Autor: Pedro Machado Segall (*)
Desde a sua redação original, a Constituição Federal de 1988 prevê, no seu artigo 5º, ser um direito – fundamental, enfatize-se – o respeito ao devido processo legal (inciso LIV), com especial atenção ao contraditório e à ampla defesa (inciso LV)[1]. Dessa forma, o legislador constituinte insculpiu, no artigo 93, IX, da Constituição[2], o dever de o magistrado fundamentar suas decisões, sob pena de nulidade. A razão é evidente: não há como se contraditar uma decisão cujos fundamentos não se têm acesso. Além disso, essa exigência é decorrência lógica do Estado Democrático de Direito, que não aceita que os Poderes decidam de forma arbitrária e subjetiva.
Foi com base nesse arcabouço principiológico que o legislador infraconstitucional elaborou o Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15), atribuindo ao juiz o dever de “zelar pelo efetivo contraditório” (artigo 7º)[3], ao mesmo tempo em que lhe vedou a decisão surpresa (artigos 9º e 10)[4], i.e., aquela que as partes não tiveram possibilidade de influenciar. Nessa linha, é digno de nota o artigo 489, parágrafo 1º, do mesmo diploma[5], que só veio esmiuçar o que seria, a contrario sensu, uma decisão fundamentada segundo tal arcabouço.
Nesse contexto, foi extensa a produção doutrinária elogiando e criticando o referido artigo 489, parágrafo 1º. Contudo, salvo algumas exceções[6], a ampla maioria o analisou apenas do ponto de vista do magistrado, esquecendo-se de que o processo é conduzido mediante a participação de todos os integrantes da relação processual, ainda que não de forma exatamente proporcional.
Tanto é assim que o Novo CPC estabeleceu que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva” (artigo 6º), positivando o que se convencionou denominar princípio da cooperação.
É dizer, se é exigível do magistrado que prolate decisões devidamente fundamentadas para que se possa permitir o efetivo contraditório, da mesma forma também o é exigível das partes que peticionem tendo por base o mesmo parâmetro, exatamente para permitir o desenvolvimento do processo. Não se consegue jogar um esporte coletivo sem a colaboração dos demais participantes. Ainda que alguns não aceitem o princípio da cooperação no âmbito de uma relação adversária como é o processo judicial[7], nos parece inegável que o contraditório e a ampla defesa (e, consequentemente, o próprio devido processo legal) estarão comprometidos caso as partes não observem esse dever de fundamentação.
Em se tratando de agravo interno esse tema ganha especial relevância, sobretudo quando se lê o artigo 1.021, parágrafo 3º, do Novo CPC, que diz ser “vedado ao relator limitar-se à reprodução dos fundamentos da decisão agravada para julgar improcedente o agravo interno”.
Ocorre que, não raro[8], a parte sucumbente na decisão monocrática interpõe agravo interno tão somente repetindo os argumentos já aduzidos no recurso monocraticamente indeferido.
As hipóteses de cabimento de decisão monocrática em julgamento de apelação são bastante claras (artigo 1.011, I, c/c artigo 932, III a V)[9], e, principalmente, justificadas, pois são situações em que ou o recurso (ou a decisão judicial) é contrário a entendimento já pacificado no próprio tribunal ou nos tribunais superiores (incisos IV e V), ou o recurso é inadmissível, prejudicado ou não impugnou especificamente os fundamentos da decisão recorrida (inciso III).
A razão desse inciso III, parte final, é lógica: os argumentos do recorrente já foram enfrentados e afastados pelo juiz de 1º grau. Se o foram equivocadamente, isso deve ser explorado pelo recorrente, que não pode simplesmente repetir a argumentação esposada. E isso não apenas por força da vedação legal do referido dispositivo, mas também em virtude do dever de fundamentação, ônus atribuído a todas as partes em razão do princípio da cooperação ou – em não se aceitando tal interpretação deste princípio – por força do contraditório e ampla defesa.
A regra é reiterada pelo artigo 1.021, parágrafo 1º, agora especificamente em relação ao agravo interno, dispondo que “na petição de agravo interno, o recorrente impugnará especificadamente os fundamentos da decisão agravada”.
Ora, a repetição de argumentos viola o princípio da cooperação porque alonga o desfecho do processo sem lastro em justa causa. Na mesma toada, afronta o princípio da boa-fé e o dever de lealdade que ele implica (artigo 5º do Novo CPC)[10]. Além disso, não se pode desprestigiar o juiz de 1º grau tratando-o como uma mera instância formal para se chegar ao 2º grau. Até porque, se assim for, que se extinga a 1ª instância e reduzamos a duração do processo.
Assim, se o recorrente não pode repetir perante a 2ª instância os argumentos já analisados pela 1ª, com mais razão ainda não pode fazê-lo em sede de agravo interno, já que: (i) se estará diante de uma decisão monocrática, justificável em casos limítrofes; (ii) o Novo CPC expressamente o veda; e (iii) o recurso será dirigido ao mesmo prolator da decisão atacada. Da mesma forma, não pode o juízo monocrático em 2º grau ser visto como mero requisito formal de acesso ao colegiado, especialmente quando se têm em mente as hipóteses em que tal espécie de julgamento é permitida.
Tudo isso para dizer que, a despeito do supracitado artigo 1.021, parágrafo 3º, entendemos que o relator poderá simplesmente repetir os argumentos já alinhavados na decisão monocrática – bastando que esclareça que assim o faz exatamente porque o recorrente nada acrescentou – caso o agravante insista em tão somente reproduzir os seus[11]. Embora a posição de parte da doutrina abalizada possa parecer, num primeiro momento, divergente, entendemos que, após uma análise mais detida, há concordância:“ainda que o próprio agravo interno se limite a repetir os termos do recurso original, a decisão do agravo interno deve ter a sua fundamentação própria e específica, nem que seja no sentido de expor que o agravante não trouxe qualquer novidade ou esclarecimento na interpretação que foi feita quando do julgamento do recurso original (…)”[12] (realce nosso).
Reiteramos essa conclusão, porque, embora talvez seja possível invocar o art. 932, III, parte final para não se conhecer do agravo interno, poder-se-á defender, por outro lado, que esse dispositivo se aplica somente a decisões monocráticas, não dizendo respeito, portanto, ao agravo interno, que exige julgamento pelo colegiado, bem como que há regra contida no já mencionado art. 1.021, § 3º, direcionada especificamente essa recurso.
Que fique claro: não se está dispensando o magistrado do seu dever apenas porque o recorrente não se desincumbiu do seu ônus, numa espécie de exceção do contrato não cumprido processual, mas porque sem essa fundamentação legítima, o próprio devido processo legal estará comprometido, e o direito de petição (artigo 5º, XXXV, da Constituição[13]) estará sendo utilizado de forma abusiva.
É dizer: “se, de outro lado, o julgado aplicar, acertadamente [o artigo 932, III a V], para o caso concreto o entendimento: (…); caberá ao vencido conformar-se com a derrotar e resignar-se com o resultado do julgamento, sem interpor o agravo interno. É que, frise-se, se os poderes do relator, remodelados no artigo 932, forem (bem) exercidos no contexto de sua remodelação de julgamento de mérito, o agravo interno não se prestará mais para a demonstração do simples inconformismo do vencido com a anterior conclusão do relator. A recorribilidade nestes termos consistirá abuso de direito”[14].
Tanto assim, que o legislador entendeu por bem estipular uma multa aplicável ao agravante que interpuser recurso manifestamente inadmissível ou improcedente, no montante de 1% a 5% do valor atualizado da causa, se assim entender o colegiado de forma unânime e fundamentada (artigo 1.021, parágrafo 4º)[15]. E a interposição de qualquer outro recurso, salvo em se tratando da Fazenda Pública ou de beneficiário da justiça gratuita, ficará subordinada ao depósito prévio do valor da multa (artigo 1.021, parágrafo 5º)[16].
Por isso, nos parece que a simples repetição de argumentos pelo agravante é fundamento suficiente para o julgamento de improcedência do agravo e aplicação da referida multa. E também por tais razões, acrescidas do fato de que o artigo 1.021, parágrafo 1º prevê um dever expresso ao agravante, entendemos que inaplicável, nesse caso, o artigo 932, parágrafo único[17]. Afinal, se há uma determinação clara para o agravante, decorrente não apenas de uma regra, mas de princípios norteadores do processo civil, não se pode alegar violadora do direito de defesa a inadmissão de plano do recurso que não observou tal determinação sem que se tenha dado ao faltoso a oportunidade de sanar o vício[18]. Da mesma forma, igualmente dispensável a observância do artigo 1.021, parágrafo 2º, que determina a intimação do agravado para manifestação em 15 (quinze) dias. Caberá ao relator, portanto, apenas submeter o recurso ao colegiado para fins de aplicação da multa.
Nesse sentido, embora analisando o dever de fundamentação ao caso específico da repetição de ementas, afirma Marcelo Pacheco Machado: “agora, a questão é: e a parte (e seu patrono) pode continuar a litigar preguiçosamente, com base no “ementismo”? Muda para o juiz, mas não muda nada para as partes e advogados? (…) Entendemos que não! O surgimento deste dever específico de motivação para o juiz pressupõe a maturidade no contraditório para parte, imposta pela noção de processo cooperativo (Novo CPC, artigo 6º)”[19].
Como bem disse o professor Alexandre Câmara, a regra do artigo 489 do Novo CPC não afetará a vida daqueles magistrados que sabem fundamentar[20]. Acrescentamos que esse raciocínio também se aplica aos advogados que já incorporaram a importância de uma fundamentação constitucionalmente adequada.
[1] Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
[2] Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
(…)
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
[3] Art. 7o. É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.
[4] Art. 9o.Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
[5] Art. 489. (…)
§ 1o.Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
[6] Disponível em: http://jota.info/novo-cpc-precedentes-e-contraditorio (acessado em 31.1.2016).
[7] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-dez-23/cooperacao-processual-cpc-incompativel-constituicao (acessado em 31.1.2016).
[8] Dos 421 agravos internos julgados pelo nosso gabinete em 2015 (desconsiderados os prejudicados, os não conhecidos e os recebidos como embargos de declaração), apenas 7 foram integralmente providos (reconsiderados) e outros 7 providos parcialmente, em sua maioria em relação a aspectos processuais como, por exemplo, extensão de prazo para cumprimento da obrigação fixada (ou mantida) pela decisão monocrática. Dos 407 restantes – todos indeferidos –, 117 atacaram os fundamentos (mérito) da decisão monocrática, ainda que parcialmente; 86 atacaram questões processuais, como a aplicabilidade do artigo 557 do CPC/73; e 204 – mais da metade –, nada acrescentaram, limitando-se a tão somente reproduzir a argumentação da apelação, simplesmente desconsiderando a decisão monocrática.
[9] Art. 1.011. Recebido o recurso de apelação no tribunal e distribuído imediatamente, o relator:
I – decidi-lo-á monocraticamente apenas nas hipóteses do art. 932, incisos III a V;
Art. 932. Incumbe ao relator:
(…)
III – não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida;
IV – negar provimento a recurso que for contrário a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
V – depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; (…).
[10] Art. 5o. Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
[11] Dúvida poderia surgir quanto à necessidade de esgotamento da instância ordinária para interposição dos recursos extraordinários. Entendemos que, nesse caso, poderá o agravante limitar-se à repetição dos argumentos, desde que explique que o faz com aquele claro intuito, sendo lícito ao relator também repetir a sua fundamentação, apenas esclarecendo que o adendo do recorrente nada acrescentou ao recurso do ponto de vista meritório.
[12] NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade.Comentários ao Código de Processo Civil – Novo CPC – Lei 13.105/2015, São Paulo: RT, 2015, p. 2115.
[13] Art. 5o. (…)
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
[14] CAMARGO, Luiz Henrique Volpe.Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil (coord. Teresa Arruda A. Wambier et. al.), São Paulo: RT, 2015, p. 2263.
[15] Art. 1.021. (…)
§ 4º. Quando o agravo interno for declarado manifestamente inadmissível ou improcedente em votação unânime, o órgão colegiado, em decisão fundamentada, condenará o agravante a pagar ao agravado multa fixada entre um e cinco por cento do valor atualizado da causa.
[16] Art. 1.021. (…)
§ 5º. A interposição de qualquer outro recurso está condicionada ao depósito prévio do valor da multa prevista no § 4º, à exceção da Fazenda Pública e do beneficiário de gratuidade da justiça, que farão o pagamento ao final.
[17] Art. 932. (…)
Parágrafo único. Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível.
[18] Até porque, do contrário, estar-se-ia abrindo a possibilidade de fraudes, já que o agravante poderia interpor recurso sem nova (e específica) fundamentação apenas para aproveitar o prazo complementar que seria concedido pelo magistrado para que sanasse o vício, em prejuízo à parte contrária que teria apenas o prazo equivalente ao recursal para apresentar sua resposta, que, como se sabe, não é recurso para atrair a incidência do artigo 932, parágrafo único.
[19] Disponível em: http://jota.info/novo-cpc-precedentes-e-contraditorio (acessado em 31.1.2016).
[20] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mar-12/advogado-critica-fundamentacao-cpc-magistrado-defende (acessado em 31.1.2016).
Autor: Pedro Machado Segall é bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduando em Direito do Consumidor pela Escola Paulista da Magistratura e escrevente de gabinete em 2º grau no Tribunal de Justiça de São Paulo.