No processo penal não existe o poder geral de cautela

Autor: Rodrigo Capez (*)

 

No processo civil, em face da impossibilidade de o legislador antever todas as situações de risco, outorga-se expressamente ao juiz o poder de conceder a tutela de urgência que reputar mais apropriada ao caso concreto, ainda que não prevista em lei.

Trata-se do chamado poder geral de cautela, anteriormente previsto no artigo 798 do revogado Código de Processo Civil, que admitia a concessão de medidas cautelares atípicas ou inominadas, e agora contemplado como poder geral de editar tutelas provisórias, de urgência ou de evidência, no atual Código de Processo Civil (artigo 297).

Assentada a premissa de que o processo penal é um instrumento limitador do poder punitivo estatal (artigo 5º, LIV, CF), exige-se a observância da legalidade estrita e da tipicidade processual para qualquer restrição ao direito de liberdade.

O princípio da legalidade incide no processo penal, enquanto “legalidade da repressão”, como exigência de tipicidade (nulla coactio sine lege) das medidas cautelares,  a implicar o princípio da taxatividade: medidas cautelares pessoais são apenas aquelas legalmente previstas e nas hipóteses estritas que a lei autoriza.

O juiz, no processo penal, está rigorosamente vinculado às previsões legislativas, razão por que somente pode decretar as medidas coercitivas previstas em lei e nas condições por ela estabelecidas, não se admitindo medidas cautelares atípicas (isto é, não previstas em lei) nem o recurso à analogia com o processo civil.

No processo penal, portanto, não existe o poder geral de cautela.

Nem se invoque a proporcionalidade para legitimar a adoção de medida cautelar atípica, ainda que a pretexto de ser mais favorável ao imputado.

Para Vittorio Grevi, é indubitável o significado garantístico do princípio da legalidade, sob o perfil da taxatividade, por vincular rigorosamente às previsões legislativas o exercício da “discricionariedade” do juiz em matéria de limitação da liberdade da pessoa.

Como aduz Willis Santiago Guerra Filho, a preservação de direitos fundamentais constitui a essência e a destinação da proporcionalidade.

A proporcionalidade, portanto, é um anteparo destinado à proteção de direitos fundamentais, e não uma válvula ajustável ao talante do intérprete para justificar suas violações. A proporcionalidade não pode ser transformada em “gazua apta a arrombar toda e qualquer garantia constitucional”.

A propósito, Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano adverte que, no processo penal, a ponderação dos interesses em conflito não pode conduzir à quebra do princípio da legalidade, de modo que, por mais relevantes que sejam os interesses estatais, não encontra justificação a adoção de medidas legalmente inadmissíveis, ainda que o puro contrapeso dos valores envolvidos no caso concreto aconselhe ignorar o interesse individual em benefício da comunidade.

O crime de coação no curso do processo é um exemplo emblemático.

Em razão da pena máxima a ele cominada não exceder a quatro anos, é vedada a decretação da prisão preventiva (artigo 313, I, CPP), que, originariamente,  somente será admitida se o imputado for reincidente em crime doloso (artigo 313, II, CPP) ou se houver dúvida a respeito da identidade civil do imputado ou se ele não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la (artigo 313, parágrafo único, CPP). Logo, se o autor da coação no curso do processo for primário, o juiz somente poderá impor-lhe medidas cautelares diversas da prisão, reservando-se a prisão preventiva, tão somente, para a hipótese de seu descumprimento.

Diante do princípio da legalidade estrita, não cabe argumentar, para contornar a expressa vedação legal à prisão preventiva originária, com a proporcionalidade e com o interesse público, a pretexto de que “o legislador esqueceu-se do tipo previsto no artigo 344 do Código Penal, quando insculpiu a regra limitativa do artigo 313, I, do CPP” e das “severas consequências, frequentemente irreversíveis, que podem advir da conduta daquele que intimida testemunhas no curso de um processo criminal”.

Não há como, repita-se, placitar esse entendimento, uma vez que, em sede de medidas cautelares pessoais, o exercício do poder jurisdicional está estritamente vinculado ao princípio da legalidade, e a ponderação dos supostos interesses em conflito não pode levar à quebra desse princípio.

Se o crime de coação no curso do processo “envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência”, a prisão preventiva também não poderá ser decretada de forma originária, mas sim de forma substitutiva à medida protetiva de urgência imposta, para garantir a sua execução (artigo 313, III, CPP). É o caso do agente que, proibido de se aproximar e de manter contato com a vítima (artigo 22, III, “a” e “b”, da Lei 11.340/06), usa de violência ou grave ameaça para compeli-la a não comparecer à audiência de instrução designada.

Em suma, as medidas cautelares limitadoras da liberdade reduzem-se um número fechado de hipóteses, “sem espaço para aplicações analógicas ou outras intervenções (mais ou menos criativas)” do juiz, ainda que a pretexto de favorecer o imputado. Trata-se de uma enumeração exaustiva (numerus clausus), e não de uma lista aberta, meramente exemplificativa (numerus apertus).

No contexto do princípio da legalidade, insere-se a questão da condução coercitiva de investigado para prestar depoimento em inquérito policial, objeto, no Supremo Tribunal Federal, da ADPF 395, relator o ministro Gilmar Mendes, ainda não julgada.

Nos termos do artigo 260 do Código de Processo Penal, “se o acusado não atender a intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”.

Analogamente, os artigos 201, § 1º, e 218 do Código de Processo Penal estabelecem que, se o ofendido ou a testemunha, regularmente intimados, deixarem de comparecer sem motivo justificado a ato designado para sua inquirição, o juiz poderá determinar sua condução coercitiva.

Como se observa, a ratio da condução coercitiva é a recalcitrância do imputado, do ofendido ou da testemunha em atender ao comando da autoridade.

Ocorre que, mesmo quando não configurada a prévia recalcitrância, tornou-se usual a determinação judicial de imediata condução coercitiva de investigado à repartição policial, a pretexto de momentâneo perigo à produção de provas, notadamente quando se cumprem simultaneamente outros mandados de prisão e de busca e apreensão. Invoca-se ainda, a necessidade de se evitar que os vários investigados combinem versões entre si.

Essa medida não tem justificação constitucional, haja vista que o imputado tem o direito de permanecer em silêncio. Qual a razão para conduzi-lo coercitivamente para prestar depoimento, se ele goza do privilégio contra a autoincriminação?

Não bastasse isso, excluída a hipótese de recalcitrância em atender ao chamamento de autoridade, não existe previsão legal para a condução coercitiva, ainda que fundada em suposto perigo para a investigação, sendo vedada, como já exposto, a invocação do poder geral de cautela.

Dessa feita, ausentes os requisitos da custódia cautelar, não se pode impor ao investigado a condução coercitiva, ao arrepio do artigo 260 do Código de Processo Penal e do princípio da taxatividade, ao argumento de que se trataria de uma medida mais benéfica que a prisão temporária ou preventiva.

Mais uma vez, não há espaço para aplicações analógicas, ainda que a pretexto de favorecer o imputado.

Finalmente, o princípio da taxatividade (numerus clausus) não se resume às espécies de medidas cautelares legalmente previstas. O próprio rol de exigências cautelares também é taxativo, e não se permite ao juiz justificar a aplicação de uma medida cautelar típica com base em requisitos não previstos em lei.

 

 

 

 

Autor: Rodrigo Capez  é juiz auxiliar no Supremo Tribunal Federal e mestre em Processo Penal (USP).


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