Novas nuances da “guerra fiscal” à luz do Supremo Tribunal Federal

Autor: Saul Tourinho Leal (*)

 

Falar em “guerra fiscal” virou um clichê. A expressão tem sido usada para qualificar, pejorativamente, muito da inventividade de estados ou municípios ligada aos impostos de suas competências. Utiliza-se o termo para definir como impróprias ou viciadas iniciativas que, às vezes, por meio de interações fiscais, simplesmente buscam prosperidade econômica e social sem violação chapada à Constituição Federal nem ao dispositivo legal que exige a permissão prévia do Conselho Nacional de Política Fazendária, o Confaz.

Dia 8 de março, o pleno do Supremo Tribunal Federal abriu mais um capítulo na complexa discussão a respeito do assunto. Estavam em julgamento três ações diretas de inconstitucionalidade: ADI 2.663 (Min. Luiz Fux), relativa a programas do Estado do Rio Grande do Sul; ADI 3.796 (Min. Gilmar Mendes), sobre programas do Paraná; e, por fim, ADI 2.441 (Min. Rosa Weber), quanto a programas de Goiás.

As deliberações trouxeram as seguintes novidades: (i) a necessidade de se ir mais a fundo quanto ao que verdadeiramente pode ser chamado de “guerra fiscal”; (ii) o dever dos julgadores de, podendo, suspenderam imediatamente os benefícios inconstitucionais e, caso assim não hajam, que modulem os efeitos de decisões posteriores; e (iii) a necessidade de que as ações discutindo a declaração de inconstitucionalidade de incentivos fiscais sejam suspensas até que o STF delibere sobre a Proposta de Súmula Vinculante 69 (PSV 69).

Na ADI 2.663, veio, pelo ministro Luís Roberto Barroso, o debate quanto ao que, verdadeiramente, pode ser chamado de “guerra fiscal”. O ministro anotou: “O que eu acho que o dispositivo constitucional pretende evitar — o artigo 155, § 2º, 12, ‘g’ — é que o Estado dê vantagens competitivas a outras empresas e, portanto, estabeleça uma guerra fiscal. Essa proposta da lei não tem nada a ver com guerra fiscal, ela dá um benefício para a empresa que faça uma boa ação”.

A boa ação citada pelo ministro Barroso era o fato de a lei gaúcha autorizar empresas a financiarem bolsas para a formação superior de professores, fixando, como contrapartida, que os beneficiários prestassem serviços de aperfeiçoamento e alfabetização a seus empregados. O benefício equivalia a 50% da bolsa em deduções de ICMS.

Incomodado com o uso retórico da expressão “guerra fiscal”, o ministro Marco Aurélio desenvolveu seu raciocínio da seguinte forma: “Nós não estamos aqui, Vossa Excelência ressaltou muito bem, tratando da ‘guerra fiscal’. Não houve implemento de um benefício fiscal propriamente dito. O que houve foi uma sinalização de uma contrapartida para as empresas que resolvam adentrar esse campo e financiar o aprimoramento dessa classe tão sacrificada que é a classe dos professores. Nós não podemos, a meu ver, generalizar a cláusula constitucional que exige realmente o acordo entre os Estados para se ter o benefício fiscal, porque não se trata propriamente o benefício fiscal”.

Apesar de o resultado ter sido a declaração de inconstitucionalidade do programa gaúcho, vencido o ministro Marco Aurélio, a introdução da questão pode abrir espaço para que a comunidade jurídica invista mais energia quanto a separação do joio do trigo no que diz respeito ao debate sobre programas de busca por prosperidade econômica e social sem que tais iniciativas sejam previamente analisadas pelo Confaz. São, todos eles, pura e simplesmente, “guerra fiscal”?

As lições de Celso de Barros Correia Neto, em seu O Avesso do Tributo, já indicavam o seguinte: “os incentivos fiscais não passam, grosso modo, de exonerações extrafiscais, concedidas com vistas à produção de efeitos não financeiros. Mas a verdade é que tal afirmação acrescenta bem pouco ao deslinde do tema e nada diz sobre como, de fato, funciona esse instituto no direito vigente. É preciso, então, verificar a maneira como operam esses instrumentos no direito brasileiros, e quais efeitos estão aptos a lograr” (Almedina, 2014, p. 124).

Doutrina e jurisprudência começam a encontrar sintonia. Chamar tudo e qualquer coisa de “guerra fiscal” é uma postura mais retórica do que técnica. Daí a necessidade de os advogados investirem energia em demonstrar aos tribunais as características e singularidades de cada programa de modo a provar que nem tudo o que se qualifica, peremptoriamente, de “guerra fiscal”, de fato o é.

Outra novidade diz respeito à modulação. Essa novidade, na verdade, foi um aperfeiçoamento do que havia sido proposto — e emplacado — pelo ministro Luís Roberto Barroso no julgamento da ADI 4.481, em 2015.

O ministro explicou que a Suprema Corte tem adotado, como praxe, aplicar o rito do artigo 12 da Lei 9.868/1999 às ações direta de inconstitucionalidade com pedido de cautelar. Por esse rito, o relator poderá, após a preparação do processo, submetê-lo diretamente a julgamento de mérito.

Podendo conceder a cautelar imediatamente, mas optando por não fazê-lo, deve, o tribunal, em nome da segurança jurídica, modular os efeitos da posterior declaração de inconstitucionalidade. Para o ministro Barroso, após a lei ter vigorado por vários anos, “desfazer retroativamente (…) seria de um impacto talvez imprevisível e possivelmente injusto em relação, pelo menos, às partes privadas que cumpriram a lei tal como ela foi posta”.

A modulação de efeitos decorrente do fato de a lei, que vigorou por muitos anos, ter sido atacada nos tribunais e, estes, mesmo podendo, não terem suspendido seus efeitos imediatamente, também é uma inovação. Antes, quando, em 2014, o STF apreciou a ADI 429 (min. Luiz Fux), relativa a incentivos do Ceará, houve modulação por se tratar de estímulos visando a produção de bens que incrementavam as capacidades das pessoas portadores de deficiências auditivas. Não se deu a modulação pelo fato de ter, a lei, vigorado por muito tempo.

A última novidade se deu com o debate na ADI 2.441, relativa a benefícios do Estado de Goiás. Numa petição assinada pelos Governos de Goiás e de São Paulo, pediu-se o adiamento do julgamento. Antes, numa manifestação de Goiás, sustentou-se que, diante da PSV 69, o Senado Federal propôs disciplina da questão tendo em conta, sobretudo, os incentivos já concedidos pelos estados.

A PSV 69 tem a seguinte redação: “Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz, é inconstitucional.” Ela é da relatoria do ministro Gilmar Mendes e pode ser levada a julgamento a qualquer momento.

Segundo o Estado de Goiás, daí a necessidade de sobrestamento da ação, “sob o risco de se inaugurar um desequilíbrio na Federação e, o que é mais grave, no mercado interno ante a vantagem competitiva que os demais Estados passarão a usufruir causando, assim, distorções nos preços aos consumidores de diferentes estados ante ao fenômeno da repercussão econômica do tributo”.

O Supremo, por unanimidade, deferiu o pedido de adiamento. Nesse mesmo dia, o ministro Gilmar Mendes, defendendo a modulação na ação relativa aos benefícios do Paraná, disse: “É difícil fazer-se depois a própria reposição. Isso gera uma séria de problemas. O Ministério Público entra com ação de improbidade contra o gestor. Pede-se a repetição do indébito. Em suma, isso provoca uma desarrumação geral no sistema, quando as empresas lá já se instalaram, acreditaram de boa fé na sistemática”.

Portanto, seja a necessidade de se escrutinar de modo mais criterioso o que verdadeiramente é “guerra fiscal”, seja a modulação pelo persistente período de vigência da lei atacada nos tribunais, seja o adiamento de casos que tratem da questão até que o STF aprecie a PSV 69, são, todas essas iniciativas, novas nuances do debate acerca da “guerra fiscal” no contencioso constitucional.

Essas sutilezas extraídas do exame minucioso das sessões do Supremo Tribunal Federal exigem do advogado mais rigor nas ponderações a respeito dos incentivos fiscais, suas consequências e amparo jurídico. Somente assim é possível entregar aos entes, a exemplo dos Estados e dos Municípios, e aos agentes privados que acreditam na segurança jurídica, a dignidade necessária para, de cabeça erguida, seguirem inventivos e arrojados nessa longa caminhada em busca de prosperidade econômica e social num país tão desigual como o Brasil.

 

 

 

 

Autor: Saul Tourinho Leal é associado sênior do Pinheiro Neto Advogados em Brasília e doutor em Direito Constitucional


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