No processo penal do espetáculo não existe ressocialização

Autor: Carlos Daniel Ferreira Dias (*)

 

Vivemos num pântano de mentiras, onde nascem monstros cruéis, que sorriem para as objetivas, enquanto, sem que ninguém note, eles já pisoteiam milhões de homens como insetos inoportunos.” Franz Kafka (1884-1924)

Sobre a realidade de o Processo Penal brasileiro ser extremamente kafkiano, não nos resta menor dúvida. A abordagem e perseguição sem qualquer fundamentação ao personagem de Josef K traz uma nítida comparação com nossas agencias criminais e penais. A população carcerária cuja composição é de presos provisórios aguardando sentença por meses e anos, de pessoas com condenações “perpétuas”, e daqueles que não possuem recursos para levar o processo até a última instância do Poder Judiciário, ou seja, ao Supremo Tribunal Federal, revelam quais as fundamentações para manter uma pessoa presa no país: nenhuma ou sadismo mesmo. Nesse caso o direito de ampla defesa é aprisionado junto com o acusado e a luta pela sobrevivência é diária.

O que temos, portanto, é: “milhões de insetos inoportunos” sendo pisoteados constantemente, e por aqueles que sorriem com frequência diante das “objetivas”. Sorriem diante das garantias fundamentais, seladas na Constituição. Sorriem e juram pela manutenção do Estado Democrático de Direito. Sorriem e juram em defesa da Dignidade Humana. Sorriem diante da ressocialização de presos, por um sistema penal que devolva a dignidade do sujeito durante a após o cumprimento da pena. Todavia, sem ninguém note eles pisoteiam a população prisional, e hoje em dia pisoteiam sobre os direitos das pessoas privadas de liberdade de maneira pública, sem disfarce, ali diante de todos.

Sobre a célebre citação de Franz Kafka, a relação que faremos aqui no presente texto é sobre o cinismo embebedado de hipocrisia que infelizmente não tendo mais onde se ocultar, acaba por ser exalado aos quatro ventos e isso ocorre no momento da reintegração social do sujeito após o cumprimento da pena. A sanha punitivista que não se contém, agora resolveu se manifestar entre boa parte daqueles que sempre defenderam condições de cumprimento de pena mais humanizado, mais digno. Os que creem na “Justiça mais justa”, agora, se voltam contra a mesma e fazem dos condenados os seus maiores desafetos. Odiando-os, não admitem que os mesmos, durante ou após o cumprimento da pena, possam retomar a vida externa em meio ao trabalho e vida comum.

Considerando o espetáculo do Processo Penal, em que Casara [i] é categórico, extraímos a seguinte observação que norteará o assunto:

O espetáculo, como já foi dito, sempre aposta na exceção, uma vez que o respeito à legalidade estrita revela-se enfadonho e contraproducente. Nesse contexto espetacular, as formas processuais deixam de ser garantias dos indivíduos contra a opressão do Estado, uma vez que não devem existir limites à ação dos “mocinhos” contra os “bandidos” (a forma passa a ser um detalhe que pode ser afastada de acordo com a vontade do “diretor”). Com a desculpa de punir os “bandidos” que violaram a lei, os “mocinhos” também violam a lei…

Diante do cenário, fica fácil ver a ausência de limites no caso envolvendo a progressão de regime e saída temporária para estudos de Suzane Von Richthofen. A pressão midiática, o clamor popular e a própria Justiça cederam aos desejos da punição desenfreada e muitos se voltaram contra a “justiça justa”, contra a “pena digna”. Os que sorriem diante do Estado Democrático de Direito, pisotearam a dignidade de Suzane, como sendo alguém indigna de saídas temporárias e de retomar a vida em sociedade extramuros. Suzane se negou a gozar do direito da progressão com medo de morrer, recentemente decidiu não estudar por medo, diante da pressão contra os direitos dela, e de todos os cidadãos brasileiros.

Falar do Bruno Fernandes é um pouco sensacionalista, não? É atual o debate sobre ele. O ex-goleiro do Flamengo traz a tona a sanha punitivista através da notícia da sua soltura que ocorreu por meio de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, na semana de Carnaval. Disposto a retomar sua vida após o período da prisão (há quem julgue ter sido pouco o tempo preso, mais de seis anos) Bruno foi sondado por alguns clubes e, segundo a mídia, nove times estariam interessadas no passe do jogador. O suficiente para que boa parte da sociedade e a mídia pressione para que o constituído vilão, sofra um pouco mais na mão da “justa justiça”.

O caso mais recente acredite, enquanto o caso do goleiro Bruno permanece é minha experiência profissional enquanto advogado criminalista, eu, Carlos Daniel Ferreira Dias, atualmente atuo como advogado no escritório de “Soares de Andrade Advogados”. A questão é que cumpri pena por alguns anos, e nesse período concluí a faculdade de Direito e meus estudos permitiram uma excelente colocação nos exames da OAB-RJ. Aprovado, consegui depois de passar pelo Conselho de Ética da Ordem, minha carteira funcional e hoje atuo como advogado.

Atuando em defesa de um cliente, minha atividade profissional tornou-se notícia de um jornal carioca com uma manchete das mais estigmatizante possível e ausente de qualquer possibilidade de eu ser reconhecido com um sujeito “ressocializado”, pai de filhos, um cidadão que cumpriu pena, e de uma pessoa que retornou para a sociedade, após cumprir a pena e buscar uma qualificação profissional. Segundo o jornal, minha condição de advogado é reportada da seguinte maneira: Ex-policial preso por envolvimento com o tráfico atua como advogado do filho de bicheiro.

Não há nada que seja dito, pois no Processo Penal do espetáculo, o “vilão” nunca mais poderá ser um “mocinho”, não existe a tão bem falada “ressocialização”. Parte da sociedade que defende uma “pena justa”, “digna” e “humana” não aceita que pessoas que cometeram crimes possam voltar para a sociedade de maneira qualificada. Ir para Universidade depois de ser acusada de assassinar os pais, voltar a ser jogador de futebol depois de ser acusado de ser mandante de homicídio é, para eles, um escárnio com a Justiça.

No meu caso, ser advogado é assustador para alguns. As pessoas esperam que após a pena, o egresso seja um reincidente criminal, ou uma vítima de execução, no máximo uma pessoa que atue com uma enxada na mão. Não no sentido de reconhecer a virtude do labor agropecuário, mas de desejar ver como punido uma pessoa sob forte sol capinando ou plantando, tendo em uma das pernas uma bola de ferro. Não estamos preparados para ver a tal “Justiça Justa” funcionando, na verdade, punitivista que somos, desejamos que após o crime, o sujeito seja amarrado em um poste e seja assassinado, mas nunca se torne um universitário ou um simples advogado.

Para maiores esclarecimentos jurídicos, vejamos o que a Lei de Execução Penal nos apresenta sobre o trabalho do preso ou apenado, talvez todo o clamor popular seja para que a lei se cumpra, e haja limitações penais que impeça o penitente de atuar como jogador de futebol ou como advogado, pois pode ser que estejamos sendo utópicos demais e desejando que o penitente tenha uma vida social que incomode o status quo.

A Lei 7.210 de 11 de julho de 1984, que institui a Lei de Execução Penal, em seu vigésimo nono artigo [ii], vai falar sobre o trabalho do preso, em especial da remuneração, a lei aprece nesse contexto trabalhista, apenas para controlar a remuneração do preso e para tratar sobre um pecúlio, sim, uma poupança que pelo nome faz referência às reservas de um escravo. O texto legal versa sobre destinar a remuneração à: assistência familiar, pequenas despesas pessoais, ressarcir o Estado e em especial pequenas despesas pessoais, e isso numa sociedade tão consumista como a nossa, é quase que um artigo da lei que trata sobre educação financeira.

Ao que se pode observar no texto da legislação, não há nenhum impedimento em ser advogado, logo, revela-se uma nítida sanha punitivista que não se contém dentro dos parâmetros legais e assedia a todos que transitam com dignidade no caminho da cidadania. Com tantas limitações penais, até mesmo em desobrigar o empregador sobre a admissão segundo as Consolidação das Leis do Trabalho, romper com todos esses ditames da lei e lograr êxito no profissionalismo liberal, torna-se um verdadeiro incômodo. Uma vez egresso do sistema prisional, deixar de ter pecúlios e passar a ganhar honorários é algo extremamente novo e surpreendente, e por certo resulta em reações contrárias das mais diversas.

Assim, certo de que existe uma parcela significativa da população que sorri diante das objetivas e em seguida pisoteia milhões de pessoas, espera-se que os egressos do sistema penal sejam pisoteados, enquanto outros sorriem diante do discurso ressocializador e sobre o Estado Democrático de Direito. Deve ser frustrante para a turma do “pisa pisa” acreditar que egressos serão pisoteados sem as garantias da CLT, recebendo pecúlio, anulados em suas subjetividades, reféns de programas prisionais totalmente exploradores, mas que na verdade, acabam vendo que alguns se insurgem contra essa estrutura esmagadora e conseguem escapar de serem pisoteados e através de sua dedicação, saírem do pântano em que estavam submersos e decretar que por um sistema opressor, esses não serão mais pisoteados.

Não há mais pecúlio, agora são honorários, ou seja, recompensa de honra por serviços prestados. A relação do termo honorário com o termo honra é extremamente válida, assim é de difícil compreensão para os dominantes ver um preso que antes recebia pecúlio (reservas de escravo) agora recebe honorário (pagamentos de honras). Implicar com a minha atuação na advocacia é não admitir que um homem, antes chamado de bandido, fora da lei, presidiário, interno e outros termos mais, agora pode ser chamado de senhor e/ou de doutor e até mesmo pelo nome. Vejam que na manchete meu nome não é citado.

Deve ser inaceitável ver uma pessoa tutelada pelo Estado sendo defendido por outros, agora produzir a defesa de dezenas de pessoas. Para um sistema penal que o nível de escolaridade oferecido não alcança o nível médio, ter um egresso com um pós-graduação no currículo e outra encaminhada deve ser inacreditável. Certamente eles desejam continuar pisoteando antes que sejam soterrados pelo próprio pântano de mentiras que sempre cultivaram em seus discursos. Como eu sobrevivi esse pântano e todo esse pisoteamento, tanto das agências penais como das agências midiáticas, vide o caso em questão, passo aqui pra registrar esse depoimento de um pisoteado e tentar impedir que outros sejam ou continuem sendo pisoteados.

No mais…
Quantos aos encarcerados e egressos,
Sigam firmes na esperança de um futuro de paz.
Como trago comigo um lema:
Ninguém fica para trás!!!

 

 

 

 

Autor: Carlos Daniel Ferreira Dias é advogado e coordenador da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB-RJ.


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