Novas regras não beneficiam notários que trabalham com seriedade

por Luís Paulo Aliende Ribeiro

Em recente visita ao Brasil o primeiro-ministro da Espanha, José Luís Zapatero, ao falar sobre a disposição dos espanhóis de iniciar novo ciclo de investimentos em nosso país, deixou para os brasileiros um recado e uma advertência: a concretização de um investimento maior tem por pressuposto necessário a criação e adequação de “marcos jurídicos” que sustentem a injeção de recursos.

A correta interpretação do “recado dos espanhóis” foi dada pelo jornalista João Mellão Neto em artigo publicado no Espaço Aberto da edição de 28 de janeiro de 2005 de “O Estado de São Paulo”, no sentido de que o significado da expressão marcos jurídicos utilizada pelo político espanhol é o de “instituições apropriadas”, destacando que instituições positivas, confiáveis, garantidoras de que as relações do Estado com a sociedade sejam regidas por regras claras e transparentes levam naturalmente ao progresso e à prosperidade, e que “para que o sistema capitalista funcione é preciso que haja uma estrutura legal isenta e eficiente e também uma Justiça ágil e eficaz para garantir o fiel cumprimento dos contratos e coibir a ação dos predadores e oportunistas”.

A cobrança de “marcos jurídicos”, leia-se “instituições sérias”, foi lembrada no dia 03 de fevereiro de 2005 por ocasião da seção solene instalação do ano judiciário promovida pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, e que teve lugar na Sala São Paulo, da Estação Júlio Prestes, quando tomaram posse 200 novos desembargadores, evento de magnitude jamais vista e decorrente do empenho do Tribunal de São Paulo no cumprimento das novas regras trazidas pela Emenda Constitucional nº 45, relativa à chamada reforma do Judiciário.

Essa lembrança, em momento de alteração administrativa sem precedentes, demonstra que se constitui em objetivo presente do Judiciário paulista não só a manutenção dos aspectos que sempre o distinguiram como uma instituição séria, mas também o esforço na superação das dificuldades decorrentes de expressiva demanda, dentre os quais se destaca a necessidade de agilidade na prestação jurisdicional.

Contrapõe-se a este contexto de seriedade e busca do fortalecimento das instituições proposta de alteração da Lei Federal nº 8.935/94, que regulamenta as atividades notariais e de registro previstas no artigo 236 da Constituição Federal, que, iniciada na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei nº 160-B, de 2003, foi aprovada e encaminhada ao Senado Federal, recebendo, em 05 de janeiro de 2005, nova numeração: PLC 007, de 2005.

Busca referido projeto acrescentar à Lei nº 8.935/94 o artigo 2º – A, dispondo, de forma aparentemente sem maiores repercussões, quanto à outorga da delegação para o exercício da atividade notarial ou de registro, a criação, alteração, extinção e concurso público para provimento da delegação das respectivas serventias, e disciplinando a designação de interventores e de responsável pelo expediente.

O efeito institucional das alterações propostas se mostra, no entanto, em uma análise mais aprofundada, extremamente pernicioso, pois fere de forma insustentável o sistema constitucional vigente, representando um retrocesso inadmissível em todo um processo que, iniciado a partir da verdadeira revolução institucional dos serviços notariais e de registros implantada com a vigência da Constituição Federal de 1988, vem se consolidando de forma integrada com as regras expressas na Lei nº 8.935/94, atualmente coerentes com o regramento constitucional, e que já está produzindo efeitos concretos para a constituição, no que se refere à prestação destes serviços públicos, dos “marcos jurídicos” reivindicados pelo primeiro-ministro espanhol.

A atual situação existente no Estado de São Paulo revela significativo exemplo da evolução institucional verificada em função da implementação efetiva do regime jurídico dos serviços notariais e de registro instituída no Brasil pela inovadora regra expressa no artigo 236 da Constituição Federal de 1988, objeto de regulamentação por meio da Lei Federal nº 8.935/94, que, rompendo com o regime anterior, no qual os cartórios eram passados de pai para filho, estabeleceu que tais serviços, de natureza pública, serão exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, sendo obrigatório concurso público de provas e títulos para o ingresso na atividade, e atribuiu ao Poder Judiciário a fiscalização de seus atos.

Promoveu o Tribunal de Justiça de São Paulo, neste Estado, no desempenho da função de fiscalização e regulação administrativa que lhe foi atribuída pela Constituição Federal, a realização de concursos públicos de provas e títulos, para provimento e remoção, destinados à outorga das delegações aos aprovados.

Esses concursos foram e vêm sendo realizados com transparência e seriedade reconhecidas por todos os segmentos, e já pode ser notada uma melhoria qualitativa dos serviços, esta resultante da conjugação das novas idéias e expectativas trazidas por qualificados profissionais do direito que iniciaram o exercício da atividade notarial ou de registro com a experiência dos antigos delegados, abrangendo, quanto a estes, tanto os que permaneceram em suas antigas delegações como aqueles que, aprovados em concurso, obtiveram a outorga de delegação diversa.

A atuação do Tribunal de São Paulo vem se desenvolvendo de forma continuada e segue planejamento de longo prazo, que envolve uma fase de transição entre o antigo regime e o sistema da vigente Constituição Federal. Essa fase de transição teve início com a realização do Primeiro concurso, relativo às delegações da Comarca da Capital, de todas as especialidades, para, na seqüência, depois de necessária reorganização dos serviços, implementada, segundo critérios técnicos expressos em lei, por meio dos Provimentos CSM 747/00 e 750/01, promover os concursos destinados ao provimento das delegações das Comarcas do Interior do Estado.

A realização desses concursos obedece seqüência previamente estabelecida, com a realização do segundo concurso (Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica), já findo, e do Terceiro certame (Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos), em andamento, já na fase de provas orais. Há, também, a previsão da realização de mais três concursos, o Quarto (Registro Civil das Pessoas Naturais das Sedes de Comarca), cuja abertura já foi aprovada pelo Colendo Conselho Superior da Magistratura, o Quinto (Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas dos Municípios e Distritos) e, por fim, último dessa fase de transição, o Sexto, abrangendo todas as delegações vagas do Estado, este, à semelhança do Primeiro, referente a todas as especialidades.

Findos os concursos a outorga das delegações se efetiva por ato do Presidente do Tribunal, conseqüência natural da atribuição constitucional e legal de fiscalização dos atos dos notários e registradores atribuída ao Poder Judiciário, encargo que contempla, como é natural, tanto a tarefa de melhor definir a distribuição do serviço, único em cada Estado e cujo exercício, tão só, é fracionado no bem da comunidade usuária, quanto o dever-poder de, constatada a ocorrência de infrações legais, aplicar, mediante prévio processo administrativo em que assegurado o contraditório e ampla defesa, as penalidades legalmente previstas.

Esta atuação ver-se-ia obstada no caso de aprovação do PLC 007/2005 cuja tramitação agora se inicia no Senado Federal e que busca embaralhar entre os três Poderes parcelas incindíveis da atuação hoje exercida pelo Judiciário, atribuindo ao Executivo a outorga de delegações resultante de concursos públicos levados a efeito pelo Judiciário e ao Legislativo, poder político por excelência, a tarefa, que somente pode ser exercida mediante a adoção de critérios técnicos já previstos em lei, de definir a acumulação e desacumulação, a anexação e desanexação dos serviços, assim como a criação ou extinção de unidades do serviço delegado.

O efeito disso é o de tornar inócua a atuação fiscalizadora do Judiciário, em detrimento da seriedade institucional dos serviços notariais e de registros.

A organização dos serviços deixaria, pois, de atender a critérios técnicos de necessidade dos usuários, aferida em função da renda auferida e do número de atos praticados, assim como do aumento ou diminuição da população em cada Comarca ou Município, como previsto na lei federal cuja alteração é proposta, para depender de processo legislativo destinado a questões de maior relevância política, como a criação de Municípios ou de cargos públicos, com as quais não se confunde a distribuição fracionada dos serviços em unidades do serviço delegado.

Implicaria, por outro lado, na reabertura da discussão quanto à autoridade competente para a aplicação da pena de perda da delegação, tendo em vista que a cessação do vínculo do delegado com o Estado deveria se dar por ato da autoridade competente para a outorga.

Outros aspectos do projeto de lei, relativos às regras para a designação de interventor ou responsável por delegação vaga, revelam, quanto à intervenção, inadequação, tendo em vista o fato de que as faltas que autorizam essa medida quase sempre não estão limitadas ao titular da delegação, envolvendo, na maioria dos casos, também os prepostos da mesma serventia. Apenas a vedação da designação de pessoa estranha aos serviços para responder por delegação vaga se mostra pertinente, tanto que vem sendo rigorosamente adotada pela Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo.

Causa espécie, portanto, a continuidade da tramitação de proposta legislativa como a objeto do PLC 007, tanto mais quando se pacifica e consolida, com a regra do inciso III do § 4º do artigo 103-B da Constituição Federal, acrescido pela EC nº. 45, que atribui ao Conselho Nacional de Justiça o controle dos órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, o entendimento de que estes serviços estão vinculados ao Judiciário. Nesse sentido recente e instigante artigo do Desembargador Kioitsi Chicuta intitulado “O Poder Judiciário e os serviços notariais e registrais” em que o magistrado paulista, profundo conhecedor do assunto, destaca os laços fundamentais que ao Poder Judiciário ligam tais serviços, defendendo sua integração a este Poder, não como órgãos, mas como serviços judiciários vinculados ao Poder Judiciário.

Participei, no período de 15 de novembro a 3 de dezembro de 2004, do IV Curso Iberoamericano de Derecho Registral, que teve lugar na Facultad de Derecho de ESADE – Universitat Ramon Llull, em Barcelona, Espanha, e contou com representantes de 13 países, ocasião em que se destacou o sistema jurídico brasileiro por dois significativos fatores cuja relevância foi reconhecida por todos: a previsão constitucional expressa e a independência resultante da não vinculação ao Poder Executivo.

É contra este último que se volta a proposta veiculada por meio do PLC nº 007/2005, cujo prejuízo institucional evidente leva ao questionamento quanto aos reais interessados e beneficiários da alteração legislativa em discussão, os quais não se confundem nem com os cidadãos usuários do serviço público delegado e nem mesmo com a grande maioria dos notários e registradores brasileiros.

As novas regras nenhum benefício trazem para os muitos notários e registradores que trabalham com seriedade e que, por tal razão, não temem a aplicação da pena de perda da delegação, tanto mais enquanto esta depender exclusivamente de critérios técnicos, sem ingerência de variáveis políticas. Também não afetam os titulares de unidades que, segundo padrões técnicos legalmente definidos, relativos a renda auferida e numero de atos praticados, encontram-se adequadas e prescindem de anexação, desanexação, extinção ou criação, sendo relevante, quanto ao Estado de São Paulo, que todo o interior foi objeto de reestruturação recente, em 2001 e que na Capital as unidades foram todas providas em 2000, o que revela não haver previsão ou necessidade de iminente alteração da situação atual.

Assim, resta crer que somente podem ter interesse em tais alterações titulares de unidades cuja renda auferida ou o número de atos praticados apresentem flagrante desproporção se comparados com os dos demais notários e registradores, ou, então, aqueles que, por reiterado e grave descumprimento da lei e das normas administrativas, já se encontrem ou possam se colocar em situação que os sujeite à pena terminativa do vínculo com o Estado aplicada segundo critérios de técnica jurídica. Busca a estes garantir, ainda, na hipótese de afastamento, a permanência de seus subalternos imediatos, quase sempre familiares, com manutenção da renda.

O resultado prático e imediato seria, em função da edição de regra manifestamente contrária à Constituição, a transformação da atuação do Judiciário em mera função decorativa a emprestar a uma atividade que se pretende séria uma aparência de legitimidade sabidamente inexistente, por inócua a fiscalização atribuída a quem se retirou o poder (dever) de aplicar punições a quem lhes desse causa.

Como conseqüência, haveria atraso no cronograma dos concursos públicos ainda remanescentes, atingindo especialmente os destinados ao provimento de delegações do registro civil das pessoas naturais, cujas atribuições guardam estreita relação com a cidadania.

Em suma, seria o interesse de uns poucos, certamente inconfessável ou de difícil admissão pública, em detrimento do interesse institucional, na contramão do caminho hoje em curso e que leva os serviços notariais e de registro do Brasil na direção certa, ou seja, busca conferir a essa função pública a situação de instituição positiva, ou “marco jurídico” como postulou Zapatero.

Revista Consultor Jurídico, 22 de Fevereiro de 2005

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