Negociação coletiva representa fim de direitos sem revogá-los

Autor: Bruno da Costa Rodrigues (*)

 

A presente reflexão visa delinear o impacto estrutural na autonomia coletiva privada das alterações que convergem ou margeiam o discurso da prevalência da negociação coletiva na reforma trabalhista. Os direitos trabalhistas não possuem inspiração “fascista” como se propaga, pois decorrem de lutas influenciadas pelos movimentos progressistas do final do século XIX e início do século XX, vindo à lume no Brasil como consequência dos movimentos reivindicatórios que ganharam força a partir da primeira década do século XX. A mobilização era tão significativa que havia um temor real de avanço aos meios de produção que fez com que oligarquia exigisse a contenção. E assim, com a implantação do “Estado Novo”, os sindicatos foram institucionalizados mediante a imposição de sindicato único na base territorial, vinculação automática de toda a categoria conforme definição estanque na lei, exigência de autorização estatal para criação e funcionamento, instituição de financiamento compulsório, fiscalização do enquadramento com total controle do Ministério do Trabalho por meio de comissão específica e quadro de atividades previamente definido. O sindicato, então, passou a ser um braço do Estado e este é o único ponto que se pode admitir certa inspiração “fascista”.

Visando a contenção social, o reconhecimento de alguns direitos e a legislação trabalhista existente foram consolidadas em um único diploma, a CLT, e que assim foi institucionalizada no intuito de imputar sua “criação” à Getúlio Vargas (fato conhecido como “mito da outorga”) e desvinculá-la dos movimentos reivindicatórios de modo a tomar a bandeira dos sindicatos, estancar a mobilização, estabilizar os direitos dentro do que os detentores dos meios de produção estavam dispostos a ceder e, sobretudo, evitar o embate direto da negociação coletiva. Este é um ponto chave na discussão de hoje.

O sistema sindical fechado e corporativo serviu para impedir o desenvolvimento do Direito do Trabalho e do sindicalismo pelos próprios atores sociais exatamente para atender aos interesses oligárquicos. Inclusive, o poder normativo da Justiça do Trabalho foi criado nesse contexto para “arbitrar” os litígios dentro dos limites dos interesses da classe detentora dos meios de produção, impedindo o jogo aberto do embate negocial diante da força da mobilização dos trabalhadores à época.

Consigne-se que a CLT foi substancialmente alterada ao longo dos anos, seja por alterações diretas em seu texto ou mediante leis esparsas regendo tipos de contratos diversos. E muitos dispositivos, mesmo mantidos, não mais se aplicam em razão de legislação superveniente, em especial da própria vigência da Constituição de 1988 que estabeleceu um patamar mínimo como garantia fundamental.

O sistema sindical
A mesma classe detentora dos meios de produção que outrora refutava a negociação coletiva hoje se encontra ávida para fazer valer o “negociado sobre o legislado” exatamente porque não há representatividade pelos sindicatos dos trabalhadores como consequência de um sistema que ela própria criou, moldou e corrompeu.

A Constituição de 1988 que, supostamente, teria garantido a “liberdade sindical”, contraditoriamente manteve o sistema baseado em sindicato único (unicidade), não alterando, também, o enquadramento definido em lei e o financiamento compulsório. É neste particular que o sistema sindical se torna anacrônico com a “meia liberdade” na medida em que este “hibridismo” fez o sistema perder sua lógica no contexto corporativo fechado e, ao mesmo tempo, impossível de se encaixar no contexto da liberdade sindical.

A mitigada proibição da intervenção estatal fez extinguir a necessidade de autorização de criação e funcionamento das entidades e colocou fim ao enquadramento estanque definido pela extinta comissão de enquadramento, permitindo, assim, a criação de novas entidades desvinculadas do quadro. No entanto, a manutenção das demais estruturas corporativistas restringiu a possibilidade expansiva de reconfiguração da representatividade na medida em que a principal forma de criação de sindicatos passou a ser a divisão interna daquelas entidades já estabelecidas. É neste contexto que a manutenção do financiamento compulsório impulsionou a desmobilização.

Como o sistema sindical admite a possibilidade da divisão interna por desmembramentos parciais dos sindicatos (artigos 570, 571 e 572 da CLT) em razão de atividades “similares” ou “conexas”, a manutenção do financiamento compulsório e a incessante busca por uma fatia do financiamento fizeram apertar o gatilho para a implosão interna que culminou na pulverização da representatividade sem a criação de qualquer “unidade”, explicando a quantidade de entidades hoje existentes. Ressalvadas exceções setoriais, a realidade demonstra que não há sindicatos de trabalhadores efetivamente representativos, não há liberdade para os trabalhadores escolherem outra entidade que seria mais representativa e não há mobilização de trabalhadores dentro dos interesses de cada contexto profissional com força suficiente para fazer frente a qualquer negociação coletiva.

A realidade da negociação coletiva
A falta de representatividade dos trabalhadores como consequência do sistema sindical anacrônico é uma realidade refletida nos acordos e convenções coletivas que negociam normas para as categorias ou setorialmente para empresas. O artigo 7º, XXVI, da CRFB, elencou como um dos “direitos” dos trabalhadores o reconhecimento das convenções e acordos coletivos. Em se tratando de um “direito”, a única interpretação possível se direciona no sentido de se permitir a negociação acima do mínimo estabelecido em seus incisos, tanto que o próprio dispositivo constitucional ressalva as exaustivas hipóteses em que seus termos podem ser minorados (incisos VI, XIII e XIV). É possível, portanto, reduzir por meio de negociação coletiva um direito desde que se parametrize acima do mínimo e haja contrapartida, assegurando, assim, o patamar da condição social dos trabalhadores inseridos na referida representatividade.

Contudo, a realidade é diversa na maioria das negociações, pois o prejuízo decorrente da desmobilização faz com que as normas coletivas, na prática, passem a rebaixar a condição social dos trabalhadores a patamar muito inferior ao mínimo estabelecido e sem qualquer contrapartida.  E exatamente neste contexto que a Justiça do Trabalho começou a atuar não reconhecendo a validade de tais negociações ou cláusulas. Este tema traz à tona uma das maiores reclamações do setor empresarial em relação à Justiça do Trabalho, porém, o discurso não se sustenta se melhor analisado, pois, em regra, a intervenção na relação jurídica firmada entre os atores sociais somente ocorre no intuito de impedir e anular o rebaixamento social pela norma coletiva quando esta inequivocadamente viola o patamar mínimo previsto no ordenamento. Percebe-se que o discurso de violação da liberdade negocial e da segurança jurídica visa ocultar, na verdade, a perspectiva de formação de normas coletivas que não refletem o resultado de uma efetiva negociação, de modo que a “segurança jurídica” passou a ser veiculada como meio de legitimar a violação de direitos e garantias fundamentais por negociações notoriamente viciadas.

A argumento de que a Justiça do Trabalho é excessivamente intervencionista em relação à autonomia da vontade é enviesado, pois as ideias nesse sentido jamais levam em conta a realidade da representatividade e da capacidade de mobilização atual dos trabalhadores. Salta aos olhos que as inúmeras intervenções no âmbito coletivo visam restabelecer a liberdade contratual coletiva viciada pelo desequilíbrio das forças em embate no processo de formação da norma e, também, tutelar o patamar mínimo elencado como direito e garantia fundamental. A reforma novamente expõe a intenção de prejudicar os trabalhadores quando alça como regra normativa o “negociado sobre o legislado” e, ao mesmo tempo, passa a impedir a Justiça do Trabalho de intervir no caso de desequilíbrio ou violação do patamar mínimo.

Impossibilidade prática de efetiva negociação
Embora o discurso seja da prevalência da negociação coletiva, as alterações nos direitos individuais propostas também impactam com força na representatividade dos trabalhadores. A implantação da terceirização irrestrita, por exemplo, quebra o eixo essencial da relação de emprego e descarta (no âmbito da norma) a evolução doutrinária da subordinação em sua faceta objetiva e estrutural. E esta perspectiva quando inserida nas regras de enquadramento sindical se mostra ainda mais perniciosa, já que implica a constante alteração do sindicato em que o trabalhador se vincula ao se considerar, por exemplo, a ampla possibilidade de substituição do empregador formal nas distintas atividades de uma mesma tomadora, substituição reiterada da empregadora como prestadora de serviços ou destinação do trabalho a diversas tomadoras na mesma relação de emprego, o que impossibilita a mobilização como força em qualquer negociação coletiva.

Mas o principal aspecto é a previsão direta no texto da eliminação de alguns direitos e da autorização ampliada de “negociação individual” para flexibilizar outros, significando, na prática, sua retirada da mesa de negociação coletiva. A negociação coletiva deve representar concessões e contrapartidas e se a lei flexibiliza diretamente, ou remete à negociação individual, subtrai do mecanismo negocial o poder de troca dos trabalhadores. No tocante à “negociação individual”, salvo raras exceções, é notório que o trabalhador se encontra em situação de enorme sujeição que inviabiliza uma autêntica manifestação da vontade. É o que exatamente ocorre com o “acordo de prorrogação de jornada” onde a realidade revela que não há negociação, mas apenas a colheita da assinatura formal do empregado. Outro exemplo é o “acordo” para prorrogação de contrato a prazo determinado em que o empregado, obviamente, não tem como “impor” o prazo indeterminado, sendo que muitas vezes a prorrogação é assinada junto com o próprio instrumento inicial do contrato.

Percebe-se que as destacadas medidas estruturais que inviabilizam qualquer possibilidade de representatividade efetiva estão sendo adotadas conjuntamente com as medidas que retiram as armas de negociação dos trabalhadores. E isto tudo se alia ao eloquente silêncio da reforma na reformulação da estrutura sindical corporativista, revelando a intenção de impedir a paridade na negociação e oferecer o fim da contribuição sindical obrigatória como “propaganda” para convencer a opinião pública na defesa do projeto. Não se nega que a contribuição obrigatória é um entrave, no entanto, somente seria justificada sua extinção se a unicidade sindical também fosse extinta e a definição do enquadramento fosse modernizada, pois da maneira como está sendo retirada tem como propósito manter a impossibilidade de uma representatividade alternativa ao trabalhador que, por sua vez,  permanece vinculado aos sindicatos não atuantes, além de quebrar financeiramente a estrutura existente dos sindicatos atuantes, favorecendo o cenário de cooptação.

Mesmo considerando a existência de norma coletiva autônoma, a reforma também passa a impedir a ultratividade aproveitando-se da exigência do “comum acordo” para a instauração da arbitragem estatal (§2º do artigo 114 da Constituição), pois, no caso da entidade patronal se recusar a negociar e se recusar a aceitar a instauração da instância, os trabalhadores se veem tolhidos da manutenção do patamar social existente e impossibilitados de instaurarem dissídio coletivo econômico, além de ficarem tolhidos de sua própria recusa como elemento negocial. E como a ultratividade é um efeito imposto à sentença normativa pela Constituição República ao determinar que sejam mantidas as disposições de proteção ao trabalho “convencionadas anteriormente”, não faz sentido lógico tal proibição à norma autônoma. Salta aos olhos, portanto, que a proibição da ultratividade visa transformar a exigência do “comum acordo” em um entrave para a manutenção da condição atual com o inequívoco propósito de desequilibrar a negociação coletiva em detrimento dos trabalhadores e propiciar a formação de normas com redução de direitos que, doravante, passam a ser envolvidas pelo “intocável” manto da autonomia coletiva privada. Em outros termos, a previsão constitucional de manutenção dos dispositivos anteriormente convencionados como efeito equiparado à ultratividade somente será possível no caso de instauração do dissídio coletivo que, por sua vez, depende do assentimento justamente da parte que não se interessa pela manutenção da condição atual, revelando que a proposital intenção da reforma é dificultar ao máximo a manutenção das conquistas dos trabalhadores desequilibrando a negociação a ponto de se criar um vazio normativo que sujeita a vontade coletiva à cooptação na hipótese de não existir mobilização com força suficiente para deflagrar a greve.

E na hipótese da existência de alguma mobilização nesse sentido, os responsáveis pelo texto da reforma possuem plena ciência de que o direito de greve vem sendo totalmente restringido por decisões do STF, TST, TRTs, que, por exemplo, autorizam o corte de ponto ou impõem percentual de funcionamento de modo incompatível com a manutenção da força da autotutela, ressaltando-se que até a Justiça Comum vem julgando restritivamente movimentos grevistas com invasão deliberada da competência da Justiça do Trabalho. Ainda neste cenário de mordaça e imobilização da classe trabalhadora em suas armas de embate coletivo, a reforma trabalhista também autoriza a dispensa coletiva de trabalhadores sem a necessidade de negociação com o sindicato, desconsiderando a evolução da jurisprudência consolidada e tratando como letra morta o disposto no inciso I do artigo 7º da CF que garantiu a proteção contra a dispensa arbitrária.

Logo, considerando a “prevalência do negociado sobre o legislado” diante de todo o contexto de desmobilização pela conjuntura econômica, produtiva e sindical, da ausência total de força política ou possibilidade de pressão setorial pelos trabalhadores, da subtração pela própria reforma das moedas que seriam postas em negociação, da inviabilização plena do exercício do direito de greve e da possibilidade de dispensa coletiva sem negociação prévia, o que os trabalhadores poderão apresentar na mesa de negociação? A única possibilidade de “disposição” que os trabalhadores terão para “negociar” será a mitigação dos direitos e garantias fundamentais em troca da mera permanência precária no emprego, circunstância agravada pela impossibilidade da Justiça do Trabalho em reconhecer a nulidade desta viciada “negociação”.

Eis a destruição da estrutura de proteção social da Constituição da República sem que tenha sido necessária qualquer revogação formal de garantias. É o fim dos direitos sem revogá-los.

 

 

 

 

Autor: Bruno da Costa Rodrigues   é juiz do trabalho no TRT da 15ª Região (Campinas).


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