Autora: Anna Christina Jimenez Pereira (*)
A Sociedade de Propósito Específico (SPE) é pessoa jurídica com a finalidade única de executar um determinado empreendimento ou desenvolver um projeto específico. Não se trata de um tipo societário, mas sua caracterização está relacionada unicamente ao objetivo social da empresa.
A SPE não é regulada em lei. O Código Civil, que trata das sociedades, não disciplina a matéria. Ou seja, o Código Civil não distingue a SPE das sociedades que regulamenta.
Não sendo um tipo societário autônomo ou um novo modelo de sociedade mercantil, para se constituir uma SPE, deve-se adotar um dos modelos societários já existentes em lei, usualmente sociedade limitada (Ltda.) ou sociedade por ações (S.A.), respeitando-se as características de cada uma.
Por sua vez, para fins de registro dessas empresas, devem ser observadas as regras dispostas no Manual de Registro da Sociedade Limitada e no Manual de Registro da Sociedade Anônima, aprovados pela Instrução Normativa 10 do DREI – Departamento de Registro Empresarial e Integração, a quem estão subordinadas as Juntas Comerciais do país.
Referidos Manuais ditam para as Juntas Comerciais as regras de registro das sociedades limitadas e das sociedades anônimas do país e têm por objetivo, também, uniformizar os serviços de registro mercantil, facilitando “a compreensão dos requisitos exigidos para o arquivamento de atos, reduzindo assim o prazo de processamento dos serviços solicitados, e evitando exigências, diminuindo os custos decorrentes de retrabalho, tanto para o cidadão quanto para as Juntas Comerciais”.
Com respeito às SPEs, consta dos Manuais um capítulo próprio tratando do assunto, cuja redação é idêntica tanto para a sociedade limitada, como para a anônima.
Como a própria nomenclatura já indica, segundo os Manuais, o objeto social de uma SPE deve ser necessariamente específico e determinado. Não será aceita a participação em outras sociedades. Obrigatoriamente, o prazo da SPE deve ser determinado, ou seja, limitado ao término da consecução do objeto social específico da empresa. E às Juntas Comerciais caberá manter em seus cadastros a data de início e término das SPE.
Existem algumas complicações criadas pelo DREI, sem nenhuma correspondência legal. Por exemplo, é vedada a transformação de qualquer tipo jurídico em SPE ou vice-versa.
Mas não há razão para se negar o registro de transformação de uma SPE sob a forma de sociedade limitada em sociedade anônima, ou ao contrário. A lei não traz essa vedação.
Vale dizer se, no meio de um empreendimento, a SPE precisar de recursos e os sócios resolverem admitir novo investidor na sociedade e, para tanto, preferirem a forma de sociedade anônima, não poderão transformar a SPE se esta for limitada.
Pior: As Juntas Comerciais passaram a considerar a alteração de objeto social uma “transformação de tipo jurídico”, o que não é correto. Assim, uma sociedade de prateleira não pode ser destinada para um empreendimento específico. A sociedade titular de um imóvel, se em algum momento resolver destiná-lo a um empreendimento específico, também encontrará óbice ao seu registro. E a SPE que tenha seu objeto concluído não poderá ser aproveitada para outras finalidades.
Além disso, pelos Manuais, a utilização da sigla SPE na formação do nome empresarial é obrigatória. O artigo 1.158 do Código Civil determina que a sociedade limitada contenha a palavra final “limitada” ou sua abreviatura. A denominação deve designar, obrigatoriamente, o objeto da sociedade. A Lei das S.A. diz, apenas, que a denominação da sociedade anônima deve vir acompanhada das expressões “companhia” ou “sociedade anônima”, por extenso ou abreviadamente.
Desta forma, se a Junta Comercial entender que o objeto da sociedade é específico, ela exigirá que a denominação social seja acrescida da sigla SPE. Via de consequência, imporá também que o prazo da sociedade seja determinado no contrato social. Há caso, até, em que foi exigida a declaração do endereço completo do imóvel em que a SPE realizaria um futuro empreendimento imobiliário, quando esse imóvel ainda se encontrava em fase prospecção, sequer havia sido adquirido pela sociedade em constituição.
Como se vê, o DREI vai além da sua competência de “propor os planos de ação, políticas, diretrizes, normas e implementar as medidas decorrentes, relativas ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins” e de “coordenar a ação dos órgãos incumbidos da execução dos serviços do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins”. Acaba por ir além do que a lei prevê e restringe o que a lei não restringiu (ubilex non distinguitnec nos distingueredebemus).
Se a intenção do DREI era facilitar o registro das SPEs, é possível observar que, na prática, acabou ocorrendo o contrário. A constituição de sociedades na modalidade de SPEs tem sido cada vez mais evitada. A fim de não chamar a atenção das Juntas Comerciais e evitar exigências muitas vezes impossíveis de serem cumpridas, as sociedades deixaram a ser constituídas para fins específicos, adotando objetos mais amplos, ainda que destinadas a um empreendimento determinado. Sem dúvida, um retrocesso.
Autora: Anna Christina Jimenez Pereira é especialista em Direito Empresarial e sócia da Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados.