Nova regra de registro civil facilita adoção

Autor: Danilo Montemurro (*)

 

Nenhuma ciência do direito evolui tanto quanto o Direito de Família. Os dispositivos pertinentes no Código Civil e leis especiais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por exemplo, denunciam bem isso, normas com número extraordinário de alterações comparativamente com os demais ramos do Direito. Sendo a lei um reflexo do comportamento da sociedade nada mais natural que as mudanças comportamentais se revelem mais intensas nas relações familiares.

Diante de mais uma evolução em matéria de Direito de Família com a publicação do Provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que trata do reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva e as alterações no registro civil de nascimento em casos de Reprodução Humana Assistida, entende-se oportuno comentar. Senão vejamos:

Primeiramente, ressalta-se que a possibilidade de reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva não é novidade. O que é novidade no provimento do CNJ é a regulamentação da matéria por norma federal. Isso porque o assunto já era tratado pelos tribunais estaduais, cada qual com sua peculiaridade. O Estado pioneiro a tratar do assunto foi Pernambuco, por meio do Provimento 9/2013, e outros Estados também regulamentaram a questão por meio de Provimentos: Maranhão (P. 21/2013); Ceará (P. 15/2013); Amazonas (P. 234); Santa Catarina (P. 11/2014); Paraná (264/2016) e Mato Grosso do Sul (149/2017).

Ainda, recentemente, em 26 de setembro, a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) foi alterada pela Lei 13.484/17 surgindo a possibilidade de a naturalidade de cada pessoa corresponder à do município em que nasceu ou ao município em residência da mãe. Portanto, na certidão de nascimento constará além das informações tradicionais a naturalidade da criança. A referida alteração na certidão de nascimento foi agora complementada pela possibilidade de constar, a partir de declaração voluntária, a filiação socioafetiva. Explico a importância disso abaixo.

Tem-se lido que agora é possível a inclusão do nome do padrasto na certidão de nascimento e essa informação revela uma particularidade importantíssima da nova regulamentação: Só é possível o reconhecimento da paternidade socioafetiva extrajudicial se não houver pai registral (biológico ou não) na certidão de nascimento, ou seja, somente o marido ou companheiro da mãe é que pode ser reconhecido como pai socioafetivo, à semelhança do que ocorre com a adoção unilateral (exceção da obrigatória inscrição no cadastro nacional de adoção na hipótese em que o adotante é marido ou companheiro da mãe do adotado), nos termos do artigo 14 do Provimento.

A propósito, o reconhecimento extrajudicial de filiação socioafetivo segue procedimento assemelhado com o processo de adoção, especialmente em relação ao consentimento obrigatório do filho maior de 12 anos em derradeira exceção da capacidade civil disposta no Código Civil, 5º (18 anos) e ao consentimento do(a) genitor(a) registral. Em sentido diametralmente oposto, contudo, na adoção pressupõe que adotado e adotante não se conhecem, já na filiação socioafetiva há o vínculo de afeto estabelecido pelo convívio no tempo.

A importância do reconhecimento da filiação socioafetiva para a família e, em especial, para a criança é de uma clareza solar. O liame jurídico mais relevante na relação existente entre os genitores e a prole é o denominado “poder familiar”, este um complexo de obrigações e direitos que recai sobre os pais.

O que estabelece a existência do poder familiar é o vínculo de filiação. Existem três formas de vínculo de filiação, i) filiação biológica, aquela advinda da procriação natural; ii) filiação civil, oriunda do processo de adoção e iii) filiação socioafetiva, que decorrente de uma relação paterno-filial factual, posse do estado de filho.

O vínculo de filiação é fundamental para a coesão de direitos e obrigações, primeiro estabelece a relação de poder familiar com as naturais consequências, inclusive a de assistência material e psicológica (relação para garantir direitos aos alimentos e eventual indenização por abandono afetivo, por exemplo) e os direitos sucessórios (o filho biológico, adotado ou socioafetivo passam a ser herdeiros necessários)

Ainda, importante ressaltar que não existe distinção entre filhos (biológicos, adotados, socioafetivos, frutos de um casamento, de uma união estável ou de um relacionamento extraconjugal), filhos são filhos sem distinção e com os mesmos direitos.

Na adoção, processo solene e que termina com uma decisão judicial que destitui o poder familiar com os pais biológicos e institui o poder familiar com os pais adotantes, apaga-se completamente uma relação familiar anterior e nasce uma nova, irretratável e irrevogável. Já no reconhecimento da filiação socioafetiva não é possível o fim de uma relação paterno-filial anterior e o nascimento de uma nova com o pai ou mãe socioafetiva, isso porque a destituição do poder familiar somente poderá ser obtida com decisão judicial.

Por isso o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva só poderá incluir na certidão de nascimento a nova filiação, sem, contudo, destituir a filiação anterior, ou seja, somente possível o reconhecimento unilateral, por aquele que é padrasto da criança e com ela já estabeleceu vínculo de afeto e desde que o pais biológico não tenha registrado. Em tese, também poderia ocorrer o registro pela madrasta, contudo, raros os casos de criança que não tenha mãe registral.

Não obstante, sob outro aspecto é possível afirmar a importância da mudança diante de prática que ocorre com bastante frequência, a chamada adoção à brasileira. Uma mulher que engravida de forma acidental e sem que aja o reconhecimento do pai biológico. Esta mãe inicia um relacionamento com um homem que acaba reconhecendo a criança como se filha fosse, por ato de nobreza, com o propósito de garantir que esta criança tenha um pai.

Nos termos do artigo 242, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a prática é considerada crime, com pena de reclusão de dois a seis anos, contudo, nos termos do parágrafo único, o juiz poderá deixar de aplicar a pena por motivo de reconhecida nobreza.

“Art. 242 – Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil:
Pena – reclusão, de dois a seis anos.
Parágrafo único – Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza:
Pena – detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena”.

Com efeito, reside neste aspecto a importância do reconhecimento da filiação socioafetiva como alternativa a prática da adoção à brasileira, garantindo o registro de um pai na certidão de nascimento da criança.

 

 

 

Autor: Danilo Montemurro  é advogado especializado em Direito de Família e Sucessões, Mestre em Direito, pós-graduado em Direito Processual Civil, professor de Direito Civil da Faculdade Autônoma de Direito e autor do blog “Direito de Família para as famílias”.


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