Não existe monopólio sobre racismo, tampouco o “racismo reverso”

Autores: William Douglas e Irapuã Santana do Nascimento da Silva (*)

 

A questão racial tem sido centro de acalorados debates. Recentemente, foi requentado o tema do racismo reverso. Afinal, é possível que minorias étnicas sejam racistas e discriminem outras pessoas? Existe o chamado “racismo reverso”?

Entendemos, com o apoio da doutrina, que o racismo pode ser praticado por qualquer pessoa contra qualquer pessoa. Daí a impossibilidade de se cogitar uma espécie de reversão. Não é que não exista racismo reverso porque minorias não possam ser racistas: não existe racismo reverso porque todo e qualquer racismo é… racismo!

De fato, especificamente no Brasil, a despeito de possuir maioria negra, quando a pauta é racismo, o primeiro pensamento é na sua faceta estrutural, de brancos contra negros. Mas uma pergunta precisa ser enfrentada: essa é a única forma pela qual o racismo se revela? Evidentemente que não.

A discriminação ou o preconceito racial estão presentes em diversas discussões, quando falamos em barreiras imigratórias, por exemplo, que não necessariamente se encaixam na dicotomia “branco x negro”. Com isso, é possível enxergar o racismo como um conceito genérico de prática abusiva contra uma pessoa em virtude de sua origem étnica, que possui diversas maneiras de se apresentar. Não há, pois, qualificação posterior sobre quem tem capacidade para praticar ou sofrer, de modo que se afasta, num exercício de lógica, a ideia do racismo reverso.

Se qualquer pessoa pode praticar racismo, admite-se que um negro seja o autor do crime? Sim.

A Polícia Militar é, mercê de sua atividade de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, uma das instituições públicas mais cobradas em relação ao tema. A Polícia Militar, anote-se, é a que mais mata e mais morre no mundo. Em pesquisa realizada pela Anistia Internacional no Rio de Janeiro, aponta-se que, do total de vítimas da violência policial, entre 2010 e 2013, 99,5% eram homens. Além disso, quase 80% eram negras e 75% tinham idades entre 15 e 29 anos.[1] Contudo, ao observarmos sua estrutura pessoal, a Polícia Militar tem sua maioria formada por policiais negros, como exposto pelo Ministério da Justiça em seu último relatório do perfil das instituições de segurança pública.[2] Os policiais de praça, os que abordam e fazem a revista e vão para os confrontos, contam com 51% de negros. O quadro acima expõe o chamado perfil racial, que leva a Polícia a abordar como suspeitos de cometimento de crime indivíduos de pele negra (preto ou pardo) — é uma realidade no país e no mundo.[3]

A lógica de que “não existe racismo reverso” é tão equivocada que se fosse reconhecida levaria a excluir a natureza ilícita de qualquer ato racista eventualmente praticado por metade dos integrantes da Polícia Militar.

Assim, o racismo praticado pela Polícia é, muitas das vezes, por negros contra outros irmãos da mesma raça. Uma música que ressalta bem o vivido pela relação entre negros e Polícia é que “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.[4] Temos, por conseguinte, um típico exemplo em que negros podem, sim, praticar racismo.

Destarte, tomada apenas a perspectiva sociológica, o senso comum e o discurso repetidamente alardeado caem por terra. Passando para a esfera jurídica, a ideia de que negros não podem praticar racismo contra qualquer membro de outra etnia fica ainda mais difícil de defender.

Outro problema. Sempre que alguém se põe contra as ideias mais radicais de alguns militantes de qualquer movimento social, imediatamente são chamados de “traidores da causa”. Esperamos que nosso artigo seja avaliado de acordo com seus argumentos e não por ataques ad hominem.

Há a necessidade de explicar tecnicamente a diferença entre o crime de discriminação racial — ou racismo em sentido estrito — e a injúria racial, visto que, num debate comum, concentramos tudo no mesmo local: racismo.

O crime de racismo está definido pela Lei 7.716/1989 e consiste no tratamento diferenciado e depreciativo de uma pessoa exclusivamente por sua “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, impedindo-a de obter acesso a determinado bem, serviço ou lugar em razão de sua condição.

Ao seu lado, encontramos o crime de injúria racial, previsto no artigo 140, § 3°, do CP, que se define como a ofensa à dignidade de um indivíduo, utilizando referências a elementos de “raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. Como ensina Rogério Greco,[5] no crime de injúria “a finalidade do agente é atingir a honra subjetiva da vítima[…]. Ao contrário, por intermédio da legislação que definiu os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, são proibidos comportamentos discriminatórios, em regra mais graves do que a simples agressão à honra subjetiva da vítima, mas que, por outro lado, também não deixam de humilhá-la”.

Na acepção jurídica do tema, nada impede que um negro ofenda a dignidade de alguém ou o impeça de entrar em algum lugar por pertencer a uma etnia diferente. Não há impedimento legal para que qualquer pessoa seja processada por crimes de cunho racial.

Há um caso emblemático muito reportado sobre a caça aos albinos na Tanzânia e em Malauí, com crimes de mutilação e homicídios dessas pessoas, simplesmente pela impossibilidade de seus corpos de produzir melanina. Obviamente não são de etnias diferentes, mas sua condição pessoal de nascença impõe um alvo sobre suas cabeças.[6]

Ora, o principal argumento favorável à tese de que possa inexistir o chamado “racismo reverso” é a existência de um sistema de opressão, uma relação de poder institucionalizado que pressiona determinados grupos para baixo e que esse grupo marginalizado não teria capacidade de gerar uma ferida passível de ser reprimida ou questionada.

Não queremos, nesta reflexão, “tapar o sol com a peneira” e dizer que esse sistema de opressão não está presente em nossa realidade, muito pelo contrário: essa é a premissa básica e comum em nosso posicionamento. Ambos os articulistas militam há vários anos na causa racial justamente para dar sua contribuição, mesmo que modesta, ao combate a um país ainda inundado de racismo contra os negros e de profundas injustiças sociais. Ninguém ignora a sub-representação da população negra no parlamento, nos tribunais, nos cargos públicos, nos cursos de mestrado e doutorado e, apesar das cotas, nas universidades. Igualmente, nas gerências e nas escolas, empresas e restaurantes de classe média e alta; ninguém ignora a super-representação de negros nas camadas mais pobres, nas estatísticas de violência urbana, nos presídios e nas condições sub-humanas. São realidades inquestionáveis e igualmente inaceitáveis.

O problema é fechar os olhos para outras possibilidades de violações à dignidade da pessoa. A ofensa à dignidade tem caráter subjetivo, ou seja, quem sofre é o único legitimado para dizer como se sentiu. Aqui, a régua é individual e não segue um parâmetro visto por todos. As únicas balizas exigíveis a toda sociedade estão contidas nas leis mencionadas, que consistem num tratamento depreciativo em virtude de sua origem étnica. Caso houvesse um monopólio acerca de quem pode ou não sofrer o racismo, isso estaria descrito em lei.

A ideia de que alguma raça ou categoria de pessoas possui um salvo-conduto ou imunidade penal para cometer racismo, além de socialmente deletéria, traz consigo um grande erro de genética tipicamente racista: a ideia de que uma raça é melhor ou pior do que outra. Se alguém admite a ideia de que os negros não podem cometer racismo, isto importa em validar moralmente a ideia de que uma raça é melhor do que a outra. Não é por aí que vamos mudar a sociedade nem extinguir o racismo.

A ideia de que não existe o “racismo inverso” ou “reverso” termina por veicular uma espécie de “autorização” (i)moral para que haja um movimento de refluxo, no qual, ao invés de se extirpar o racismo, permite-se sua prática por aqueles que tradicional, histórica e majoritariamente o sofrem. Contra essa ideia, dois negros podem ser citados: Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela, ambos defensores vigorosos da política de não devolver ódio com ódio, nem racismo com racismo. Ambos defenderam com veemência a superação dos ressentimentos e o começo de um novo tempo onde não se permita que ninguém discrimine o próximo. A quem não compreender bem essa ideia, recomenda-se assistir o filme Invictus, estrelado por Morgan Freeman e Matt Damon, assim como a biografia do próprio Mandela, em filme estrelado por Idris Elba.

Justificar agressões de minorias já machucadas pelo opressor não isenta a atitude. Este ato, no máximo, a pena poderia ser atenuada, falando em linhas gerais a serem analisadas diante do caso concreto.

Segundo o ditado: “Dois errados não fazem um certo”. Portanto, não é agredindo de volta que conseguiremos a diminuição da discriminação racial.

Às injustiças histórica e hodiernamente praticadas contra os negros em nosso país, soma-se mais uma: sabemos que sofrer o mal sem revidá-lo exige muita disciplina, serenidade e coragem. Reconhecemos que a natureza humana tende a revidar diante de uma agressão. Então, espera-se essa nobreza de não se devolver o mal com o mal. Embora compreendamos ressentimentos e feridas ainda por cicatrizar, temos que alertar que o Direito não autoriza o racismo nem mesmo para suas vítimas. O artigo 345 do Código Penal diz que ninguém pode fazer justiça pelas próprias mãos. O exercício arbitrário das próprias razões, mesmo quando boas, não é lícito.

A verdade é que temos a esperança que o povo negro se saia melhor do que a nossa sociedade predominantemente branca se saiu em termos de recusar-se à prática do racismo. Na verdade, temos racistas em todas as raças e também antirracistas em todas elas. Precisamos que mais pessoas negras tenham a coragem e a altivez de superar o racismo mesmo após séculos sofrendo suas maldades. Porque, como disse Mandela, basta ver o que o racismo faz para saber que não é um comportamento a ser adotado. Esta ideia também foi propugnada por Jesus que, no Sermão da Montanha, recomendou a fortaleza moral de oferecer a outra face, a da paz, e caminhar mais uma milha.

A lógica da não violência foi utilizada por Gandhi, que logrou libertar a Índia dos ingleses sem disparar um único tiro. As frases que se seguem são dele: “Olho por olho, e o mundo acabará cego”; “Os fracos nunca podem perdoar. O fraco jamais perdoa: o perdão é uma das características do forte”; “O mundo está farto de ódio”.

Nosso alerta é, um, de que a lei é para todos e, dois, de que o melhor enfrentamento do racismo é se opondo ao mesmo em lugar de prestigiá-lo com a criação de “zonas livres” onde possa se reproduzir, ainda que com mão inversa. Não queremos uma sociedade onde o que se discute é quem terá o (infeliz) “privilégio” de ser racista, mas um lugar em que o racismo seja integralmente rechaçado e visto como moralmente errado, e juridicamente inaceitável, venha de onde vier, contra quem quer que seja. Que sempre ele receba de todos a única palavra que lhe cabe: “Não”.

Como disse MLK Jr., e disse isso em tempos de grande racismo contra negros nos Estados Unidos, “podemos ter chegado em navios diferentes, mas hoje estamos todos no mesmo barco”. É essa consciência que falta àqueles que querem criar uma salvaguarda e uma defesa teórica de um sentimento, pensamento e ação que todos devemos eliminar: quando uma pessoa, qualquer que seja ela, trata a outra de forma diferente por conta de sua raça ou cor.

Permanecemos com o sonho daquele que foi preso várias vezes e classificado como inimigo público porque ousou querer que o racismo acabasse:

“Eu tenho um sonho de que meus quatro filhinhos, um dia, viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele e sim pelo conteúdo de seu caráter. Quando deixarmos soar a liberdade, quando a deixarmos soar em cada povoação e em cada lugarejo, em cada estado e em cada cidade, poderemos acelerar o advento daquele dia em que todos os filhos de Deus, homens negros e homens brancos, judeus e cristãos, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar com as palavras do antigo espiritual negro: ‘Livres, enfim. Livres, enfim’”.

Tropicalizando este sonho, repetimos: “Homens negros e homens brancos, judeus e cristãos, protestantes e católicos, umbandistas e neopentecostais, ateus e teístas, heterossexuais e LGBTQ, ricos e pobres, empresários e empregados, poderão dar-se as mãos e cantar com as palavras do antigo espiritual negro: ‘Livres, enfim. Livres, enfim’”.

 

 

 

 

 

Autores: William Douglas  juiz federal, professor, escritor, mestre em Direito – UGF, Especialista em Políticas Públicas e Governo – EPPG/UFRJ. Membro do Conselho Fiscal da Educafro, onde é ativista antirracismo há mais de 20 anos.

Irapuã Santana do Nascimento da Silva   é assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, mestre e doutorando em Direito Processual pela UERJ. Procurador do Município de Mauá (SP). Professor da pós-graduação lato sensu da UniCEUB. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC).


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