Nova lei possibilita regularização do domínio fundiário na fronteira

Autores: Celso Cestari e Joaquim Basso (*)

 

Foi publicada no dia 23 de outubro de 2015, a Lei 13.178 que dispõe sobre a ratificação dos registros imobiliários decorrentes de alienações e concessões de terras públicas situadas nas faixas de fronteira, revogando as leis anteriores que tratavam do tema. A lei tem um período de vacatio legis de 45 dias (artigo 5º) e entra em vigor no dia 7 de dezembro de 2015.

A questão da titularidade de terras na faixa de fronteira atormenta juristas há mais de século. A Lei do Império 601/1850, chamada de Lei de Terras, começou por estabelecer, já no seu artigo 1º, que as terras devolutas localizadas na faixa de 10 léguas (66 quilômetros) da fronteira poderiam ser concedidas gratuitamente, em uma política imperial de ocupação das fronteiras e de ampliação da segurança nacional.

Com o fim do Império e a implantação da República Federativa, na Constituição de 1891, transferiu-se o domínio das terras devolutas para os Estados, excepcionando apenas a porção do território “indispensável para a defesa das fronteiras” para a União (artigo 64). Essa porção era a faixa de 10 léguas da Lei de Terras, que foi considerada recepcionada pela ordem constitucional republicana.

Tal distribuição do domínio de terras devolutas (em regra, dos Estados e, na faixa de fronteira, da União) foi reiterada nas Constituições de 1934, de 1937, de 1946 (na vigência da qual, a Lei 2.597/1955 estendeu o domínio da União para 150 Km da faixa da fronteira), de 1967, de 1969 e, finalmente, na Constituição de 1988, que estabelece o domínio da União sobre as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras no seu artigo 20, II.

Além dessa distribuição de domínio, variável ao longo da história constitucional brasileira, outros requisitos para alienação e concessão de terras devolutas em faixa de fronteira também oscilaram ao longo dos anos. Instituiu-se a necessidade de assentimento prévio de um Conselho de Segurança Nacional na faixa de até 100 Km da fronteira (1934) e depois de 150 Km (a partir da Constituição de 1937); e impuseram-se limites de área (variáveis de 2,5 mil a 10 mil hectares ao longo dos diversos regimes) para essas concessões, a partir dos quais seria necessária a aprovação do Senado Federal, Conselho Federal, ou Congresso Nacional, a depender da época.

Contudo, esses diversos e variados regimes de titularidade e de restrições para alienações e concessões de terras devolutas na faixa de fronteira não foram acompanhados pela realidade fática, tendo ocorrido inúmeros atos de privatização de terras sem a observância de tais requisitos, principalmente no que diz respeito às concessões e alienações a non domino, isto é, feitas pelos Estados sobre terras que eram, na verdade, da União.

O mundo jurídico travou diversas discussões acerca da teoria das nulidades dos atos jurídicos nesse tema, principalmente diante do interesse da União de reaver terras para o fim de implantação da reforma agrária, quando passaram a sustentar a completa nulidade do título de origem, que contaminaria com a mesma consequência jurídica todos atos de transferência subsequentes. Essa discussão perpassou por várias importantes manifestações da Advocacia-Geral da União (Parecer M-49, de 04 de novembro de 1940, e I-191, de 19 de setembro de 1972 e L-068, de 13 de junho de 1975) e da Consultoria-Geral da República (Parecer H-485, de 1º de março de 1967).

Prevaleceu, afinal, a orientação de que seria juridicamente possível a ratificação, pela União, dos títulos concedidos e alienados de forma irregular na sua origem, o que, todavia, não afastou inúmeras dúvidas jurídicas sobre o tema.

A Lei 4.947, de 06 de abril de 1966, foi que, finalmente, possibilitou a ratificação desses títulos (artigo 5º, §1º) e o Decreto-lei 1.414, de 18 de agosto de 1975, regulamentou o processo dessas ratificações. Posteriormente, mais de trinta anos após a Lei 4.947/1966, como ainda não havia sido requerida a ratificação de todos os títulos referidos pelo §1º do artigo 5º daquela Lei, o Poder Público entendeu por bem estabelecer um prazo para o requerimento dessas ratificações, o que foi feito mediante a Medida Provisória 1.797, de 6 de janeiro de 1999, reeditada por diversas vezes e, ao final, convertida na Lei 9.871/1999, de 23 de novembro de 1999. O prazo estabelecido tinha início em 1º de janeiro de 1999 e duraria dois anos, mas que, com sucessivas prorrogações, foi estendido até 31 de dezembro de 2003.

Findo aquele prazo, a partir de 2004, a União estava autorizada a declarar nulos os títulos de alienação ou concessão a partir da origem, caso os detentores dos imóveis respectivos não tivessem feito o requerimento da ratificação ao Incra.

Agora, a Lei 13.178/2015, que entrará em vigor em 7 de dezembro de 2015, vem alterar esse quadro normativo, possibilitando que os interessados pleiteiem a ratificação de suas terras, desde que requeiram a certificação do georreferenciamento do imóvel e a atualização da sua inscrição no Sistema Nacional de Cadastro Rural, em até 4 anos da publicação da lei, isto é, até 22 de outubro de 2019 (artigo 2º, §2º). Isso para os imóveis com área superior a quinze módulos fiscais, considerados grande propriedade pela Lei 8.629/1993, já que os de área inferior a esse limite serão ratificados pelos efeitos da própria lei (artigo 1º).

Entretanto, a recém-publicada lei apresenta pontos questionáveis, que certamente aportarão nossos tribunais, na medida em que é feita confusão quanto a quais limites e restrições de concessão e alienação original dos títulos devem ser observados. Enquanto o artigo 3º observa as restrições da época do ato de transferência original, o §6º do artigo 2º, incoerentemente, exige respeito a limites que entraram em vigor apenas com a Constituição de 1988, quando esta exige aprovação do Congresso Nacional para a alienaçãoou concessão de terras públicas com área superior a 2,5 mil hectares (artigo 188, §1º).

A extensão do sentido constitucional para exigir a observância desse limite também para ratificação de alienações e concessões feitas sob a égide de regimes constitucionais anteriores viola garantias fundamentais do direito adquirido e do ato jurídico perfeito (artigo 5º, XXXVI, CF) além do princípio da segurança jurídica. A Lei já nasce, portanto, com o grave vício de inconstitucionalidade.

De qualquer forma, os detentores de terras situadas nas faixas de fronteira têm nova oportunidade de regularizar seus títulos com essa nova legislação e, nas hipóteses não albergadas pela lei, de questionar judicialmente a constitucionalidade de alguns de seus dispositivos.

 

 

 

 

Autores: Celso Cestari é procurador federal do Incra aposentado, ex-superintendente regional do Incra e advogado.

 Joaquim Basso é mestre em Direito Agroambiental pela UFMT, especialista em Direito Ambiental pela UCDB, advogado e bacharel em Agronomia.


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