Autor: Allan Titonelli Nunes (*)
Recentemente o Poder Constituinte Derivado, atendendo aos anseios da sociedade por uma maior eficiência e efetividade da prestação jurisdicional introduziu, por meio da Emenda Constitucional 45/2004, o inciso LXXVIII, ao artigo 5º, que assim dispõe: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
Para contextualizar, a referência à exposição de motivos 204, de 15 de dezembro de 2004, assinada pelos chefes dos três Poderes da República logo após a promulgação da Emenda Constitucional 45/2004, por meio da qual foi proposta a formalização do “Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano”, eis trecho inicial do documento[1]:
Poucos problemas nacionais possuem tanto consenso no tocante aos diagnósticos quanto à questão judiciária. A morosidade dos processos judiciais e a baixa eficácia de suas decisões retardam o desenvolvimento nacional, desestimulam investimentos, propiciam a inadimplência, geram impunidade e solapam a crença dos cidadãos no regime democrático.
Em face do gigantesco esforço expendido sobretudo nos últimos dez anos, produziram-se dezenas de documentos sobre a crise do Judiciário brasileiro, acompanhados de notáveis propostas visando ao seu aprimoramento.
A aprovação da mencionada Emenda Constitucional, portanto, foi resultado da constatação, de verdadeiro colapso no sistema judiciário brasileiro e da necessidade de que fossem empreendidas medidas conjuntas com o fim de conferir agilidade e maior efetividade ao sistema.
A doutrina, há muito, já vinha alertando para necessidade de ser conferida maior efetividade à tutela jurisdicional. Esse ideal instrumentalista é bem retratado no livro de Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco[2]:
A fase instrumentalista, ora em curso, é eminentemente crítica. O processualista moderno sabe que, pelo aspecto técnico-dogmático, a sua ciência já atingiu níveis muito expressivos de desenvolvimento, mas o sistema continua falho na sua missão de produzir justiça entre os membros da sociedade. É preciso agora deslocar o ponto-de-vista e passar a ver o processo a partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nos seus resultados práticos. Como tem sido dito, já não basta encarar o sistema do ponto-de-vista dos seus produtores do serviço processual (juízes, advogados, promotores de justiça): é preciso levar em conta o modo como os seus resultados chegam aos consumidores desse serviço, ou seja, à população destinatária.
Sob o manto desse ideal, o Processo Civil brasileiro sofreu diversas alterações que ambicionaram dotar os jurisdicionados de mecanismos mais efetivos e céleres para a concretização do direito. Desde o início da década de 90 essas alterações legislativas tomaram conta do Código de Processo Civil, transformando-o em uma verdadeira “colcha de retalhos”.
Acumula-se o fato de que a simples reestruturação administrativa do Poder Judiciário não seria capaz de atender os anseios de dinamizar a prestação jurisdicional.
Assim, ao passo que buscou a reordenação do sistema processual, a nova codificação teve como norte conferir agilidade e maior efetividade à prestação jurisdicional, conforme se pode extrair das palavras do ministro Luiz Fux, presidente da Comissão de Juristas encarregada da elaboração do anteprojeto do novo Código de Processo Civil[3]: “O Brasil clama por um processo mais ágil, capaz de dotar o país de um instrumento que possa enfrentar de forma célere, sensível e efetiva, as misérias e as aberrações que passam pela Ponte da Justiça.”
Todo esse conjunto de alterações formam o que pode ser chamado de“Direitos Fundamentais do Credor”, o qual deve ser o novo paradigma de interpretação, encampando conceito que o mestre Chiovenda, citado por Cândido Rangel Dinamarco pregava, “o processo deve propiciar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem direito de obter.”[4]
Como o novo CPC consolidou diversas inovações, integradas ao processo de execução comum, tornando-o mais célere e eficaz, a execução fiscal sofreu algumas alterações, tendo em vista que o CPC se aplica subsidiariamente à Lei de Execução Fiscal (LEF).
Porém, há inovações que conflitam com os dispositivos da LEF, o que ensejou a existência de uma antinomia. Como a LEF é uma lei específica, e anterior às mudanças promovidas no CPC, e este é uma lei geral posterior, tratando mais celeremente a execução, haveria uma antinomia de segundo grau, um conflito na aplicação do critério da especialidade ou o cronológico.
A solução para essa antinomia de segundo grau, conflito dos critérios de aplicação para solução de uma antinomia, não é consenso na doutrina. Essa antinomia acontece quando uma norma geral posterior se torna incompatível com uma norma especial anterior. Aplicando-se o critério cronológico, a norma geral posterior terá prevalência; porém, utilizando-se o critério da especialidade, a norma especial terá preponderância.[5]
Noberto Bobbio defende a tese de que o critério cronológico é o mais fraco, motivo pelo qual sucumbiria ao hierárquico e ao da especialidade. Contudo, deixa algumas dúvidas quando o confronto é entre o critério da especialidade e o cronológico, concluindo que seria melhor resolvê-lo de acordo com o caso concreto, apesar de traçar uma norma geral de solução,lex posterior generalis non derogat priori speciali, nesse sentido[6].
Já Maria Helena Diniz ao expor sua opinião sobre o assunto diz que nos casos de conflito entre o critério da especialidade e o cronológico é mais prudente aferir qual prevalecerá de acordo com o caso concreto, por não haver uma regra definida: “Não há uma regra definida, pois, conforme o caso, haverá supremacia ora de um, ora de outro critério.”[7]
Diante dos entendimentos expostos acima, caberá ao intérprete do direito resolver o conflito, através de uma análise casuística. Isso porque não é possível traçar uma norma geral de solução com a segurança de que resolveria todos os casos possíveis.
Outrossim, Vitor Frederico Kümpel enfrentou a questão e concluiu que, se uma norma geral posterior conflitar com a norma especial anterior, caso do conflito entre o novo Código Civil, lei geral, e as leis especiais, prevalece o critério cronológico, citando entre as suas razões[8]:
Em primeiro lugar, porque a Lei de Introdução ao Código Civil só previu o critério cronológico. Para essa aferição, basta a simples leitura do art. 2.º o qual apresenta a revogação expressa e tácita no caput e no § 1.º, estabelecendo, no § 2.º, que, com a ausência de incompatibilidade, a lei nova (qualquer que seja a sua natureza) se harmoniza e não revoga a anterior, passando ambas a incidir no sistema jurídico.
Em segundo lugar, porque as normas gerais, os Códigos, tais como o Civil, o Penal, o Processual, por tratarem de ramos do ordenamento, ao entrarem em vigor, não podem nascer esfacelados ante a impossibilidade de revogação de normas especiais já existentes e que petrificariam o sistema. Podemos citar como exemplo um novo Código Penal o qual não pudesse, a não ser de forma expressa, revogar crimes previstos no Código de Trânsito.
Em terceiro lugar, porque, caso houvesse a prevalência da lei especial anterior sobre a geral posterior, obrigaria o legislador a conhecer todas as leis especiais anteriores, para revogá-las expressamente, sob pena de criar letra natimorta de lei.
Em quarto lugar, a presunção segundo a qual o legislador, ao tratar das leis especiais, faz isso com maior acuidade é acadêmica, sem qualquer previsão sistêmica.
Os fundamentos utilizados pelo autor retromencionado podem também ser aplicados para resolver o conflito em comento. Se o novo Código Civil e o novo CPC, são leis gerais, e se a LEF e as diversas outras leis esparsas versando sobre o direito civil e processual civil são leis especiais, a conclusão deve ser a mesma.
Esse também foi o entendimento do STJ ao resolver conflito entre lei especial anterior e lei geral posterior mais benéfica, proclamando que prevalece a disposição mais benéfica prevista na lei geral.
O entendimento citado ocorreu no julgamento do REsp. 1.137.354/RJ[9], quando se discutia qual seria o prazo prescricional das ações reparatórias em face do Estado. Isso porque o art. 1º, do Decreto nº 20.910/32, lei especial anterior, estabelece prazo prescricional quinquenal, e o art. 206, parágrafo 3º, V, do novo Código Civil, lei geral posterior, estipula prazo de três anos nos casos de reparação civil. Firmou-se o entendimento que prevalece o prazo mais benéfico, previsto na lei geral posterior.
Não obstante, acrescem-se às razões de Vitor Frederico Kümpel outras.
Quinto lugar, uma prerrogativa não pode ser interpretada contra o seu detentor. Caso da LEF, que, apesar de ter sido editada para dotar a Fazenda Pública de mais prerrogativas na execução, hoje alberga um procedimento mais moroso que grande parte do disposto no novo CPC.
Sexto lugar, a lei geral posterior estará sempre em maior consonância com os anseios da sociedade, posto que a sociedade é dinâmica e as leis são estáticas, de modo que, havendo incompatibilidade entre a lei geral nova e a lei especial anterior, não há porque esperar o legislador atuar, tendo em vista que cabe ao aplicador do direito sanar essas antinomias.
Sétimo lugar, deve-se sempre tomar como matiz de interpretação os princípios que regem a teoria geral do sistema, de modo que, sendo a efetividade e celeridade corolários de um direito fundamental do credor, no que tange ao processo de execução, não há porque deixar de aplicar a lei nova, que é mais benéfica.
Oitavo lugar, uma interpretação histórica, sistemática, teleológica e principiológica reforçam ainda mais o entendimento aqui defendido, onde se soma o objetivo originário da LEF em dotar a Fazenda Pública de maiores prerrogativas, os princípios da duração razoável do processo, da efetividade, da eficiência, entre outros insculpidos no Novo CPC.
Nono lugar, o disposto no artigo 784 do CPC/15, que elenca entre as hipóteses de títulos executivos extrajudiciais, a certidão de dívida ativa, aptos a ensejar um processo de execução nos termos dos procedimentos inseridos no Livro II, que trata do Processo de Execução. Esse artigo, por si só, já dá ensejo à interpretação de que o novo CPC se aplica à execução do crédito fazendário, independentemente de haver lacuna na LEF ou não.
Décimo lugar, aplicação da teoria do Diálogo das Fontes, a qual defende que a busca pela solução de antinomias em apenas um diploma legal seria um equívoco, sendo dever do intérprete do direito buscar a solução de antinomias a partir do diálogo entre as fontes normativas existentes. Assim, se a LEF, que é lei especial, objetiva dar tratamento mais benéfico à Fazenda Pública (o que se evidencia pela exposição de seus motivos, em seus itens 4, 9, 22 e 24, da mesma forma como a Constituição respalda esse tratamento célere à tramitação processual, art. 5º, caput, conjugado com o inciso LXXVIII), não há motivos para não incorporar à mesma as inovações do novo CPC, que introduziu uma nova sistemática de execução, em que há mais efetividade à cobrança do crédito privado que o fazendário.
Ante o exposto, conclui-se que o novo CPC se aplicada à LEF, havendo ou não lacuna.
De outro giro, o desenvolvimento desses argumentos, principalmente depois da alteração Constitucional e da entrada em vigor do Novo CPC, pode servir como novo fundamento de validade para superar precedentes e súmulas contrárias à Fazenda Pública, por meio do distinguishing e Overruling, principalmente àquelas ligadas à proibição às sanções políticas (que consiste, resumidamente, na proibição da utilização de meios de coação indireta para a cobrança de tributo), privilegiando ações como o protesto das Certidões da Dívida Ativa (CDAs), entre outras, que incentivam medidas alternativas de cobrança, pincipalmente pela ineficácia da prestação jurisdicional.
Até pelo fato de muitos países já utilizarem desse conceito (medidas alternativas de cobrança) para apertar o cerco aos sonegadores, vide o exemplo da França que veda ao sonegador o exercício de toda profissão industrial, comercial ou liberal por tempo determinado, assim também ocorrendo na Espanha em relação à obtenção de subvenções, bem como gozar de incentivos fiscais e da seguridade social. Outro país que adota essa conduta é Portugal, onde o sonegador poderá sofrer interdição temporária do exercício de atividades e profissões; vedação ao recebimento de subvenções e encerramento do estabelecimento, dissolução da pessoa coletiva a que se relacione o agente.
Inclusive a sonegação crescente foi objeto de debate no julgamento da ADI n° 2390, em que se questiona normas relativas ao fornecimento, pelas instituições financeiras, de informações bancárias de contribuintes à administração tributária sem a intermediação do Poder Judiciário (sigilo fiscal), tendo sido referencial do voto do ministro relator Dias Toffoli, o qual faz menção a estudo do SINPROFAZ, ”Sonegação no Brasil – Uma Estimativa do Desvio da Arrecadação” (lançado em 2013 e replicado nos anos de 2014 e 2015, cuja iniciativa inovadora partiu do presente autor, quando era Presidente da respectiva entidade).
O estudo em comento teve como objetivo estimar, com fundamento em outros trabalhos e dados da economia nacional, a sonegação no Brasil. O resultado apresentado aponta que aplicando a média dos indicadores de sonegação dos tributos que possuem maior relevância para a arrecadação (ICMS, Impostos de Renda e Contribuições Previdenciárias) poder-se-ia calcular um índice de 27,6% de sonegação, podendo chegar a 10,1% do PIB, o que corresponderia a R$ 518,2 bilhões levando em conta o PIB de 2014.[10]
O julgamento da questão do sigilo no Supremo, que na mesma data apreciou o RE 601.321/SP, com 6 Ministros manifestando no sentido da Constitucionalidade da LC 105/2001, já demonstra mais uma quebra de paradigma em relação ao necessário cerco à sonegação fiscal.
A almejada justiça da tributação, alicerçada na satisfação dos direitos fundamentais e sociais insculpidos na Constituição, somente estará plenamente preservada reduzindo a sonegação fiscal, o que enseja aplicação das novas alterações no Ordenamento Jurídico, as quais podemos nominar de “Direitos Fundamentais do Credor”.
Autor: Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional, ex-presidente do Fórvm Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz.