Autor: Alexandre Freitas Câmara (*)
Foi recentemente aprovada a Lei 13.256, que reforma o novo Código de Processo Civil (CPC) antes mesmo de entrar em vigor. Até aí, nada demais. Também o CPC/73 foi reformado ainda durante sua vacância. O problema não está em se reformar o texto legal. Afinal, ninguém poderia acreditar que o texto do novo CPC seria imutável.
Entre as alterações promovidas no novo CPC, uma chama a atenção, por ter sido apresentada como a razão da reforma: a volta do juízo de admissibilidade do Recurso Especial (REsp) e do Recurso Extraordinário (RE) ao tribunal de origem. Não é dessa modificação, porém, que se irá tratar. O objeto deste artigo é uma alteração “colateral”: a recorribilidade da decisão que declara inadmissível o recurso excepcional.
Pelo novo texto, cabe ao tribunal de origem examinar a admissibilidade do recurso. É o que resulta da nova redação do artigo 1.030, por força do qual o recurso excepcional será submetido ao presidente ou vice do tribunal recorrido, que deverá, conforme o caso, negar-lhe seguimento; encaminhá-lo de volta ao prolator da decisão recorrida para juízo de retratação; sobrestar o recurso para aguardar a prolação de acórdão paradigma quando se trate de recursos repetitivos; selecionar o recurso como representativo da controvérsia; ou realizar o juízo de admissibilidade e, caso positivo, remeter o recurso ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça.
Segundo o novo texto, caso se verifique que a decisão recorrida foi proferida em conformidade com um padrão decisório (como seria uma decisão prolatada no julgamento de REsp ou RE repetitivo), deverá o recurso ser declarado inadmissível (artigo 1.030, I, a e b). E desta decisão caberá apenasagravo interno (AInt) para o Plenário ou Órgão Especial do próprio tribunal (artigo 1.030, § 2°). Pode parecer que estaria bloqueado o acesso ao STF ou STJ. Em outros termos, havendo padrão decisório, e tendo a decisão sido proferida em conformidade com ele, não se poderia levar a mesma questão ao tribunal superior que o estabeleceu.
Mas se assim é — e se, portanto, aqueles tribunais de superposição só examinarão cada uma das questões que lhe são submetidas uma única vez—, ter-se-á um sistema em que decisões vinculantes não são passíveis de superação (afinal, só o tribunal de onde se origina o precedente tem competência para, revendo a tese, superar o padrão decisório anteriormente estabelecido). Se só o tribunal que proferiu a decisão que serve como precedente pode superá-lo, e não se lhe pode mais levar a mesma questão, então não haveria meios para promover a superação. Haveria umengessamento do direito inaceitável. Mas por ser a evolução do Direito um fenômeno que lhe é conatural, então é preciso verificar como se daria a superação do padrão decisório vinculante.
Uma primeira solução seria afirmar que, estabelecido um padrão decisório, ele só poderia ser alterado por via legislativa. Em outros termos, seria preciso que se editasse novo ato normativo, revogador daquele que serviu de base para o padrão decisório, para que se pudesse ter uma nova norma jurídica, distinta da construída quando da formação do precedente. Esta solução, porém, não é (não pode ser) adequada. É que, assim, se estaria a atribuir aos padrões decisórios originários do STF e do STJ uma força que nem textos constitucionais têm: imunidade a mudanças interpretativas.
É preciso encontrar elementos que permitam construir meios para viabilizar o acesso aos tribunais de superposição e provocar o reexame dos padrões decisórios, a fim de permitir sua superação e a consequente evolução da interpretação. A não ser assim, seria preciso reconhecer que o direito brasileiro construiu um mecanismo de fechamento argumentativo incompatível com a Democracia.[1]
Será que o fato de já ter o STF ou o STJ se pronunciado sobre a matéria deve ser capaz de impedir que a mesma questão volte a ser suscitada, de modo a fazer com que a corte nunca mais se pronuncie? Imagine-se em que mundo se viveria hoje se a Suprema Corte dos EUA, por já se ter pronunciado emPlessy v. Ferguson,[2] não pudesse ter superado seu precedente: jamais teria sido proferida a decisão de Brown v. Board of Education of Topeka.[3]
O texto reformado, é certo, estabelece que contra a decisão que declara inadmissível o REsp ou RE por estar a decisão recorrida em conformidade com padrão decisório anteriormente fixado é cabível apenas AInt (artigo 1.036, § 3°). Não se pode, porém, interpretá-lo literal.
Em primeiro lugar, é o próprio novo CPC que estabelece, de forma expressa, que são admissíveis embargos de declaração (EDcl) contra qualquer decisão (artigo 1.022). Se os EDcl podem ser opostos contra qualquer decisão, então são cabíveis contra a que declara inadmissível o REsp ou RE. E tinha de ser assim, já que tal decisão pode conter algum dos vícios que através dos embargos são corrigidos. Tenha-se claro, então, que apesar do texto reformado, contra a decisão que declara inadmissível o recurso excepcional são cabíveis EDcl e AInt.
O agravo será apreciado pelo Pleno ou pelo Órgão Especial do tribunal a que esteja vinculado o presidente ou vice prolator da decisão recorrida. Inadmissível o AInt, estará preclusa a questão da inadmissibilidade do recurso excepcional. Provido o AInt, o recurso excepcional estará admitido e será encaminhado ao STJ ou ao STF, conforme o caso.
Fica o problema quando ao AInt se nega provimento. Neste caso, estar-se-á a dizer que a decisão contra a qual se interpôs o recurso estava, realmente, em conformidade com padrão decisório anteriormente estabelecido pelo STJ ou pelo STF e, pois, foi correto o pronunciamento que declarou inadmissível o recurso interposto. Pois é neste caso que parece fechado o acesso ao tribunal de superposição e, portanto, à superação do padrão decisório.
Ocorre que este julgamento é um acórdão que, proferido em última instância, pode ser impugnado por REsp ou por RE. Entendimento diverso contraria o disposto nos artigos 102, III e 105, III, CF.
Pois aqui está a solução: interposto REsp ou RE contra decisão conforme com padrão decisório ao fundamento de existir motivo para sua superação, deve-se admitir o recurso. E no caso de não ser o recurso admitido, o que se terá a fazer será percorrer caminho mais longo para chegar ao tribunal de superposição: interpor o AInt e submeter a questão ao Pleno ou ao Órgão Especial do tribunal de origem. Caso este não proveja o agravo, interpor novo recurso (REsp ou RE), para fazer com que a matéria chegue ao STJ ou ao STF.
Surge aqui questão relevante: qual seria o fundamento da interposição do novo REsp ou RE? Qual o dispositivo constitucional (no caso do RE) ou infraconstitucional (no caso do REsp) contrariado pela decisão que declara inadmissível recurso excepcional por ter sido interposto contra decisão proferida em conformidade com padrão decisório?
Tudo que aqui se sustenta só faz sentido quando o recurso tiver sido interposto com a expressa afirmação da existência de fundamento para superar padrão decisório. Recursos que se limitam a reproduzir argumentos já rejeitados devem mesmo ser inadmitidos, e os processos em que interpostos não devem subir ao STJ ou ao STF (que já rejeitou expressamente os fundamentos neles deduzidos). O que se impõe é a existência de mecanismos para superação de precedentes, a fim de evitar o engessamento das interpretações, e não eternizar a nefasta prática de permitir que tudo vá aos tribunais de superposição, como se fossem instâncias ordinárias.
Volte-se ao ponto: qual teria sido a norma constitucional ou infraconstitucional violada, capaz de permitir a interposição de RE ou REsp contra acórdão do Pleno ou do Órgão Especial que nega provimento ao AInt interposto contra decisão que deixou de admitir recurso excepcional por estar a decisão recorrida em conformidade com padrão decisório?
Examine-se primeiro o caso do REsp. O novo CPC cria um microssistema de solução de casos repetitivos,[4] formado pelo Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) e pelos recursos repetitivos, cujas disposições devem ser interpretadas em conjunto. Neste sentido, o enunciado 345 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): “O incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento dos recursos extraordinários e especiais repetitivos formam um microssistema de solução de casos repetitivos, cujas normas de regência se complementam reciprocamente e devem ser interpretadas conjuntamente”. Existe, ainda, no novo CPC, um microssistema de formação de precedentes (enunciados 459 e 460 do FPPC). Resulta daí que as disposições do novo CPC acerca de cada integrante desses microssistemas são supletivamente aplicáveis aos demais.
O IRDR e o IAC integram, juntamente com os recursos repetitivos, o microssistema de formação dos precedentes. E o IRDR compõe, ao lado dos recursos repetitivos, o microssistema do julgamento de casos repetitivos. É preciso, então, examinar a comunicação entre as disposições relativas àqueles incidentes e os recursos excepcionais.
Pois o novo CPC estabelece que os padrões decisórios fixados a partir do IRDR e do IAC são dotados de eficácia vinculante, “salvo revisão da tese”. É o que se vê no artigo 947, § 3° e no artigo 985, II, sendo o artigo 986 expresso em afirmar que a revisão da tese compete ao mesmo tribunal que produziu o padrão vinculante.
Tudo isso se aplica aos julgamentos de recursos repetitivos e aos padrões decisórios ali estabelecidos. Não pode haver dúvida de que só STF e STJ são competentes para rever as teses fixadas nos padrões decisórios estabelecidos em seus julgados, os quais só terão eficácia vinculante até que ocorra a revisão da tese. E se assim é, impõe-se reconhecer a existência de mecanismos que permitam o acesso àqueles tribunais para viabilizar tal revisão.[5]
Deste modo, o pronunciamento que declara inadmissível REsp ou RE por estar a decisão recorrida em conformidade com padrão decisório em caso no qual o recorrente tenha expressamente deduzido fundamentos destinados a suscitar a superação do precedente contraria o disposto nos artigos 947, parágrafo 3°, 985, II, e 986 do novo CPC, na sua aplicação supletiva aos recursos excepcionais. Neste caso, inadmitido o recurso originariamente interposto, e esgotadas as instâncias ordinárias, será cabível novo REsp (que, não sendo repetitivo, não se submete à regra que impede a subida de recursos que versem sobre matéria já apreciada pelo tribunal de superposição).
Agora é preciso identificar a norma constitucional violada nesse mesmo caso. Há, na hipótese, violação ao caput do artigo 102 da CF, por força do qual incumbe ao STF o papel de guardião da Constituição,[6] em razão do qual ao STF incumbe promover a evolução interpretativa da Constituição, evitando o engessamento do direito.
A não se entender assim, ter-se-á de considerar que o novo CPC reformado retira do STF seu papel de atribuidor de sentidos aos dispositivos constitucionais. E isto impediria o Supremo de contribuir para a evolução do direito. Basta pensar nos casos em que o STF modificou sua interpretação acerca de dispositivos constitucionais (por exemplo, a mudança de orientação acerca dos efeitos do julgamento do mandado de injunção). Pois não se pode considerar compatível com a Constituição uma interpretação do texto reformado do novo CPC que bloqueie o acesso ao STF pelo fato de já ter se manifestado uma vez sobre certa questão constitucional.
É o caso, então, de dar-se ao novo texto do novo CPC interpretação conforme a Constituição, para considerar que, no caso do RE, só pode haver vedação de acesso ao STF quando o recorrente não tiver expressamente suscitado ser caso de superação do padrão decisório, com a dedução de argumentos novos. E, quando se inadmitir o RE, será então cabível novo RE, por violação do artigo 102, caput, da CF. Este novo RE, evidentemente, não terá caráter repetitivo e, por isso, não se poderá inadmiti-lo pelos mesmos fundamentos do recurso anterior.
Tenha-se claro este ponto: o novo recurso, interposto contra o acórdão que julga o agravo, não se submete ao regime dos recursos repetitivos. É que nele se terá necessariamente suscitado questão nova, ainda não submetida ao tribunal de superposição. E se a questão é nova, inédita, não é repetitiva. Assim, no caso do RE, incidirá o artigo 1.030, V, a, do novo CPC reformado e, positivo o juízo de admissibilidade, o recurso deverá ser encaminhado ao STF para verificação da existência de repercussão geral do novo fundamento suscitado. De outro lado, no caso do REsp, este deverá ser — se positivo o juízo de admissibilidade — remetido ao STJ para exame do REsp, que não terá, como visto, caráter repetitivo.
Fica, assim, não obstante a reforma do novo CPC, assegurada a possibilidade de revisão das teses, impedindo-se engessamento interpretativo incompatível com um sistema de precedentes que se pretenda implantar em um ordenamento compatível com o Estado Democrático de Direito.
[1] “É bastante claro (ao menos na common law não há dúvidas) que os precedentes significam o princípio e não o fechamento da discussão trazida a juízo” (BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; SILVA, Diogo Bacha e. O novo CPC e a sistemática dos precedentes: para um viés crítico das reformas processuais. In: Direito, Estado e Sociedade, n. 46, 2015, pág. 52.
[2] 163 US 537 (1896).
[3] 347 US 483 (1954).
[4] Reconhecendo este microssistema, NUNES, Dierle. O IRDR do Novo CPC: este ‘estranho’ que merece ser compreendido. (leia aqui, acesso em 06/02/2016.
[5] Vale recordar a lição de Burton, falando sobre stare decisis e overruling(em tradução livre): “Ambos são vitais para o sistema jurídico. Stare decisis alimenta unidade, estabilidade e igualdade ao longo do tempo. Overruling habilita as cortes supremas a corrigir seus erros passados e a adaptar o direito às circunstâncias cambiantes. Sem uma teoria sólida do overruling, resulta um paradoxo: uma corte suprema deverá seguir seus precedentes mas, em qualquer caso, pode superá-los. Isto é, uma corte suprema deve seguir seus precedentes, só que não precisa. Este paradoxo habilita cortes supremas a pegar e escolher o direito que os vincula. Ele tolera um direito incoerente e não confiável, com julgamentos orientados para o resultado, e, pelo menos, na Suprema Corte dos EUA, jurisdição constitucional ilegítima” (BURTON, Steven J., The conflict between stare decisis and overruling in constitutional adjudication. In: Cardozo Law Review, vol. 35, pág. 1.688).
[6] O próprio STF, em publicação eletrônica denominada A Constituição e o Supremo, ao indicar decisões judiciais em que se interpretou o caput do art. 102 da Constituição da República, enumera alguns acórdãos em que a Corte se proclamou “guardiã da Constituição”.
Autor: Alexandre Freitas Câmara é desembargador do TJ-RJ. Professor da Escola da Magistratura do RJ (Emerj). Presidente do Instituto Carioca de Processo Civil (ICPC). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Internacional de Direito Processual. Doutorando em direito processual (PUCMINAS).