Nem todo município suporta uma procuradoria

Autor: Guilherme Carvalho e Sousa (*)

 

Não é de hoje o debate sobre a necessidade de preenchimento dos cargos de procuradores dos municípios por meio de concurso público. A Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM) batalha, incansavelmente, para o preenchimento dos cargos de assessoria jurídica nos municípios por meio do devido concurso de provas e títulos.

A Constituição Federal de 1988 deu proeminência e dignidade à Advocacia Pública, com destaque à União e aos Estados e Distrito Federal, tendo sido silente em relação aos municípios, tema que tem gerado os mais acalorados debates quanto à possibilidade de assessoramento jurídico nas municipalidades por meio de advogados ou escritórios de advocacia contratados, em suposto desprestígio à realização da função por meios de servidores efetivos.

A par da existência de 5.570 municípios no Brasil, com realidades e cenários os mais díspares possíveis, tramita, no Congresso Nacional, Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que tem por objeto, sinteticamente, a obrigatoriedade de organizar a carreira de Procurador no âmbito municipal.

Ao percorrer os vários períodos da história nacional, há, decerto, marcos importantes, mas, para essa análise, merece realce a previsão contida na nossa atual Constituição sobre a matéria, pois foi a primeira a tratá-la com dignidade constitucional, trazendo inovações importantes e dedicando uma seção específica para versar sobre o tema, além de ter, definitivamente, promovido a sua separação do Ministério Público.

A Carta de 1988 dispensa dois de seus artigos à Advocacia Pública. Logo no artigo 131, a Constituição trata da Advocacia-Geral da União e, a seguir, no artigo 132, aborda a Advocacia Pública nos estados e no Distrito Federal. Não há, contudo, uma menção expressa sobre a Advocacia Pública nos municípios.

Diante da inexistência de norma específica no que concerne aos municípios, tramita, no Congresso Nacional, a PEC 17/2012, que tem por objeto a alteração do artigo 132 da Constituição Federal para estender aos municípios a obrigatoriedade de organizar a carreira de procurador (para fins de representação judicial e assessoria jurídica), com ingresso por concurso público com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, garantida a estabilidade dos procuradores após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho.

Nada obstante o fato de o texto proposto merecer as merecidas aclamações, não se trata de uma alteração constitucional tão simples, e já se explica o porquê. Por mais óbvio que possa parecer, nem todos os municípios brasileiros possuem a mesma realidade. Não é razoável estender o âmbito de aplicação de uma norma jurídica para municípios com cenários completamente distintos.

A distinção que aqui se menciona não é a que se vê em relação às megalópoles, como São Paulo ou o Rio de Janeiro, por exemplo, mas sim a imensa distorção que existe entre municípios de uma mesma unidade federada. A exemplo, veja-se o caso do estado do Piauí, cuja capital, Teresina, possui cerca de um milhão de habitantes, enquanto que há outros municípios, como Tanque do Piauí, cuja população estimada é de 2.719 habitantes no ano de 2017. São cenários completamente díspares e que precisam ser tratados juridicamente de forma diferenciada.

Ao impor uma obrigação para que todos os municípios brasileiros organizem suas procuradorias, a primeira indagação a ser feita diz respeito à possibilidade de todos eles, como o mencionado no exemplo acima, suportarem a estrutura de uma procuradoria, ocupada por servidores efetivos, que ingressam mediante concurso público, com salários que sejam dignos dos cargos que ocupam.

A resposta parece ser das mais óbvias: adianta-se que não. Não existe a mínima possibilidade de existir uma Procuradoria com procuradores concursados nesses municípios, por dois motivos centrais: a um, porque é antieconômico e, decorrente disso, o ente público não suporta manter os cargos; a dois, e mais significativamente, porque não há demanda que justifique a existência do órgão.

A caricatura do exemplo, propositalmente utilizado, de uma cidade de pequeníssimo porte, cuja renda é decorrente, na quase totalidade, de repasses federais ou do Estado, leva a uma série de ilustrações chistosas.

Veja-se: se um município de população aproximada de um milhão de habitantes, capital de um Estado da Federação, possui 34 procuradores efetivos (informação disponível na página eletrônica do órgão), por meio de um simples cálculo chega-se à conclusão de que um pequeno município, como o do exemplo citado (Tanque do Piauí), não pode possuir mais de um procurador. E em caso de férias desse servidor, paralisam-se os serviços ou se contrata emergencialmente algum advogado para fazer a substituição? A situação, por mais jocosa que seja, não é eventual, na medida em que se trata da realidade da maior parte dos municípios brasileiros.

É inquestionável e indiscutível a função que possui a Advocacia Pública para a defesa do interesse público. O cenário ideal deságua para a defesa sempre por meio de advogados públicos efetivos, verdadeiros servidores, que possuam vínculo com a Administração Pública e que não se deixem influenciar pela vontade política, exercendo seus misteres librados de qualquer interferência no campo profissional. Entretanto, nem tudo se passa dessa forma. Assim é que as realidades, distintas, precisam ser verificadas em cada caso concreto, remanescendo ao gestor a margem para a melhor escolha, quando não haja a definição de critérios claros e objetivos para a criação de uma Procuradoria Municipal.

Portanto, a sugestão aqui trazida defende sumamente dois pontos, que, aparentemente antagônicos, são complementares. O primeiro deles é no sentido de que existem municípios que, inarredavelmente, não podem prescindir de uma Procuradoria organizada e estruturada em carreiras, quando haja critérios objetivos para sua criação e, no mesmo plano, existem municípios que, por ausência de demanda suficiente e por falta de recursos, não podem suportar esse mesmo ônus.

O segundo ponto vai ao encontro dos demais. Não existindo uma zona de certeza positiva quanto à necessidade de criação das Procuradorias organizadas em carreira, ou mesmo a existência de uma zona de certeza negativa, concernentemente à completa inviabilidade de criação, e restando uma margem razoável de dúvidas, tal escolha deverá ser político-administrativa, segundo critérios de discricionariedade de quem exerce a chefia do Executivo Municipal, ressalvando a completa possibilidade de controle externo, sobretudo o controle pelo Poder Judiciário, quanto à decisão administrativa, segundo critérios de aferição sempre objetivos.

 

 

Autor: Guilherme Carvalho e Sousa  é doutor em Direito Administrativo e mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-procurador de Estado e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados.


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