Notas Críticas a Algumas Disposições Criminais do Estatuto do Idoso – Lei n. 10.741, de 1.º de…

Notas Críticas a Algumas Disposições Criminais do Estatuto do Idoso – Lei n. 10.741, de 1.º de outubro de 2003[1]

Crimes de menor potencial ofensivo e Lei dos Juizados Especiais Criminais

“Art. 94. Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal”.

A questão discutível nesse dispositivo diz respeito ao sentido e alcance da norma: desejou o legislador tornar de menor potencial ofensivo os delitos definidos no Estatuto do Idoso cuja pena detentiva abstrata não ultrapasse 4 anos, permitindo, nesses casos, a aplicação dos institutos da Lei dos Juizados Especiais Criminais, como a transação penal (art. 76)? Estendeu-se a toda a legislação novo conceito de crime de menor potencial ofensivo, elevando-se o critério quantitativo da pena a 4 anos. Ou pretendeu somente imprimir o procedimento sumaríssimo[2] da Lei n. 9.099/95, previsto em seus arts. 77 e ss., aos delitos definidos no Estatuto do Idoso?

Haverá duas interpretações:

1.ª) Todos os crimes criados pela Lei n. 10.741/2003, desde que a pena máxima abstrata prevista não ultrapasse 4 anos, são de menor potencial ofensivo. Além do procedimento sumaríssimo, estende-se a esses delitos a transação penal, nos termos da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Por efeito, foi derrogado o art. 61 da Lei n. 9.099/95, que já havia sido derrogado pelo art. 2.º da Lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001. Em face da Lei nova, são de menor poder ofensivo, em nossa legislação, todos os delitos cuja pena máxima abstrata não ultrapasse 4 anos.

2.ª) A todos os crimes criados pela Lei n. 10.741/2003, desde que a pena máxima abstrata prevista não ultrapasse 4 anos[3], é somente aplicável o procedimento sumaríssimo previsto na Lei dos Juizados Especiais Criminais; o Estatuto do Idoso não considerou de menor potencial ofensivo todos os crimes nele descritos, matéria que continua regida pelo art. 61 da Lei n. 9.099/95, derrogado pelo parágrafo único do art. 2.º da Lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001[4]. O Estatuto não derrogou o art. 61 da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Por isso, é incabível a transação penal e o critério dos 4 anos não se estendeu a toda a legislação criminal.

Essa última é a interpretação que acreditamos a mais correta, embora ofereça várias incongruências. Exemplos:

1.ª) No crime de apropriação indébita comum, descrita no art. 168 do CP, o autor pode ser autuado em flagrante. O delito não é considerado de menor potencial ofensivo, não incidindo o procedimento da Lei n. 9.099/95, embora permitindo, em tese, a suspensão condicional do processo[5], cabível em relação a qualquer delito cuja pena mínima não ultrapasse 1 ano. Na fase policial, o autuado é recolhido ao cárcere por não caber arbitramento de fiança pela autoridade policial. Na apropriação indébita de bens, proventos ou pensão do idoso, descrita no art. 102 da Lei n. 10.741/2003, ao contrário, é permitida a lavratura do Termo Circunstanciado, livrando o autor do fato da prisão em flagrante e do cárcere, se assinar o documento. Ora, a Lei nova não visou a assegurar ao idoso maior proteção legal[6], impondo maior severidade na resposta penal?

2.ª) Sujeitar o idoso a trabalho excessivo ou inadequado, causando-lhe lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, crime definido no art. 99, § 1.º, da Lei n. 10.741/2003, recebe tratamento penal bem mais benéfico se comparado com o procedimento previsto para o crime de lesão corporal de natureza grave ou os maus-tratos, previstos nos arts. 129 e 136 do CP. O Estatuto protege o autor do crime contra o idoso e não este. Esse tratamento não estaria atuando com efeito diverso, ou seja, o de incentivar o crime contra pessoa idosa, permitindo ao sujeito ativo receber como prêmio as medidas despenalizadoras da Lei n. 9.099/95?

Ação penal e imunidades nos delitos contra o patrimônio

“Art. 95. Os crimes definidos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada, não se lhes aplicando os arts. 181 e 182 do Código Penal.”

A primeira parte do dispositivo, considerando incondicionada a ação penal por delito contra o idoso, é infantil, ingênua e desnecessária. Toda ação penal é pública incondicionada, salvo disposição em contrário (art. 100 e § 1.º do CP; art. 24, caput, do CPP). Além disso, foi alterado o art. 183 do CP, tornando inaplicável o art. 182 do mesmo código, impedindo, assim, que, em certos casos, seja condicionada à representação a ação penal por delito contra o idoso. Por último, o art. 182 do CP só é aplicável aos delitos contra o patrimônio. Se o legislador silenciasse, o efeito seria o mesmo. E sua manifestação nos revelou que desconhece o tema.

Quanto à segunda parte da disposição, de ver-se o que rezam os arts. 181, 182 e 183 do CP:

“Art. 181. É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo:

I – do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;

II – de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.

Art. 182. Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo:

I – do cônjuge desquitado ou judicialmente separado;

II – de irmão, legítimo ou ilegítimo;

III – de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.

Art. 183. Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores:

I – se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa;

II – ao estranho que participa do crime”.

Ocorre que o art. 110 do Estatuto do Idoso acrescentou um terceiro inciso ao art. 183 do CP, o qual ficou com a seguinte redação:

“Art. 183. Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores:

(…)

III – se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos”. (NR)

Como se vê, não havia necessidade de o art. 95 do Estatuto do Idoso mencionar que aos crimes “definidos nesta Lei” não incidem os arts. 181 e 182 do CP, os quais disciplinam a imunidade absoluta e relativa nos delitos contra o patrimônio, uma vez que, com a inclusão de um novo inciso no art. 183 do CP, a questão já estava resolvida.

O que parece dar maior proteção ao idoso, qual seja, a impossibilidade de aplicação da escusa absolutória do art. 181 do CP, pode ser ineficaz pela aplicação do procedimento sumaríssimo do Juizado Especial Criminal e, ainda, acarretar situações inusitadas, como as duas a seguir expostas.

Se testemunhas presenciam um furto, em que o agente subtrai pequena quantia em dinheiro de seu pai maior de 60 anos, de nada vale a opinião da vítima que, em perfeitas condições mentais, declara não desejar ver seu filho preso por esse ato.

De acordo com a legislação comum, não se pune o autor do furto se o sujeito passivo, seu pai, tem 59 anos de idade, nos termos do art. 181, II, do CP. Em face da Lei nova[7], porém, se o filho tiver 60 anos de idade e apropriar-se de pequena quantia da aposentadoria de seu pai, de 85 anos, responderá pelo crime, o qual é de ação penal pública incondicionada.

Meu pai dizia que o diabo, de tanto mexer no rosto do filho, para que ficasse bonito, furou-lhe o olho. O legislador criminal brasileiro, sem o mínimo cuidado, está mexendo tanto em nossas leis, que elas, já cegas, rondam sem rumo pelo caminho da confusão e da desproporcionalidade, tropeçando em seus próprios erros.

[1] Lei oriunda do Projeto de Lei n. 57/2003 (na Câmara dos Deputados, n. 3.561/97). Data de entrada em vigor do Estatuto do Idoso: 2 de janeiro de 2004, de acordo com o art. 118 do Estatuto e § 1.º do art. 8.º da Lei Complementar n. 95/98, alterada pela Lei Complementar n. 107/2001.

[2] Termo Circunstanciado no lugar do inquérito policial, audiência preliminar etc.

[3] Os crimes cujas penas podem ultrapassar 4 anos estão descritos nos arts. 99, § 2.º, e 107 do Estatuto.

[4] Assim, são infrações de menor potencial ofensivo as contravenções e os crimes a que a lei comine pena máxima abstrata não superior a 2 anos, ou multa.

[5] Art. 89 da Lei n. 9.099/95.

[6] Art. 2.º da Lei n. 10.741/2003.

[7] Art. 183, III, do CP, com redação do art. 110 do Estatuto do Idoso; art. 95 do Estatuto.

* Damásio E. de Jesus
Presidente e Professor do COMPLEXO JURÍDICO DAMÁSIO DE JESUS

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