Autor: Carlos Eduardo Príncipe (*)
A partir de 11 de novembro de 2017, a CLT passou a regulamentar o programa de demissão voluntária (PDV), mecanismo há muito adotado pelas empresas em momentos de crise gerados por retração de mercado, perda de clientes, baixa produção, readequação do quadro funcional etc., com a finalidade de estimular o desligamento de empregados mediante a concessão de vários benefícios econômicos e sociais, além daqueles previstos na lei e nos instrumentos normativos.
O novel artigo 477-B da CLT expressamente dispõe:
“Art. 477-B. Plano de Demissão Voluntária ou Incentivada, para dispensa individual, plúrima ou coletiva, previsto em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, enseja quitação plena e irrevogável dos direitos decorrentes da relação empregatícia, salvo disposição em contrário estipulada entre as partes.” (Grifamos)
De forma objetiva o legislador determina que a instituição de PDV, quer para dispensa individual, quer para desligamento coletivo, quando celebrado mediante acordo coletivo de trabalho ou mesmo estipulado em convenção coletiva de trabalho, automaticamente acarreta a plena e irrevogável quitação dos direitos decorrentes da relação de emprego, ou seja, impede que o ex-empregado venha posteriormente reclamar qualquer outro direito na Justiça do Trabalho, ressalvada alguma exceção estipulada pelas partes.
Referido artigo, a priori, estimula e valoriza os princípios da boa-fé e da lealdade que devem imantar a relação negocial entre os atores sociais, responsáveis pela discussão, negociação e concretização de um PDV, em consonância com o disposto nos artigos 7º, XXVI, 8º, III e VI da Carta Constitucional.[1]
I. Antecedentes Históricos
Em 27 de setembro de 2002, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Orientação Jurisprudencial 270 por meio de sua Seção Especializada de Dissídios Individuais, nos seguintes termos:
“270. PROGRAMA DE INCENTIVO À DEMISSÃO VOLUNTÁRIA. TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL.
PARCELAS ORIUNDAS DO EXTINTO CONTRATO DE TRABALHO. EFEITOS (inserida em 27.09.2002)
A transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho ante a adesão do empregado a plano de demissão voluntária implica quitação exclusivamente das parcelas e valores constantes do recibo.” (Grifamos)
Esta tendência jurisprudencial adotada pela mais alta Corte Trabalhista foi fruto de 16 julgados que, de forma harmônica, entenderam, diante do particularismo inerente ao direito do trabalho, ser inviável aceitar-se a transação extrajudicial com efeitos amplos a tal ponto de obstaculizar eventual ação judicial pelo empregado, pois, antes de tudo o empregado seria a parte mais frágil na relação capital e trabalho, inclusive o próprio sindicato profissional que teria sua capacidade negocial reduzida ante a escassez de empregos.
A título ilustrativo transcreve-se trechos de dois acórdãos que contribuíram para a criação da mencionada orientação jurisprudencial:
“RECURSO DE REVISTA. ADESÃO DO EMPREGADO AO PLANO DE DESLIGAMENTO VOLUNTÁRIO. TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL. DIREITO DO TRABALHO. PRINCÍPIO DA IRRENUNCIABILIDADE OU DISPONIBILIDADE RELATIVA. “RES DUBIA” E OBJETO DETERMINADO.CONDIÇÕES ESPECÍFICAS DE VALIDADE DA TRANSAÇÃO DO ART. 477, §§ 1º E 2º, DA CLT. EFEITOS. ARTS. 9º DA CLT E 51 DO CDC
O Direito do Trabalho não cogita da quitação em caráter irrevogável em relação aos direitos do empregado, irrenunciáveis ou de disponibilidade relativa, consoante impõe o art. 9º consolidado, porquanto se admitir tal hipótese importaria obstar ou impedir a aplicação das normas imperativas de proteção ao trabalhador.
Admitir-se a transação extrajudicial com efeitos amplos sem obediência às normas específicas do Direito do Trabalho que tratam do tema é tornar inócua a letra da lei e o particularismo que envolve e norteia a disciplina, pena de tornar o contrato de trabalho modalidade de contrato civil, a dispensar, inclusive, a necessidade de uma intervenção da Justiça Especial para dirimir os litígios que lhe são pertinentes. (…)”
(Brasília, 18 de setembro de 2002. Luiz Philippe Vieira De Mello Filho Juiz Convocado Relator, Acórdão, 5ª Turma, Processo RR nº 485724, ano 1998, Publicação DJ 11/10/2002, Proc. nº TST-RR-485.724/98.6). (Grifamos)
“PLANO DE DEMISSÃO INCENTIVADA – TRANSAÇÃO – VALIDADE – VIOLAÇÃO DO ART. 896 DA CLT.
A transação extrajudicial, através da rescisão do contrato de emprego em virtude de o empregado aderir a Plano de Demissão Voluntária, implica quitação exclusivamente das parcelas recebidas e discriminadas a título de indenização, não importando em quitação total de prestações outras do contrato de emprego, estranhas ao instrumento de rescisão contratual.”
(Brasília, 27 de agosto de 2001. Carlos Alberto Reis de Paula Relator. Acórdão, SBDI-1, Processo E-RR nº 496494, ano 1998, Publicação DJ 06/09/2001). (Grifos nossos)
Como se extrai dos fundamentos de referidos acórdãos, o entendimento do TST tinha como lastro a premissa de que o empregado não teria liberdade para decidir o melhor para si e que o próprio sindicato se veria coagido diante da crise de empregos. Enfim, o foro adequado para transacionar direitos seria diante de um juiz.
Portanto, as rescisões contratuais decorrentes da adesão de empregados a programas de demissão voluntaria somente importavam em quitação quanto às parcelas e valores discriminados no recibo, o que sujeitava a empresa a responder judicialmente por eventual ação trabalhista proposta pelo ex-empregado, não obstante os benefícios extralegais concedidos.
II. Supremo Tribunal Federal – valorização dos princípios da autonomia privada coletiva e da boa-fé
O STF ao julgar em 30.4.2015 o recurso extraordinário (RE) 590.415/SC [2], por unanimidade, conheceu e deu-lhe provimento, fixando em repercussão geral a seguinte tese:
“A transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho, em razão de adesão voluntária do empregado a plano de dispensa incentivada, enseja quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas objeto do contrato de emprego, caso essa condição tenha constado expressamente do acordo coletivo que aprovou o plano, bem como dos demais instrumentos celebrados com o empregado”.
O ministro relator Roberto Barroso com maestria ímpar por meio de razões doutrinárias substanciais demonstrou o quão equivocado é transpor os limites da autonomia individual para o campo coletivo na tentativa de também limitar o princípio da autonomia coletiva da vontade, vez que, em regra, as situações são absolutamente assimétricas na medida em que o poder de barganha dos sindicatos se encontra no mesmo nível do empregador, quer pela força da pressão social, quer pela força da greve.
No caso concreto, a reclamante concordou em aderir, no ano de 2001, ao Plano de Demissão Incentivada proposto pelo seu empregador, assessorada pelo seu sindicato, sendo que o termo de rescisão contratual foi homologado no Ministério do Trabalho, sem qualquer ressalva, à época, recebendo o valor líquido de R$ 133.636,24 o que correspondia a 78 vezes o valor de sua maior remuneração mensal (equivalente a R$ 1.707,42).
Como anota o voto do ministro Barroso, a decisão de primeiro grau ao decidir pela improcedência o fez com os seguintes argumentos:
“i) os instrumentos assinados pela reclamante, desde o momento da manifestação de interesse em aderir ao PDI até a celebração da rescisão contratual, previam expressamente que a rescisão ensejaria a quitação plena de toda e qualquer verba trabalhista; ii) o PDI baseou-se em acordo coletivo concebido após ampla discussão, com a participação dos trabalhadores e do sindicato profissional, tendo havido pressão dos próprios funcionários do BESC pela formalização do plano, mesmo contra a orientação da entidade de classe; iii) o montante pago à reclamante superou, e muito, o valor correspondente às verbas rescisórias: a autora recebeu o total bruto de R$ 134.811,72, sendo que R$ 129.329,01 a título indenizatório e o restante pelas verbas rescisórias de praxe; iv) é viável a quitação plena na hipótese, quer porque a reclamante – assim como os demais empregados do Banco – tinha plena ciência das consequências da quitação plena, quer porque a adesão ao PDI corresponderia a verdadeiro pedido de demissão por parte da reclamante.” (Grifos nossos)
O TRT da 12ª Região manteve a improcedência da ação, entretanto, o TST decidiu por reformá-la sob o seguinte enfoque:
“i) a quitação somente libera o empregador das parcelas estritamente lançadas no termo de rescisão, a teor do art. 477, § 2º, CLT; ii) todos os termos de rescisão de contratos de trabalho com o BESC mencionavam as mesmas parcelas como quitadas, nos mesmos percentuais indenizatórios, o que demonstraria que não foram precisadas as verbas rescisórias efetivamente devidas a cada trabalhador e seus valores, tendo-se elaborado mero documento pro forma, com a inclusão de todas as possíveis parcelas trabalhistas e percentuais hipotéticos; iii) a transação pressupõe concessões recíprocas a respeito de res dubia, elemento que inexistia no caso; iv) a transação interpreta-se restritivamente; v) os direitos trabalhistas são indisponíveis e, portanto, irrenunciáveis; vi) deve-se tratar “com naturais reservas” a transação extrajudicial no plano do Direito do Trabalho, “máxime se firmada na vigência do contrato de emprego”.
Diante deste posicionamento, para dizer o menos, exacerbadamente protecionista, que não levou em consideração a atuação do sindicato e mormente a manifestação dos trabalhadores, a Suprema Corte, de forma objetiva, engendrou análise constitucional a demonstrar o quão equivocada foi a decisão do TST, conforme se extrai ao longo do acórdão de 58 laudas.
Destaca-se passagem do voto elaborado pelo ministro Barroso quanto à valorização do papel dos sindicatos em sintonia com os princípios constitucionais que norteiam a atuação de referidos entes sindicais, in verbis:
“27. O reverso também parece ser procedente. A concepção paternalista que recusa à categoria dos trabalhadores a possibilidade de tomar as suas próprias decisões, de aprender com seus próprios erros, contribui para a permanente atrofia de suas capacidades cívicas e, por consequência, para a exclusão de parcela considerável da população do debate público.” (…)
E mais a frente o ministro Barroso com propriedade ao se referir às razões de decidir do TST, conclui:
“48. Não socorre a causa dos trabalhadores a afirmação, constante do acórdão do TST que uniformizou o entendimento sobre a matéria, de que “o empregado merece proteção, inclusive, contra a sua própria necessidade ou ganância”. Não se pode tratar como absolutamente incapaz e inimputável para a vida civil toda uma categoria profissional, em detrimento do explícito reconhecimento constitucional de sua autonomia coletiva (art. 7º, XXVI, CF). As normas paternalistas, que podem ter seu valor no âmbito do direito individual, são as mesmas que atrofiam a capacidade participativa do trabalhador no âmbito coletivo e que amesquinham a sua contribuição para a solução dos problemas que o afligem. É através do respeito aos acordos negociados coletivamente que os trabalhadores poderão compreender e aperfeiçoar a sua capacidade de mobilização e de conquista, inclusive de forma a defender a plena liberdade sindical. Para isso é preciso, antes de tudo, respeitar a sua voz.” (Grifos nossos)
III. Considerações
Não obstante o clamor contrário de parte dos atores sociais concernente ao advento da Lei 13.467/2017, inegável que as alterações propostas em sua grande maioria irão contribuir para o fortalecimento das relações trabalhistas e sindicais, antes, porém, sinalizando fortemente para a observância dos princípios da boa-fé e da transparência que devem nortear os instrumentos normativos e consequentemente para a valorização dos sindicatos profissionais, enquanto legítimos representantes das classes trabalhadoras, destarte, concretizando o disposto na Carta Magna, em especial artigo 7º, XXVI e artigo 8º, III e VI.
Especificamente quanto ao novo artigo 477-B, o legislador consolidou interpretação constitucional consentânea com a realidade do mercado de trabalho que até então era ignorada pela mais alta Corte Trabalhista sob o fundamento de que o trabalhador não teria condições de optar pelo melhor para si, ainda que assessorado e orientado pelo seu sindicato e que este também não teria plena capacidade de agir, vez que tolhido pelas circunstâncias das crises de desemprego.
Com a devida vênia é preciso romper com o falso dogma de que os entes sindicais não se encontram preparados para negociar, que não sabem negociar, à exceção de algumas categorias tradicionais (ex.: metalúrgicos, químicos, entre outras).
Ora, desde o advento da CLT, os sindicatos estão aí negociando, uns com lealdade à categoria profissional e uns poucos corrompidos pelo numerário das contribuições compulsórias e normativas em detrimento de sua verdadeira missão. Entretanto para estes últimos existe todo um arcabouço jurídico à disposição de quem se sentir prejudicado, mormente com o advento da Constituição de 1988.
Em conclusão, a nosso sentir o novo artigo 477-B da CLT contribuirá para fortalecer a negociação coletiva e, acima de tudo, sinalizar aos trabalhadores beneficiados para a importância de participarem, refletirem e decidirem de forma consciente e ética, lastreados na boa-fé, sobre o que lhes é mais interessante, assumindo as consequências de sua decisão, via de consequência evitando bater às portas do Judiciário para reclamar contra o seu antigo empregador.
Autor: Carlos Eduardo Príncipe é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP. Pós-graduado, em nível de Especialização Lato sensu, em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior. Advogado e consultor trabalhista-sindical.