, realizado na Universidade Metodista de Piracicaba (SP), entre os dias 29 e 31 de agosto de 2003, em que integramos o grupo que se propôs raciocinar sobre o mundo do trabalho, dentro do que se convencionou chamar “Acordo de Livre Comércio das Américas (Alca)”.
Por uma dessas coincidências que a vida nos proporciona, quando convidado a tratar sobre esse tema, estava lendo alguns textos filosóficos da escola de Frankfurt, especialmente de Theodor Wiesengrund Adorno.
Adorno, como Marcuse, Walter Benjamin e Horkheimer, marcaram suas obras por imprimir à filosofia uma atitude radicalmente crítica diante da história política e cultural. Fizeram-no a partir da década de vinte do século passado.
No caso de Adorno, duas características unem-me às suas reflexões: a postura crítica e o gosto pela música, o que retira, de certo modo, a frieza do estudo das matérias de modo mais aprofundado, dando-lhe acordes e graça.
Está na hora de os estudiosos do Direito fazerem o mesmo em relação a sua matéria, abandonando um dogmatismo triste que orienta nossa disciplina. Sejamos inquiridores, zetéticos. Valorizemos as perguntas, em vez das respostas. Em nosso hábito dogmático, por vezes, abandonamos questões fundamentais à descoberta do direito real, o direito das ruas, o direito da vida dos povos, que em muitas ocasiões se contrapõe ao direito posto. Por isso, símbolos adquirem importância. Uma linguagem simbólica permeia tudo isso. E aqui veremos basicamente a questão sob essa ótica.
É essa a meada que orienta o meu raciocínio aqui exposto: uma tentativa de “adornar” a exposição. E o farei com uma dupla pretensão — a de buscar em Adorno a inspiração da crítica e a graça da música, trazendo adornos ao pensamento, sob a inspiração do que nós, brasileiros, temos de mais particular nesse universo fracionário das Américas de que se constitui a Alca: a língua portuguesa e a linguagem adotada pelos mentores desse negócio.
É nela que me inspirarei para raciocinar sobre o tema, assim como Adorno se valia da música para raciocinar filosoficamente — na conjunção de palavras, nos seus duplos sentidos e seus significados simbólicos.
Deixo a análise técnico-jurídica e econômica do acordo aos circunstantes de mesa, que certamente formularão raciocínios e trarão informações melhores que às minhas. Na verdade, o Alca, exceção feita a uma enunciação meramente eufemística do trabalho, não trata, não quer tratar e pouco respeita as questões trabalhistas.
Nas entrelinhas lê-se tudo isso. Principio por afirmar que a abreviatura Alca e a sua expressão completa me suscitam uma profunda antipatia. Isso porque se compõe de quatro termos impróprios àquilo de que verdadeiramente representa: “Acordo” de “Livre” “Comércio” das “Américas”.
A expressão “acordo” não soa bem se empregada nesse contexto. Não estamos a acordar absolutamente nada. Os meios de imposição seletiva dos interesses que permeiam a Alca, a sua preparação que vem sendo realizada há anos, por meio da modificação do substrato jurídico que está fixado em cada futuro país membro, tudo isso revela que a assinatura final do ajuste será pouco mais do que uma pantomima. Uma peça cênica. O processo de adequação necessário já está em curso e as tensões que lhe são naturais já estão presentes entre nós.
Tampouco entendo seja que “livre”. O adjetivo derivado de liberdade é outro símbolo falso. Não há e não haverá liberdade no comércio entre as nações do continente. Nem mesmo nos blocos regionais que se formaram há liberdade comercial. Tampouco a qualificação de livre alude ao termo acordo, já que de acordo não se trata e não seria razoável crer que houvesse uma livre imposição de algo.
Também não tratamos apenas de “comércio”. Tampouco estão integrados todos os países das Américas, senão aqueles que aquela nação que se arroga o título de “América” deseja incluir. O Alca corresponde a uma fração do projeto de poder norte-americano. Uma das faces do império.
O fato é que os quatro vocábulos parecem muito idílicos para a designação do quanto representa o nosso tema. Lindos, eufônicos, evocadores de bons momentos da vida, de concórdia, liberdade, intercâmbio e vinculação continental.
Ainda me valendo da linguagem como centro do raciocínio, notemos como há uma utilização simbólica de termos impróprios.
Em inglês, usam o termo FTAA, proveniente de “Free Trade Agreement of Américas”. Seria melhor e mais própria à língua inglesa a utilização da abreviatura AFTA, de “Américas’ Free Trade Agreement”, como se usa Nafta para o tratado da América do Norte.
Afta, como uma patologia, uma ulceração, recidiva, que queima a língua, com acidez perturbadora, parece ser um vocábulo mais adequado ao nosso objeto de estudo.
Para facilitação, porém, dada a generalização do termo, retomaremos a designação Alca. Mas, vez em quando, digamos Afta. Até para que isso nos proporcione o cumprimento daquela promessa inicial, de informação e folguedo, estudo e graça, mantida a rotina imposta pela sina brasileira de transformar a própria desgraça em motivo de riso, em objeto de humor, sem que percamos a seriedade da questão.
Feito esse intróito, já se observa que, quando se trata de estudar a Afta ou a Alca, é preciso estabelecer um raciocínio preliminar de afastamento da mistificação pela linguagem. Separemos então o que há de verdadeiro e o que há de mentira nessa idéia de livre comércio das Américas. Para iniciar, então, separemos verdades e mentiras, a “Alca Vera” da “Alca Peta”. Aqui buscaremos ver o que a Alca traz.
A “Alca Vera”
Cingindo-me ao mundo do trabalho, podemos dizer que a verdadeira Afta, a Alca real, já está permeando o Brasil e atenta contra os demais países americanos.
A partir de 1966, com a queda efetiva do instituto da estabilidade decenal, tênue proteção que se estabelecia com alguma efetividade contra a dispensa arbitrária, estamos sendo preparados para o que viria a ser a Alca. O processo de redução de garantias legais para os trabalhadores tem pleno curso há trinta e sete anos
Desde então, vimos numa constante preparação legislativa de um processo de “integração” econômica, que pressupõe a “desintegração” de valores jurídicos trabalhistas. Institutos como estabilidade, contratação direta, formalidade no trabalho, propósitos de melhoria das condições de trabalho como pressuposto da negociação coletiva, limites legais mínimos de proteção trabalhista têm sido agredidos para a criação de uma situação de suposta inevitabilidade da Alca. Situação esta apresentada como a única via, a última solução para os problemas da América Latina, esvaziada de conteúdo econômico, de inserção internacional, de auto-estima. Evapora-se tudo isso. Não ficamos um país, mas um Alcalóide em evaporação.
A partir de um processo de perda da identidade do valor dos trabalhadores, constrói-se a perda de identidade nacional, a supressão do sentimento de nacionalidade necessária à imposição da Afta.
Em um bloco de trinta e quatro países, dois — e somente dois — estão juridicamente formatados por uma tradição contratualista, da família da common law. Outros trinta e dois têm tradição romano-germânica, de prestígio às leis cogentes, que retiram da voluntariedade das partes o último comando.
Um raciocínio lógico nos permitiria concluir que um processo de integração pressupusesse a adoção, pela minoria, das tradições majoritárias. Mas é claro que, em se tratando de Afta, não se cuida do império da maioria, mas da maioridade do império, da sua capacidade de impor aos demais o seu modo de vida, de lucro, de pensamento, de substrato jurídico, de trabalho e de exploração do trabalho alheio.
É preciso, sob a ótica americana, fazer com que se assente no espírito dos “parceiros” a imagem déica da Alca Déia, da Deusa Alca, ou, como dizem os portugueses, a Alca Deia.
A “Alca Peta”
A grande peta, a carapeta mais vil, o maior embuste que o conceito da Alca embute, no âmbito do mundo do trabalho é o argumento flexibilizatório.
Para os que lhe sustentam, a supressão de direitos seria necessária para possibilitar ganhos econômicos, o que constitui, na verdade, no âmbito trabalhista, a grande mentira preparatória das condições jurídicas de instalação da Alca.
A Argentina, cuja legislação social mais tenha sido suprimida em atenção aos interesses de “integração”, talvez represente a síntese do quão nociva pode ser para uma sociedade a adesão incondicionada à tese da flexibilização trabalhista, preparatória do “livre comércio”.
Uma vez cumprida a lição de casa, afastados inúmeros direitos históricos e suprimido o substrato jurídico garantidor de condições mínimas de trabalho, não vieram os investimentos prometidos. Ampliaram-se a remessa de lucros, a fuga dos capitais especulativos que se instalaram no país, apropriando-se da beleza simbólica do termo liberdade, e da riqueza efetiva que o país produzia, em benefício de terceiros.
A Alca não é déica, não é solução senão para ampliação de mercados cativos. Um método colonial da grande colônia americana, que aprendeu rapidamente a imperar.
Estamos sendo cooptados pela Alca gueta (ninharia). Por pouco. Pior que isso. Nossa inserção no processo tem sido já realizada. Silenciosamente.
Esse processo não se faz de chofre, rapidamente. Nós não vamos Alca chofrar, aderir de supetão. Já estamos sendo Alcalentados há tempo…
A própria assinatura da Alca é uma mentira. Um outro ato simbólico, que representa o desfecho de um processo do qual já vimos sendo vítimas.
É preciso então Alca balar. Conspirar contra esse método de imposição sub-reptícia de projetos imperiais.
Antigamente, entre os senhores feudais, convencionou-se impor aos súditos um imposto terrível. A vassalagem era obrigada a pagar à suserania um tributo cujo nome hoje nos é uma pérola para lembrança analógica: a Alcavala.
E de fato há outra Alca vala. Uma enorme vala entre nós. Um abismo somente comparável ao Grand Cannyon. Planícies e planaltos econômicos, jurídicos, sociais, culturais, trabalhistas, aspectos que vem sendo terraplenados, segundo os desígnios do império, sem respeito à beleza desse relevo.
É isso que faz a Alca bala, a Afta rápida, que se seguirá à assinatura simbólica. A terraplenagem será feita com métodos mais livres de supressão de nossas identidades. A adequação dos trinta e dois aos dois, liderados por apenas um.
A construção de um Alcacér, um castelo suntuoso simbólico do império.
Mas há uma forma de resistir. Poderemos criar uma Alca nossa. A harmonização de direitos trabalhistas a partir dos blocos fracionários, como o Mercosul, o Pacto Andino. Aproveitar os comandos constitucionais brasileiros e argentinos, que impõem a esses grandes países o privilégio da construção de um bloco, antes que o americano, latino americano, em que possamos redefinir os parâmetros.
Notar que o mundo do trabalho não é o mundo do comércio. O trabalhador que aufere seu salário, mais que comercializar sua capacidade, está adquirindo valores adjacentes ao trabalho que chegam a superar, em importância, aos valores econômicos expressos pela remuneração. Dignidade, inserção social, cidadania, liberdade de auto-determinação.
Observar que há aqui símbolos importantes, como Alcatraz, Al Cadeia, Alcagueta, Al Qaeda, Al Capone, Alcavala, tudo isso é apenas constatar o drama.
Basta que reconheçamos, como pressuposto, que nem tudo é comércio, nem tudo é negócio. Há aspectos em que o voluntarismo, a afirmação das vontades contratuais, a liberdade de contratação, podem ser aplicados. Entretanto, há outros que não admitem a imposição dessa mentira do livre comércio.
Impor esses limites é o nosso desafio. E isso apenas a sociedade civil, democraticamente organizada, é capaz de fazer. Instituições como a Abrat têm buscado cumprir o seu papel. E temos dois recentes episódios felizes. Um, quando da tentativa, no governo passado, de estabelecer a absoluta (e não livre) negociação coletiva, em prejuízo de direitos dos trabalhadores. O ataque a direitos históricos nos fez histéricos. E vimos que não estávamos sozinhos. Por mais que se tivesse investido em propaganda governamental, buscando lograr a população, essa compreendeu o sentido da proposta e tratou de afastá-la do cenário político daquele momento.
Mas essas mesmas intenções permanecem latentes no governo atual, no Fórum Nacional do Trabalho. Estamos vigilantes. Recentissimamente, o governo afastou outro projeto largamente precarizante do trabalho, que dizia respeito à terceirização de mão de obra. Estávamos lá, atentos e atuamos firmemente contra a queda de mais essa barreira.
Terraplenar direitos trabalhistas não se fará sem resistência. Mais que isso, proporemos avanços. Reciprocidade é o mínimo que se espera em qualquer acordo, em qualquer contrato, em qualquer negócio.
Se os benefícios não forem genericamente distribuídos, se houver desproporção inadmissível, caberá ao direito o papel de sobrepor-se aos acordos.
Construir essa rede de proteção legislativa. Mais que resistir, avançar é a nossa missão. Grande passo deu o Brasil com a eleição de um governo de natureza popular. Esperamos que não se perca a oportunidade de compreender esse processo.
Negociar é importante. Mas não pode ser base desse sistema o pressuposto da liberdade absoluta de negociação. Estamos vendo nascer e impor-se o laisser faire, laisser nègocier… É o liberalismo com o último resquício de boa fé perdido. Laisser faire, laisser nègocier, mais ne laisser pas passer ou payez les ouvriers.
Há limites. Suprimir a capacidade de resistência das pessoas e dos países nas ante-salas de negociação não é negócio. É o império da força, cujos excessos sempre foram uma das razões para a imposição do império do direito.
Luís Carlos Moro é advogado trabalhista em São Paulo, professor universitário, ex-presidente da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas, membro da Comissão Nacional de Direitos Sociais da OAB e representante do Brasil na Associação Latino-americana de Advogados Trabalhistas (ALAL).