Autor: Lenio Luiz Streck (*)
Escrevo este avulso sobre o espetáculo que foi a denúncia contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Antes disso, tenho que falar sobre um predador do direito: a moral. Peço paciência. É curtinho. Se eu tivesse que resumir em pouquíssimas palavras o problema fulcral do direito nos últimos dois séculos, faria uma pergunta: “o que fazer com a moral?” Sim. Essa é a batalha que estamos travando há tanto tempo. O século XIX “resolveu” o problema “aprisionando” a moral. Na verdade, excluiu-a do direito, a partir das três formas de positivismo jurídico: o exegetismo francês, a jurisprudência dos valores alemã e a jurisprudência analítica inglesa.
No esgotamento do positivismo clássico, exsurgiram diversas formas de superação. Na verdade, era a vitória da vontade sobre a razão. Escola do Direito Livre, jurisprudência dos valores, enfim, vários modos de trazer de volta a moral. No século XX Kelsen foi o primeiro pós-exegetista. Procurou “resolver” o problema da moral excluindo-a não do direito, mas, sim, da ciência jurídica. Depois veio Hart, o positivista inclusivo ou soft positivista. Seu aluno, Dworkin, abriu uma nova discussão sobre pós-positivismo ou não-positivismo. E os que lhe seguiram, como Raz, Shaphiro (positivistas exclusivos), Waluchow (inclusivista da cepa). No entremeio, o pós-positivismo cunhado por Friedrich Müller. E Alexy, que se diz um não positivista inclusivo. Ainda Luhmann, Habermas e tantos outros. Veja-se quantas formas e modos de tentar enfrentar esse mostro epistêmico: a moral. E, é claro, os demais predadores clássicos do direito – a política e a economia.
De minha parte, construí a Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) para me juntar a todos esses bravos e valorosos combatentes. Também procuro dar minha contribuição para o enfrentamento dos predadores do direito. Claro: aos predadores exógenos, acrescentei um novo inimigo, os endógenos. Na verdade, descobri esses inimigos que sempre estavam ali, escondidos: falo da discricionariedade, do decisionismo, do “decido conforme minha consciência”, do positivismo jurisprudencialista (o direito é aquilo que o judiciário diz que é), enfim, todos os “inimigos” que fragilizam o direito por dentro.
Pois assistindo ao espetáculo proporcionado pelos jovens procuradores da República na apresentação da denúncia contra o ex-presidente Lula, fiquei com a certeza de que perdemos a batalha. O direito foi invadido (e quiçá, já substituído) pela moral e, pior: pelo moralismo, sua vulgata que contém tudo o que devemos afastar de uma análise jurídica na democracia — os desejos pessoais, a visão pessoal de mundo, as ideologizações, etc.
Claro que membro do MP ou juiz não são neutros. E não são alfaces. Dentro de cada um bate um coração. Subjetividades. Sim, sei de tudo isso. Mas se um agente político do Estado não souber suspender esse pré-juízos, então não poderia ter assumido cargo desse jaez. Aplica-se o direito por princípio. E não por política ou moral(ismo). Ora, em uma democracia, o réu ou a parte no juízo cível não podem depender das paixões ou idiossincrasias do acusador e/ou do julgador. Não vamos ao judiciário para saber o que o juiz (ou o procurador) pensa pessoalmente sobre determinado assunto. Ali é o Estado que fala. E não o que o procurador pensa sobre o mundo.
Preocupa-me — e posso falar disso porque passei longos 28 anos no Ministério Público — que hoje seus membros façam juízos morais e políticos cada vez que convocam uma coletiva e apresentam uma denúncia.
Dizer que o ex-presidente da República — por intermédio de um espalhafatoso organograma — era o comandante de um esquema de corrupção e não o denunciar pelo crime de chefiar uma organização é no mínimo temerário, beirando a irresponsabilidade. Se ele é o comandante “máximo”, então o MPF tem de dizer, tecnicamente, a quem ele comandava e o modus operandi (há um belo texto de Oscar Vilhena Vieira sobre isso). Existem tipos penais para isso. Mas tem de apresentar isso tecnicamente. Conforme preceitua o Código de Processo Penal. Surpreso, descubro que, agora, as denúncias já têm até sumário e introdução. Já não denúncias. São longas narrativas. Falta só terem matrizes teóricas. E metodologia.
Quantas vezes, como membro do ministério público, refiz minhas denúncias para tirar as adjetivações. E nunca convoquei coletiva para dizer que estava acusando alguém. Nunca chamei o praticante do pior crime de “meliante” ou adjetivos do gênero. Se dizia que fulano comandava o crime, denunciava-o por formação de quadrilha (na minha época era assim). Por que pensava que, antes disso, tinha uma coisa chamada “ação penal”. E o devido processo legal. Sim, isso existe. E, doa a quem doer, deve ser respeitado.
Portanto, na democracia juízes e membros do ministério público devem conter seus anseios, suas paixões, suas subjetividades. A sociedade não os paga para opinarem sobre política ou moral. A sociedade não os paga para dizer se a política conduzida por um governante é boa ou ruim. Tampouco os remunera para tecerem considerações morais. Um ato é criminoso ou não. Simples assim. Se a acusação vier acompanhada de adjetivos, já fica claro que a imparcialidade está viciada. Bingo, pois não?
Esta semana não foi mole. Além de tudo isso, ainda li a carta que o ex-ministro da justiça e procurador da república Eugênio Aragão escreveu a Rodrigo Janot, atual procurador-geral da República. A carta é uma resposta ao discurso de Janot no dia da posse da ministra Cármen Lúcia como presidente do Supremo Tribunal Federal. Ali, Janot falou do trabalho desonesto (sic) feito para desconstruir a imagem de investigadores da lava jato. A acusação foi genérica, mas Aragão “vestiu a carapuça” (sic) e resolveu responder a Janot publicamente. O que me interessa dizer — para além das desavenças públicas de ambos — é que, pela leitura da carta, descobri(mos) os bastidores da nomeação de um procurador-geral da República. E descobri que a minha querida ex-colega de doutorado Ela de Castilho foi quase nomeada… não fosse a rápida ação do então amigo de Janot: o subscritor da carta, o procurador e ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão. Ou fiz uma leitura equivocada da carta aberta?
Fiquei curioso, de qualquer modo, entendendo bem ou não o conteúdo da missiva: por qual razão Aragão conta esses detalhes da nomeação de Janot? Será que ele se deu conta da frase “Quando ouvimos boatos de que a mensagem ao Senado, com a indicação da Doutora Ela, estava já na Casa Civil para ser assinada, imediatamente agi, procurando o Ministro Ricardo Lewandowski, que, após recebê-lo, contatou a Presidenta para recomendar seu nome”? Ou seja, não fosse a intervenção de Aragão – vejam a frase “imediatamente agi” — , Ela de Castilho teria sido PGR. Ao que li, foi isso que aconteceu.
Autor: Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.