“Ora, uma coisa são garantias constitucionais, outra coisa os direitos, de que essas garantias traduzem, em parte, a condiçãode segurança política ou judicial. Os direitos são aspectos, manifestações da personalidade humana em sua existência subjectiva, ou nas suas situações de relação com a sociedade, ou os indivíduos, que a compõem. As garantias constitucionaisstricto sensu são as solenidades tutelares, de que a lei circunda alguns desses direitos contra os abusos do poder”. Rui Barbosa
Os últimos acontecimentos merecem uma reflexão detida à luz dos fundamentos que embasam um Estado Democrático de Direito. De início, destacamos que, em um sistema republicano, nenhum cidadão possui um direito de não ser investigado ou processado. Os que cometerem crimes devem ser responsabilizados. Não há, portanto, justificativa plausível para, por motivações político-ideológicas, proteger uns e perseguir outros. Entretanto, uma Democracia Constitucional pressupõe o reconhecimento de garantias individuais que devem orientar toda a atuação do Estado-juiz, tais como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e vedação de provas ilícitas. Essas garantias não devem ser vistas como um obstáculo à punição de pessoas que praticaram ilícitos, mas sim como condições de possibilidade de um processo judicial democrático. Ignorá-las é retroceder a um modelo de estado de exceção.
No contexto de uma intensa polarização política que se vivencia no país há alguns meses, surgem na imprensa gravações de conversas entre o ex-presidente que estava assumindo um ministério e a atual mandatária. O curioso é que eram interceptações telefônicas feitas no mesmo dia em que foram produzidas. Em meio a reações em torno do conteúdo da conversa, apresentada pela grande mídia sob a versão de prova inequívoca de desvio de finalidade do ato de nomeação do ex-presidente a ministro da Casa Civil e, pior ainda, de suposta obstrução à Justiça por parte da presidente da República, alguns questionamentos precisam ser levantados por quem tem preocupação com o Estado Democrático de Direito.
A interceptação telefônica está limitada por dois dispositivos constitucionais.
No primeiro deles, o artigo 5º, X, há uma consagração da intimidade como direito fundamental. Trata-se, aqui, de norma principiológica:
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
O segundo dispositivo é mais específico. Nele, também no artigo 5º, a própria interceptação telefônica é vedada, sendo, excepcionalmente, permitida sob reserva de jurisdição, quando voltada exclusivamente a investigação criminal ou a instrução de processo penal:
XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Essa não é uma norma principiológica. É uma regra, não passível de aplicação proporcional ou de ponderação. Na distinção feita por Rui Barbosa, em epígrafe, temos uma norma declaratória de direitos, consagrando a intimidade, e uma garantia que protege especificamente a comunicação telefônica. Vê-se, então, que o direito à intimidade, base da proteção constitucional do sigilo das comunicações telefônicas, não é absoluto, podendo sofrer restrições mediante reserva legal. Assim, em uma investigação criminal, pode ser necessário interceptar ligações telefônicas, mas, para isso, é preciso que a autoridade judicial a determine e dentro dos parâmetros legais. No caso, cuida-se da Lei 9.296/1996, que disciplina o procedimento de interceptação telefônica.
O episódio envolvendo a presidente da República suscita uma questão extremamente delicada: poderia o magistrado ter levantado o sigilo e divulgado para toda a mídia o conteúdo da informação objeto da interceptação telefônica? A Constituição consagra, também no artigo 5º, a publicidade dos atos judiciais, prevendo, ainda, hipótese de exceção:
LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.
Percebe-se desse comando que a preservação da intimidade dos que foram interceptados deve ser garantida pelo sigilo, e isto constituir um dever do juiz. O magistrado alegou que não havia intimidade ou interesse social a proteger. Neste ponto, parece-nos que agiu contra a Constituição. O dispositivo que veda a interceptação telefônica transforma o meio em inviolável. A exceção precisa ser interpretada restritivamente. Não cabe ao magistrado fazer o controle do conteúdo dos diálogos e decidir se há ou não intimidade a proteger. Tanto é assim que a Lei 9.296/1996, em seu artigo 8º prescreve que:
A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas.
Desse modo, preceitos constitucionais e legais vedam a divulgação de conteúdos obtidos mediante interceptação telefônica, pois eles apenas devem se prestar ao andamento do processo judicial, e não para exposição indevida dos diálogos, especialmente quando objetiva-se causar constrangimentos públicos dos envolvidos. Em síntese, ao juiz se reconhece o poder de decretar a interceptação telefônica, mas também o dever de manter essas informações sob sigilo. Na hipótese de o conteúdo não ter utilidade para o processo judicial, deverá o juiz inutilizar a gravação, como determina o artigo 9º da citada lei:
A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada.
Essas considerações nos mostram que, caso ao Judiciário seja reconhecido o poder de controlar o conteúdo dos diálogos e decidir se há ou não intimidade a proteger, especialmente quando há autoridades envolvidas com prerrogativa de foro, os riscos para os indivíduos e para os direitos fundamentais são enormes. Ao não encontrar crime em uma comunicação interceptada de um executivo de uma empresa, por exemplo, um magistrado não pode divulgar os conteúdos das conversas, nas quais há intrigas entre executivos, estratégias de atuação em conflitos na empresa, informações sobre relações entre empresa e poder público, e, ainda, conteúdos atinentes a relações familiares e afetivas? A divulgação transforma a sociedade em juíza do conteúdo dos diálogos, em um julgamento moral incontrolável, algo que nada tem a ver com a autorização excepcional para a interceptação telefônica que a Constituição prevê. Claramente, autorizar a divulgação viola a Constituição e é um ato de excesso de poder praticado pelo juiz da causa. Zelar pela democracia, pela Constituição e pelas regras do jogo é providência mais que oportuna em tempos de instabilidade política e social como a que temos hoje instalada no país.
Pode-se questionar, ainda, o fato de que, nas interceptações, tenha sido encontrada informação sobre autoridade com prerrogativa de foro (presidente da República). Nesses casos, deve a autoridade judicial remeter a informação para a instância com atribuições para investigar, e a investigação ser autorizada pelo juízo competente. Em outras palavras, o juiz de primeira instância passou a ser incompetente a partir do momento da identificação do diálogo com a presidente da República, em virtude da prerrogativa de função assegurada a esta pela Constituição. Como dito anteriormente, o regime republicano não se coaduna com a existência de cidadãos acima do bem e do mal, e mesmo quem exerce a Presidência do País pode ser investigado, processado e condenado, desde que sejam seguidas as normas constitucionais e legais para tanto. Nem mais, nem menos.
A decisão judicial parece, assim, configurar-se quase que como um manifesto (sem forma, nem figura de juízo) contra ato de nomeação do ex-presidente Lula para ministro da Casa Civil, do que propriamente uma mera decisão interlocutória. Mesmo que essa tenha sido uma prática recorrente do juiz na operação “lava jato”, nesse caso específico, há de ter-se em mente uma distinção crucial: estava em causa a gravação de diálogo da presidente da República, pessoa que — pela Constituição, repita-se — somente pode ser investigada a requerimento do procurador-geral da República, a quem, pois, em caráter sigiloso, deveria ter sido remetida a interceptação, caso haja suspeita de que houve prática de crime. Não foi o que aconteceu. A gravação chegou, curiosamente, às mãos da grande mídia, antes mesmo de chegar à Procuradoria Geral da República, o que revela a existência de motivação política da decisão judicial. Ademais, a interceptação da conversa do ex-presidente com a atual presidente foi captada horas depois da decisão de encerramento das interceptação, realizada pelo magistrado. Vale indagar como, em menos de uma tarde, a imprensa conseguiu localizar justamente a conversa gravada após haver a liberação do sigilo de dezenas de horas gravadas? Ao que parece da leitura dos fatos, alguém próximo ao processo de investigação “vazou” cirurgicamente a conversa para a mídia. Ou seja, a fronteira do direito em algum momento se viu invadida pela política. E os direitos fundamentais, enquanto trunfos contra as maiorias e as arbitrariedades, se viram tragados pelas ações estratégicas injustificadas constitucionalmente.
Importante destacar, também, que tem sido frequente o argumento de que referida nomeação ao cargo de ministro da Casa Civil configuraria fraude processual e um atentado à função jurisdicional. No imaginário coletivo, há uma associação entre prerrogativa de foro e impunidade. No presente caso, muitos têm como certo que o ex-presidente Lula seria beneficiado pelo STF, composto majoritariamente por ministros indicados pelo governo petista. É preciso observar um aspecto fundamental. Em primeiro lugar, ter prerrogativa de foro no STF significa submeter-se a julgamento único, do qual não cabe qualquer recurso à instância superior. Sem tal prerrogativa, eventual processo correria no juízo de primeiro grau, com possibilidades de inúmeros recursos para o TRF, STJ e, finalmente, para o próprio STF. Em segundo lugar, não nos parece que o STF possa ser vista como uma Corte benevolente. Ao contrário, o tribunal tem, ultimamente, se revelado bastante atuante e ágil no processo e julgamento envolvendo elevadas autoridades públicas. Não podemos esquecer que foi a mesma Corte que conduziu o processo do “mensalão”, resultando em efetivas condenações de pessoas ligadas à própria cúpula do governo à época. Aliás, seu relator, o então ministro Joaquim Barbosa, foi um dos mais contundentes na punição dos réus e foi indicado pelo ex-presidente Lula. E o atual relator, ministro Teori Zavaski, tem agido severamente em casos de corrupção (veja-se o exemplo da prisão do senador Delcídio, prisão determinada pelo ministro Teori mesmo fora da hipótese constitucionalmente prevista para prisão de parlamentar federal. Trata-se, portanto, de uma prova inequívoca de altivez e independência da corte, quadro que não deve ser alterado agora.
Desse modo, vemos com preocupação o modus operandi de parcela das instituições judiciárias que, em nome da punição a qualquer custo, distorce preceitos legais, ignora garantias constitucionais e cede a pressões políticas indevidas. O Poder Judiciário deve decidir com base na legalidade democrática e na Constituição. Por isso, concedemos-lhe garantias de independência, para que seus membros não tenham que se preocupar com a opinião pública traduzida ao sabor da grande imprensa. O juiz que cede ao clamor social, que se rende à lógica do sucesso midiático, que conclama a população em busca de apoio social, não honra a função que exerce, desconhece os fundamentos de um Estado Democrático de Direito e contribui com a anarquia social.
Artigo produzido pelo grupo Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq), formado pelos professores Adriana Rocha de Holanda Coutinho, Flávia Danielle Santiago Lima, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira, José Mário Wanderley Gomes Neto, Luiz Henrique Diniz, Marcelo Casseb Continentino e Marcelo Labanca Corrêa de Araujo.