Nova Lei Seca (Lei 12.760/12): Perigo Abstrato ou Perigo Concreto?

O que efetivamente mudou no artigo 306, CTB com o advento da nova redação dada pela Lei 12.760/12. Será que toda a polêmica causada pela infeliz dicção trazida à tona pela Lei 11.705/08 pode ter um fim? Surgem novas indagações? Renovam-se antigas discussões? É o que veremos a seguir.

Há uma nítida mudança estrutural do artigo 306,CTB em termos de técnica legislativa. Pela pena do legislador de 2008 o dispositivo se compunha de um “caput” e um Parágrafo Único. No “caput” estava descrita a conduta criminosa consistente simplesmente em “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. Por seu turno, o Parágrafo Único estabelecia que o Poder Executivo Federal iria estipular a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para fins de caracterização do crime.

Essa redação dada pela Lei 11.705/08 abandonou a anterior que fazia referência à direção sob “influência” de álcool ou de outras substâncias análogas, gerando perigo de dano. Uma reviravolta foi criada pelo legislador. Por um lado, como era a intenção da então denominada “Lei Seca” (primeira), atuou de forma a ser mais enérgico com a direção perigosa sob efeito de álcool ou outras substâncias. Isso é dito porque o crime anterior, de perigo concreto, foi convertido em infração de perigo abstrato, conforme amplamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência, embora não sem discussão. Mas, de outra banda, com a redação inovadora da época, a Lei 11.705/08 criou um campo de impunidade ao estabelecer que a direção perigosa por abuso de álcool somente seria comprovada por meio da constatação da concentração de 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou exame de aparelho de ar alveolar com equivalência respectiva (3 décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões). Ao erigir a concentração etílica em elemento do tipo o legislador fez com que o dispositivo ficasse sob o controle não das agências estatais de repressão e prevenção, mas do próprio infrator. É que foi olvidado o Princípio da não – autoincriminação em mais uma amnésia jurídica do Congresso Nacional. As tentativas de recuperar a funcionalidade do tipo penal foram frustradas e justamente frustradas porque sua validação com a obrigatoriedade do teste ou o desprezo do elemento do tipo seria um terrível golpe em Princípios Constitucionais tais como o Direito à não – autoincriminação e a Legalidade.

É nesse contexto que surge a iniciativa do legislativo de aprovar a Lei 12.760/12 a fim de consertar pelos meios adequados os equívocos cometidos na edição da Lei 11.705/08. O intento óbvio é retomar a técnica anterior em que não se fica atrelado a uma concentração de álcool no sangue ou no ar alveolar, mas a comprovação do estado perigoso na direção de automotores pode ser produzida por outros meios legais, com especial destaque para a prova pericial do exame clínico. Isso porque esta é uma prova conclusiva e forte com respeito à qual o indivíduo não tem como se negar a colaborar, já que sua realização independe mesmo de sua colaboração. Trata-se de um exame levado a efeito externamente por perito médico – legista e totalmente independente de colaboração do suspeito, onde não vige, portanto, a questão da não – autoincriminação.

A verdade é que no que diz respeito à parte criminal referente à embriaguez ao volante, a Lei 11.705/08 bem poderia ter sido apenas um pesadelo jurídico do qual todos acordássemos e, com aquele alívio peculiar, víssemos à nossa cabeceira o velho Código de Trânsito Brasileiro de 1997 sem qualquer alteração no artigo306. Ainiciativa de 2008 foi uma das maiores trapalhadas do Congresso Nacional.

Bem, para corrigir essa confusão a Lei 12.760/12 alterou inclusive a estrutura técnico – legislativa do artigo 306, CTB. Ele agora não se compõe somente de um “caput” e um Parágrafo Único. Há um “caput”, onde a conduta criminosa é descrita com os seguintes dizeres:

“Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”.

Observe-se que o “caput” deixa de fazer referência a quaisquer níveis de concentração etílica. Passa a ser crime o simples fato de dirigir sob a “influência” de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, estando com a capacidade psicomotora alterada. Com uma dicção mais sofisticada o legislador tenta disfarçar a vergonha de ter de retomar a antiga redação de 1997 do artigo 306, CTB. Na verdade é isso mesmo, retomou-se a sistemática da velha, simples e boa “influência” de álcool ou outras substâncias, sem necessidade nenhuma de referência a índices de alcoolemia que somente trouxeram dificuldades, senão inviabilidade em determinados casos, de aplicação do dispositivo.

Outra mudança foi a exclusão da necessidade de que a conduta se processe na “via pública”, passando agora a abranger também a direção em áreas privadas. Contudo, essa conclusão sobre abrangência de áreas privadas não pode ser considerada definitiva e não deve contar com acatamento unânime na doutrina e na jurisprudência, tendo em vista o disposto no artigo 1º., CTB que faz referência à sua aplicação às vias terrestres do território nacional “abertas à circulação”. Isso pode levar alguns a defender a tese de que, embora não havendo indicação no tipo penal, naturalmente toda conduta prevista no CTB se refere às vias públicas. Entretanto, isso deixaria sem explicação o fato de que na parte criminal em alguns casos o legislador diz expressamente que a conduta deve ser perpetrada na via pública e em outros casos não. Por isso, entendemos que deva prevalecer a tese de que a partir da nova Lei Seca a direção embriagada passa a ser crime seja em área particular, seja em área pública, tudo dependendo apenas da avaliação do caso concreto sobre a existência de perigo na conduta do condutor.

Sinceramente, o legislador poderia ter parado por aí, simplesmente retomando a sistemática de 1997, com seu pequeno disfarce para não passar muita vergonha. Mas, ele não se contentou. Quis incluir agora na estrutura tipológica três parágrafos e dois incisos, os quais já começam a gerar controvérsias desnecessárias.

O § 1º., incisos I e II é diretamente ligado ao “caput”. Esses dispositivos legais estabelecem como se constatará a alteração da capacidade psicomotora devido à influência de álcool ou demais substâncias mencionadas no “caput”. Segundo a normativa enfocada tal constatação se dará por duas vias alternativas. É preciso ressaltar sempre que os incisos I e II são ligados pela conjunção alternativa “ou”, de modo que devem ser interpretados separadamente, sem qualquer necessidade de integração a não ser diretamente com o “caput”. Ou seja, não há necessidade, para a comprovação da alteração da capacidade psicomotora, que o agente incida nos incisos I e II, mas sim que incida no inciso I “ou” no inciso II. É claro que se houver no caso concreto incidência dupla, tanto melhor, mas isso não é exigível e muito menos imprescindível para a caracterização do crime.

Calejado pela triste experiência da Lei 11.705/08 o legislador na nova Lei Seca, embora tenha voltado a mencionar índices de alcoolemia para aferição da alteração da capacidade psicomotora no inciso I, reservou o inciso II para tratar de outros sinais também capazes de indicar a mesma alteração.

Doravante a constatação da dita alteração da capacidade psicomotora poderá ser aferida por exames e testes de alcoolemia nos termos do inciso I, que indiquem “concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar”. É crime dirigir com a capacidade psicomotora alterada por álcool ou outras substâncias, mas como se afere isso? Diz o § 1º., inciso I: através de exames e testes de alcoolemia que indiquem os índices legalmente previstos. Em resumo, por meio de testes e exames de alcoolemia temos a mesmíssima sistemática então vigente quando inalterada a antiga redação dada ao dispositivo pela Lei 11.705/08. Mudou-se apenas a forma, mas o conteúdo é idêntico. Por isso, com base em toda a experiência antecedente e manifestações jurisprudenciais e doutrinárias a respeito, entendemos que na modalidade de constatação de índice de alcoolemia acima do legalmente permitido o crime segue como de perigo abstrato, nada se modificando. Observe-se que o “caput” continua como dantes não fazendo qualquer menção expressa à necessidade de perigo concreto, não há como havia antes da Lei 11.705/08, a exigência de que a conduta do agente fosse informada por perigo potencial. Não é possível esquecer que é lição sabida e consabida da doutrina que os crimes de perigo concreto descrevem no tipo a exigência desse perigo, o que não ocorre na hipótese do artigo 306, § 1º., I, CTB. Na verdade, há nesse caso a antiga presunção de perigo quando o indivíduo dirige sob efeito de álcool acima das taxas legalmente estabelecidas. Melhor dizendo, não se trata nem mesmo de uma presunção, mas de uma constatação fática, de um “fato notório”, de conhecimento científico e geral, qual seja, o indivíduo que dirige sob efeito de álcool causa perigo, isso é indiscutível. O crime não é nem de perigo abstrato, mas mais especificamente de “perigo notório”. Aliás, administrativamente, isso é assumido de acordo com as claras noções médicas sobre o tema, proibindo-se qualquer concentração etílica e direção de automotores. Não há índices seguros de álcool no sangue para direção veicular. Os índices explicitados na parte penal somente fazem o trabalho de separar o ilícito penal (mais grave) do ilícito administrativo (menos grave), mas em ambos os casos há ilicitude na direção sob efeito de álcool, seja acima dos patamares previstos, gerando crime, seja abaixo, ensejando responsabilidade administrativa. As eventuais margens de tolerância citadas para efeito administrativo não indicam a existência de graus seguros de alcoolemia para direção de automotores, mas apenas situações em que o índice é desprezível conforme indicações médicas. São situações em que, na realidade, a pessoa não estará com uma taxa significativa de álcool no sangue, segundo critérios médicos. Qualquer outra alegação, como, por exemplo, de que determinada pessoa pode dirigir sob efeito de dois copos de cerveja ou um copo de vinho, uma dose de uísque etc., não passa de “conversa de botequim”. O fato é que não há índices seguros de álcool e direção. Não cabe ao indivíduo decidir se está ou não em condições de dirigir após beber, a questão não pode migrar do “objetivo” para o “subjetivo”. Os índices de alcoolemia expostos pelo legislador desde a Lei 11.705/08 e ora repetidos não são trazidos ao campo jurídico aleatoriamente, mas têm fulcro em conclusões científicas a respeito da questão da influência do álcool nos reflexos, na capacidade de ação e reação, enfim, na capacidade psicomotora do indivíduo. São critérios científicos objetivos que jamais podem ser postos em discussão com base na subjetividade. É certo que o conhecimento científico não pode ser admitido como a única fonte do saber. Isso tem realmente sido denunciado como um ranço supersticioso do Positivismo do Século XIX. [1] Mas, daí a concluir que as constatações cientificamente embasadas podem ser postas à prova ou refutadas por um bêbado que se julga “piloto” é jogar por terra todo e qualquer critério epistemológico ou de filosofia da ciência, de modo a dar calafrios mesmo num autor como Popper para quem a refutabilidade é característica imprescindível a toda teoria com pretensões científicas. [2]

Em suma, é crime, segundo a nova redação da Lei 12.760/12, dirigir automotor sob influência de álcool de modo a estar com a capacidade psicomotora alterada. E essa alteração é constatada mediante a verificação por exame toxicológico de sangue e/ou teste de etilômetro, de concentração de álcool no sangue acima de 6 decigramas por litro ou acima de 0,3 miligramas por litro de ar alveolar. Constatadas essas concentrações, conclui-se que o agente estava com a capacidade psicomotora alterada, isso não por simples presunção, mas por constatação científica que torna esse fato notório, independendo o perigo da situação de outras provas.

É claro que essa posição ora defendida neste trabalho não será pacífica, como não o foi no caso do debate antecedente sob a égide da Lei 11.705/08. Haverá quem defenda a necessidade de perigo concreto a ser comprovado, ainda que diante da concentração de álcool acima da legalmente permitida. Aliás, já há manifestações neste sentido em meio à incipiente doutrina que se vai erigindo. Veja-se, por exemplo, o escólio de Luiz Flávio Gomes, para quem o crime do artigo 306, CTB sempre foi e sempre será de perigo concreto, dependendo de prova em cada caso, além da constatação de alcoolemia. O autor citado é frontalmente contrário a qualquer crime de perigo abstrato. Considera Gomes que essas incriminações são inconstitucionais em sua origem por violação do Princípio da Ofensividade. É claro que para autores com essa linha de pensamento é indiscutível que qualquer crime de perigo somente pode ser concreto. [3]

Inobstante a respeitável linha de pensamento, discorda-se desse posicionamento, pois que há sim condutas que já trazem em si, independente de maiores pesquisas, um perigo à coletividade. Os crimes de perigo abstrato não podem ser criados e usados pelo legislador de forma incontrolada, mas têm sim seu âmbito de validade e legitimidade, especialmente quando esse perigo que se trata como “abstrato” é, na realidade, “de notório conhecimento”. Não se discorda, portanto, que o abuso dos crimes de perigo abstrato com antecipação de tutela criminal pode ser uma manifestação de um Direito Penal autoritário que atenta contra a liberdade e a dignidade humanas de forma injustificada. Mas, a conclusão de que um crime de perigo abstrato é inconstitucional não pode ser obtida de forma apriorística, sem análise do tipo penal concreto e suas repercussões sociais.

O que ocorre com a defesa apriorística do perigo concreto como inconstitucional é que aqueles influenciados por esse pensamento tendem a deslocar a discussão, que é de nível constitucional e principiológico, para a interpretação de tipos penais previstos obviamente em legislação ordinária. Partindo da premissa de que um crime de perigo abstrato é inconstitucional, então se distorce de qualquer forma possível a interpretação da legislação penal ordinária para fazer, a qualquer custo, que um crime determinado apareça como de perigo concreto, quando, na verdade, sua redação é claramente voltada para o perigo abstrato.

É exatamente o que se tem pretendido em algumas manifestações sobre o novo artigo 306, § 1º., I, CTB. Faz-se questão de não enxergar, numa verdadeira “cegueira voluntária”, a conjunção alternativa “ou” que permeia os incisos I e II do referido § 1º. Esse “ou”, deixa claro que a comprovação da alteração da capacidade psicomotora pode ser feita independentemente pela taxa de alcoolemia acima da permitida, não necessitando de outros sinais. Também afirmar que a alteração da capacidade psicomotora prevista no “caput” indica necessariamente perigo concreto para além das taxas de alcoolemia no caso do exame toxicológico ou de etilômetro, consiste em separar o que deve ser uno. O “caput” está ligado umbilicalmente ao § 1º. Está ligado a ele em seu inciso I “ou” II alternativamente. Mas, está sempre ligado. O “caput” não diz em que consiste a alteração da capacidade psicomotora, o que faz isso é o § 1º., em seus dois incisos, sendo que o de número I aponta para as taxas de alcoolemia, ou seja, a capacidade psicomotora estará alterada quando o indivíduo estiver dirigindo com taxas de alcoolemia acima das permitidas. É isso. É simples e claro. A alegação de que quando constatadas as taxas extrapolantes, ainda se deve perquirir se o indivíduo está com a capacidade psicomotora alterada consiste em virar o tipo penal de pernas para o ar, como se a conduta fosse descrita no § 1º., inciso I e a forma de aferição do perigo estivesse no “caput”! Ora, é justamente o contrário!

Discutir se a conformação do tipo penal, seja pela Lei 11.705/08, seja hoje pela Lei 12.760/12 no âmbito da alcoolemia fere ou não o Princípio da Ofensividade; se crimes de perigo abstrato são admissíveis no Direito Penal moderno, remete a questões de fundo que nada têm a ver com o teor da lei ordinária. Se as teses acima são defendidas, quem as defende deve então apenas dizer que o tipo penal do artigo 306, CTB, seja na forma da anterior Lei 11.705/08, seja atualmente, é inconstitucional, ao menos no seu § 1º., inciso I atual e anteriormente no seu “caput” mesmo. O que não pode ser o caminho é a distorção da redação para que esta venha a se adequar a uma linha de pensamento que não foi claramente aquela seguida pelo legislador. Isso é mais do que clarividente, pois se a Lei 12.760/12 veio a lume para impedir a onda de impunidade surgida com a redação infeliz dada pela Lei 11.705/08 é evidente que não pretenderia ser formatada de maneira a ser mais branda num verdadeiro retrocesso. A doutrina e a jurisprudência, inclusive dos tribunais superiores (STF e STJ) já haviam firmado que o crime do artigo 306, CTB, referindo-se às taxas de alcoolemia era de perigo abstrato, isso sob o pálio da Lei 11.705/08. Será que agora pretenderia o legislador retroceder numa lei que pretende ser mais rigorosa, tornando a mesma conduta crime de perigo concreto? Parece altamente implausível. Se essa vontade do legislador é constitucionalmente válida ou não é outra discussão. Mas, que o intentado é imprimir mais rigor e manter o crime de perigo abstrato neste caso, parece insofismável. Ademais, quanto à inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, embora a tese seja respeitável, não tem sido acatada pelos tribunais pátrios, especialmente pelo STF a quem cabe a última palavra em termo de constitucionalidade/inconstitucionalidade.

Neste sentido manifesta-se o Ministro Gilmar Mendes:

“Nessa espécie de delito, o legislador penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão ou o perigo de lesão concreta a determinado bem jurídico. Baseado em dados empíricos, o legislador seleciona grupos ou classes de ações que geralmente levam consigo o indesejado perigo ao bem jurídico. A criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc.Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico, o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um direito penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese, transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada de inconstitucional”. [4]

Será que exigir a lei que pessoas não saiam pelas ruas dirigindo veículos automotores com taxas de alcoolemia acima de 6 decigramas por litro de sangue, comprovadamente perigosas pela ciência médica, é demais? Viola a proporcionalidade? Não seria a alegação de inconstitucionalidade e de violação da proporcionalidade um excesso de suscetibilidade libertária que descamba para a libertinagem?

Na verdade, quanto à direção sob efeito de álcool em taxas acima daquelas cientificamente comprovadas como perigosas, cabe indagar: Até quando no Brasil será preciso provar o que é notório?

Passando a outra temática, mas ainda ligada às taxas de alcoolemia, importa chamar a atenção para o disposto no § 3º., do artigo 306, CTB. Esse parágrafo estabelece que “o Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo”. Essa normativa apresenta-se inútil: primeiro porque a equivalência já é explicitada no artigo 306, § 1º., I, CTB pela própria lei, segundo porque também já há o Decreto 6488, de 19 de junho de 2008 que indica as mesmas equivalências ora expostas na lei. Eventualmente poderá no futuro haver alguma utilidade para esse dispositivo, acaso venha ser utilizado algum outro teste de alcoolemia diverso do toxicológico de sangue e do aparelho de ar alveolar, quando então caberá ao Contran estabelecer as respectivas equivalências. Isso significa que o artigo 306, § 1º., inciso I, CTB é autoaplicável, não se tratando de norma penal em branco.

A segunda alternativa para comprovação da alteração da capacidade psicomotora por ingestão de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência está prevista no artigo 306, § 1º., II, CTB. Fala-se então em “sinais que indiquem, (…), alteração da capacidade psicomotora”. É claro que são outros sinais afora as taxas de alcoolemia. Aliás, taxas somente são previstas para o álcool. Para outras substâncias lícitas ou ilícitas, também alteradoras da capacidade psicomotora não há previsão de índices, sendo então a única alternativa comprobatória a do inciso II. É claro que não se descarta, mesmo em relação a outras substâncias, a realização de exames de sangue, urina etc., mas fato é que não há previsão legal de taxas específicas como há no caso do álcool. Isso não impedirá que as Autoridades Policiais, os Promotores, Juízes e Defensores em geral proponham aos peritos a resposta a quesito que informe se o índice de substância no corpo do suspeito é passível de prejudicar sua capacidade psicomotora, o que deverá ser respondido caso a caso. Certamente o legislador não quis tentar fazer o trabalho impossível de catalogar índices para todas as substâncias alteradoras do psiquismo, além do álcool. Esse seria mesmo um intento inviável, já que a redação dada ao artigo 306, “caput”, CTB é aberta, de forma a abranger o álcool e quaisquer outras substâncias que alteram o psiquismo do agente, sejam elas drogas ilícitas ou mesmo medicamentos.

Neste inciso II realmente se está diante de um crime de perigo concreto. Se a prova não é possível através do teste ou exame de alcoolemia e deve ser então obtida pela segunda alternativa disposta na lei, há que se demonstrar objetiva e concretamente quais são os tais “sinais que indiquem alteração da capacidade psicomotora”. Não há como pensar aqui em perigo abstrato, pois a exigência da indicação desses “sinais” já está a exigir o perigo concreto.

Conclui-se, portanto, que quando do vigor da Lei 11.705/08 o crime era invariavelmente de perigo abstrato, mas sob a égide da nova Lei 12.760/12 ele é de perigo abstrato no caso do artigo 306, § 1º., I e de perigo concreto no caso do artigo 306, § 1º., II, CTB.

Neste inciso II caberá à acusação indicar quais são os sinais indicativos de perigo concretamente existente, porque demonstram a alteração da capacidade psicomotora do condutor. Não há aqui uma taxa que já nos oferta resposta pronta. É preciso perquirir esses sinais que podem ser o andar cambaleante, a fala pastosa, a agitação, a depressão, o sono ao volante, a falta de concentração, a consciência alterada, a direção em descontrole, a falta de coordenação motora ou sua deficiência etc.

É neste inciso II que está o conserto da trapalhada providenciada pela Lei 11.705/08. Agora, se o condutor se nega, usando de um direito constitucional seu, a submeter-se a exames de sangue ou de etilômetro, nada impede sua prisão em flagrante, seu processo e condenação com base em outras provas, dentre as quais se destaca aquela que sempre foi a protagonista nestes casos, qual seja, o exame clínico de embriaguez levado a efeito pelo Médico – Legista. Foi somente durante o triste período de vigência da redação dada pela infeliz Lei 11.705/08 que o exame clínico perdeu boa parte de sua imensa funcionalidade. Agora a Lei 12.760/12 revitaliza o exame clínico (Antes tarde do que nunca!). Finalmente, retorna para as agências estatais o controle sobre a punição do infrator. Não é mais o próprio suspeito que irá decidir se haverá produção de provas contra si. São as agências estatais que irão produzir as provas necessárias através de exames, testes ou outros meios legais que independem da colaboração do indigitado.

Também neste inciso a lei faz referência à disciplina da aferição desses sinais indicadores de alteração psicomotora pelo Contran. Entretanto, não se trata de norma penal em branco já que a própria lei (artigo 306, §2º., CTB) estabelece os meios que podem ser utilizados para a comprovação do estado de alteração psicomotora, tratando-se, portanto, também de norma autoaplicável. Diz o artigo 306, § 2º., CTB:

“A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova”.

EDUARDO LUIZ SANTOS CABETTE
Mestre em Direito Ambiental e Social pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (2001). Especialista em Criminologia e Direito Penal pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (1997). Delegado de Polícia. Professor.

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