Novas tecnologias e a necessidade de reforma tributária

Autor: Daniel Corrêa Szelbracikowski (*)

 

Em dezembro de 2016 foi publicada a Lei Complementar (LC) 157 que alterou a LC 116/03 relativamente ao imposto sobre serviços (ISS) e a Lei 8.129/1992 que dispõe sobre a improbidade administrativa. Algumas das novas regras eram necessárias, tais como as que estabelecem a alíquota mínima do ISS, “regulam” a forma de concessão de benefícios fiscais de ISS e criam sanções para a hipótese de seu descumprimento (os comentários sobre esse assunto serão realizados em artigo específico). Há, porém, aparente inconstitucionalidade quanto à previsão de tributação de negócios jurídicos que não se qualificam como serviços, como é o caso do streaming (item 1.09 da lista de serviços) e do armazenamento e hospedagem de dados (item 1.03). Isso nos remete a refletir sobre a necessidade de reforma do sistema tributário nacional.

De acordo com o novo item 1.09 da lista de serviços anexa à LC 116/03, incidirá ISS sobre a “Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (…)”.

A partir dessa previsão, pretende-se tributar o denominado streaming (ou fluxo de mídia) que nada mais é do que a disponibilização de sons e/ou vídeos diretamente pela internet, “sem a necessidade de efetuar downloads do que está se vendo e/ou ouvindo, pois neste método a máquina recebe as informações ao mesmo tempo em que as repassa ao usuário”. O fluxo de mídia é atividade que vem crescendo em função da revolução digital experimentada pela sociedade. Exemplos não faltam: Netflix, Spotify, Youtube, dentre outros.

O objeto do contrato de streaming é a disponibilização temporária de conteúdo de áudio/vídeo por meio da internet acessada por smartphones, tablets, tv’s inteligentes, computadores e outros dispositivos. Trata-se, portanto, de uma cessão temporária de direito de acesso a determinados conteúdos.

Contudo, o artigo 156, III, da Constituição Federal não permite a tributação de cessão de direitos. Apenas possibilita que os municípios tributem “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar”, os quais pressupõem uma obrigação de fazer, segundo o entendimento majoritário da doutrina.

Nesse sentido, a previsão contida no artigo 156, III, da CF, analisada em conjunto com o artigo 155, II, da CF, revela uma repartição clara de competências tributárias: aos Estados caberá tributar, em regra, as obrigações de dar (operações de circulação de mercadorias) e, excepcionalmente, três obrigações de fazer: prestação de serviços de comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal. As demais obrigações de fazer ficarão, também em regra, sob a competência impositiva e exclusiva dos Municípios, o que justifica a expressão “não compreendidos no artigo 155, II”.

É claro que há situações em que a prestação de serviço é acompanhada do fornecimento de mercadorias e vice-versa. Para essas atividades mistas ou complexas, o artigo 156, III, da Constituição Federal contempla a expressão “definidos em lei complementar”, o que significa que o legislador complementar estabelecerá se referidas atividades estarão sob a competência dos Estados ou dos Municípios, de sorte a evitar conflitos entre as diversas unidades da federação (artigo 146, I, da CF/88).

O streaming não parece revelar uma obrigação de fazer. Isso porque não corresponde a qualquer esforço humano e pessoal praticado em proveito de terceiro que tenha por objetivo executar, criar, ou elaborar algo até então inexistente. O conteúdo disponibilizado pelo streaming já existe. O Netflix e o Spotify, dentre outros, apenas cedem temporariamente o direito de acesso aos vídeos (filmes, séries, etc.) e às músicas que já estão, perfeitos e acabados, em suas bases de dados. Se o streaming não é obrigação de fazer, não cabe tributá-lo pelo ISS, sob pena de subverter o conceito de serviço pressuposto constitucionalmente para os fins do artigo 156, III da CF/88.

Referido negócio jurídico também não revela serviço de comunicação, já que não disponibiliza meios que possibilitam a transmissão de mensagens entre um emissor e um receptor por si sós. Com efeito, segundo o artigo 60 da Lei 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), o serviço de telecomunicações caracteriza-se pelo “conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação”. A oferta de comunicação por intermédio de um conjunto de atividades (serviço) não se confunde com o conteúdo comunicado. No caso do streaming, a utilidade comumente negociada entre as empresas e os consumidores é o conteúdo comunicado (filmes, vídeos, séries, músicas, novelas, etc) que, em função da aludida tecnologia, é acessado em tempo real desde que haja acesso a um serviço de comunicação (já tributado pelo ICMS) que disponibilize internet. Por essas razões, não havendo serviço de comunicação, o streaming igualmente não pode ser tributado pelo ICMS (artigo 155, II, da CF).

Do mesmo modo, não há como incidir ISS sobre “armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação, entre outros formatos, e congêneres”,  segundo o disposto pela recente atualização do item 1.03 da lista de serviços pela LC 157/16.

É que essas atividades caracterizam-se pela disponibilização de espaço virtual para a guarda de bens (dados ou websites, este último denominado de web hosting). Desse modo, parecem caracterizar obrigações de dar espaço virtual, semelhantemente ao que ocorre com os armazéns gerais, em que se contrata a guarda de determinados objetos em espaços físicos. A distinção ocorre aparentemente quanto ao tipo de espaço contratado e bem guardado, se físico ou virtual. Portanto, não parece haver serviço na acepção do que o termo representa para o direito privado (obrigação de fazer), mas algo similar à locação que não atrai a incidência do imposto municipal, segundo o STF.

Referidos negócios jurídicos poderiam, ainda, ser considerados “serviços” de valor adicionado (SVA), os quais não se confundem com serviços de comunicação. Segundo o artigo 61 da LGT, “serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações”. O serviço de conexão à internet (SCI) é um exemplo de SVA.

Nada obstante, é curioso notar que as utilidades em análise, além da necessária utilização de um serviço de comunicação (já tributado pelo ICMS), também já demandam o uso de um SVA (internet). Tratar-se-ia, portanto, de um SVA suportado por outro SVA que, finalmente, é possibilitado por um serviço de comunicação. Em outras palavras, o que dá suporte ao Spotify, por exemplo, não é apenas a operadora de telefonia (comunicação), mas também a internet (SVA) por ela disponibilizada. Daí porque referidas utilidades incluídas na LC 116/03 pela LC 157/16 não parecem confundir-se com o serviço de valor adicionado mencionado pela LGT e muito menos com o serviço de tele(comunicação) que lhe serve de suporte.

Ainda que assim não fosse, o fato de a lei denominar os referidos negócios de “serviço” ou incluí-los na lista anexa à LC 116/03 não teria o condão de modificar a natureza jurídica das prestações à luz da Constituição. Assim, enquanto o conceito de serviço pressuposto constitucionalmente for aquele compartilhado pelo direito privado — em contraposição a um conceito econômico — não se pode conceber a tributação dos negócios jurídicos mencionados.

Surge certa perplexidade quando se verifica que o serviço de comunicação, sujeito ao ICMS, aparentemente não mais traduz típica obrigação de fazer. No surgimento da telefonia havia a necessidade de um fazer humano na central telefônica. A conexão entre os usuários era realizada manualmente por um telefonista. Isso ficou no passado, de modo que a revolução digital praticamente expurgou o fazer humano da atividade de comunicação. Por isso, surge a dúvida: será que a Constituição admite um conceito de serviço para o ICMS distinto daquele previsto para o ISS? Para um imposto serviria a prestação de uma utilidade, enquanto para outro seria necessário um fazer humano que criasse algo até então inexistente?

A ausência de uma doutrina clara do Supremo a respeito do assunto contribui para a manutenção desse estado de incerteza.

De fato, na década de 1980 o STF encampou o “conceito econômico” de serviço, ao validar a incidência de ISS sobre a locação de guindastes. Nos anos 2000, ao analisar novamente a incidência do ISS sobre locação de bens móveis, o STF adotou o conceito civilista de serviços. Em 2009, analisando a expressão “de qualquer natureza” constante do artigo 156, III, da CF, o STF novamente pareceu abandonar o conceito civilista de serviço ao autorizar a incidência do ISS sobre o leasing financeiro. Para tanto, assentou que o leasing seria atividade complexa em que prevaleceria o financiamento, que seria serviço. Afastou, assim, a preponderância da locação (obrigação de fazer) ou da compra e venda (obrigação de dar) do referido contrato. Apesar disso, houve certa dicotomia entre os votos. Enquanto alguns Ministros assentaram que serviço não mais se confundiria com obrigação de fazer, outros se esforçaram para demonstrar que a administração do financiamento seria uma obrigação de fazer, ou seja, engajaram-se numa construção que não modificasse o conceito civilista. Posteriormente, em 2010, o Tribunal aprovou a Súmula Vinculante 31, reiterando o seu entendimento de que “é inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza sobre operações de locações de bens móveis”.

Ora, tivesse havido uma “mutação constitucional” acerca do conceito de serviço pressuposto pelo art. 156, III, da CF, o STF possivelmente não teria editado a Súmula Vinculante (que encampa o conceito civilista), mas sim retornado à interpretação que já havia sido atribuída ao termo na década de 1980.

A ampliação da lista de serviços anexa à LC 116/03 para alcançar manifestações de disponibilidade patrimonial que não se confundem com prestação de serviço também revela que a atual repartição constitucional de competências tributárias possibilita a ausência de sujeição de determinadas utilidades ao ISS e ICMS, simultaneamente. Para alcançar esses fatos restaria a competência residual atribuída à União pelo artigo 154 da Constituição, mas dificilmente os prefeitos e governadores permitiriam que uma proposição desse jaez fosse aprovada no Congresso Nacional.

Em suma, o cinquentenário sistema tributário nacional parece não comportar a dinâmica dos fatos sociais e da (r)evolução tecnológica que insiste em criar novos negócios até então inimagináveis, a demandar a realização de uma profunda reforma tributária.

Essa necessidade de reestruturação da matriz tributária brasileira também se justifica em função da iniquidade do atual sistema tributário. Calcado na tributação sobre o consumo e no excesso de contribuições que suprem apenas os cofres da União, o sistema é caracterizado por regressividade, má-distribuição da carga, baixo retorno social, baixo estímulo a investimentos, entre outros vícios, segundo os “Indicadores de Equidade do Sistema Tributário Nacional”.

Nesse sentido, seria de todo conveniente que o Congresso Nacional desse seguimento à reforma tributária para que ISS, ICMS, IPI e outros tributos que gravam o consumo (PIS e COFINS) pudessem ser unificados sob a forma de um IVA Nacional, não-cumulativo, incidente sobre todo e qualquer processo de agregação econômica de valor. Relembre-se que, ao contrário do que ocorre no Brasil, o IVA-serviço europeu não é sinônimo de uma prestação de fazer humana (atividade) associada a uma utilidade, mas à própria utilidade decorrente de uma atividade que venha a agregar valor no processo econômico.

A criação de um IVA Nacional desse jaez, cuja receita fosse partilhada entre todos os entes da federação, contribuiria para alcançar, por intermédio da tributação, todos os fatos econômicos relevantes para a sociedade contemporânea, aumentando a eficiência da arrecadação. Ademais, eliminaria vários problemas atualmente verificados na matriz tributária, tais como as supracitadas restrições relacionadas aos critérios materiais de incidência do ISS e ICMS, a cumulatividade do ISS, a não-cumulatividade precária do PIS/COFINS, a guerra fiscal de ISS e ICMS, o excessivo esforço fiscal para o cumprimento de obrigações tributárias, o excesso de tributos sobre a mesma base, dentre outras.

 

 

 

 

Autor: Daniel Corrêa Szelbracikowski é advogado, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Tributário e sócio da Advocacia Dias de Souza


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