Autora: Carolina Filipini Ferreira (*)
Um dos elementos diferenciadores da qualificação de uma entidade privada sem fins lucrativos como organização social, dentro do universo das titulações previstas no sistema normativo brasileiro, é a discricionariedade administrativa conferida ao gestor público para concedê-la ou não concedê-la.
Desde a edição da Lei 9.637/1998, que dispõe sobre a qualificação de entidade como organizações sociais e a criação do Programa Nacional de Publicização, no âmbito da Administração Pública federal, a exigência contida no inciso II do artigo 2º, no sentido de haver a aprovação da qualificação, quanto à conveniência e oportunidade, por ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente da interessada em se qualificar e do então ministro de Estado da Administração Federal e reforma do Estado, foi objeto de debate doutrinário e jurisprudencial, em razão do potencial de infringência ao princípio da igualdade e da restrição ao controle da habilitação de entidades privadas sem fins lucrativos que poderiam absorver a gestão pública.
Apesar de tal debate ter sido enfrentado no julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade 1.923 pelo Supremo Tribunal Federal, que conferiu interpretação conforme a Constituição Federal aos dispositivos da Lei 9.637/98, inclusive o referente à discricionariedade administrativa para a aprovação da qualificação, o recente Decreto Federal 9.190/2017, que regulamenta o Programa Nacional de Publicização, pelas diretrizes e critérios que institui para a qualificação de organizações sociais, acaba por, na verdade, vincular o administrador, com o desaparecimento da discricionariedade administrativa no caso concreto.
É importante relembrar que a interpretação conforme a Constituição Federal, quanto ao ato de aprovação pelo gestor público da qualificação, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, decorreu do prevalecimento, uma vez acompanhado pela maioria com divergência dos votos do ministro relator Ayres Britto e do ministro Marco Aurélio, do voto condutor proferido pelo ministro relator Luiz Fux, que sustentou a natureza de credenciamento da qualificação. Como credenciamento, não haveria competitividade entre as interessadas, de modo a afastar a obrigatoriedade de processo de seleção. A qualificação poderia ser alcançada por todas desde que preenchidos os requisitos, sendo a aprovação pelo Poder Público um dos requisitos, cuja observância se exige por lei[1].
Neste sentido, o ministro Luiz Fux entendeu que a disposição legal que confere a liberdade administrativa de apreciação do deferimento da qualificação não seria, em si, contrária ao texto constitucional. A discricionariedade seria praticada em consonância com os princípios administrativos e, apenas se exercida de forma violadora aos princípios, haveria afronta à Carta Magna, hipótese em que o ato de qualificação seria submetido ao controle de legalidade pela autotutela da Administração Pública ou pelo Poder Judiciário. Assim, o ministro Luiz Fux concluiu que a discricionariedade contida no inciso II do artigo 2º da Lei 9.637/98 está limitada à observância das diretrizes, que seriam previstas em ato regulamentador.
O ato regulamentador sobreveio e os contornos legais da discricionariedade, ao que parecem, não disciplinam o exercício da conveniência e da oportunidade, mas levam ao seu desaparecimento no caso concreto, com a vinculação do administrador público em qualificar a entidade que se adeque às condições legais e administrativas apontadas em estudo técnico prévio à opção do modelo das organizações sociais e no edital do chamamento público para a subsequente celebração do contrato de gestão[2].
De acordo com a norma regulamentadora, a qualificação como organização social ocorrerá por meio de seleção pública, cujo resultado será a escolha de única entidade a qual estará vinculada à celebração de contrato de gestão (artigo 5º, decreto).
A seleção se iniciará com a divulgação de chamamento público pelo órgão supervisor ou pela entidade supervisora da atividade, que definirá, entre outros elementos, os requisitos a serem atendidos pelas entidades privadas interessadas (artigo 10, I, decreto), a documentação comprobatória (artigo 10, II, decreto), a relação dos órgãos e das entidades públicas e a relação mínima das entidades da comunidade beneficiária dos serviços que deverão estar representados no conselho de administração como membros natos (artigo 10, III, decreto) e os critérios específicos de avaliação (artigo 10, VIII, decreto).
Tudo isto acompanhado do atendimento aos requisitos legais previstos na seção I do capítulo I da Lei 9.637/98 (artigo 4º, decreto), que definem as condições gerais para a entidade ser considerada apta a se qualificar, consistentes em sua natureza jurídica afastada de fins econômicos e voltada às ações voluntárias de interesse coletivo, bem como as condições específicas quanto ao seu modo de constituição e funcionamento, que garantem a governança dentro da entidade interessada, além de não se enquadrar numas das situações disciplinadas no artigo 9º do Decreto 9.190/2017.
Em conjunto com a comprovação dos requisitos necessários à qualificação, a entidade deverá apresentar proposta de trabalho que tenha aderência aos pressupostos de fato e de direito expostos na fundamentação prévia do administrador público em optar pelo modelo do contrato de gestão, que estão dispostos no parágrafo 1º do artigo 7º do Decreto 9.190/17, sempre com a demonstração da economicidade que as ações por ela propostas viabilizarão a atividade que será gerenciada.
Ao analisar brevemente os mencionados requisitos, é possível denotar a introdução no âmbito federal de processo de seleção competitivo para a qualificação de organização social, o que afasta a liberdade administrativa em aprová-la, uma vez que a decisão do administrador estará vinculada aos critérios legais, regulamentares e administrativos constantes na fundamentação prévia ao edital e no próprio instrumento convocatório. E esta vinculação permanecerá mesmo ainda vigente no texto legal a necessidade de manifestação de conveniência ou oportunidade de ministro ou titular de órgão supervisor ou regular da área a ser fomentada pelo contrato de gestão e do ministro do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão e mesmo com a previsão contida no inciso IV do parágrafo 3º do artigo 12 do Decreto 9.190/2017, de que nos casos de haver mais de uma entidade privada participante habilitada poderá ocorrer a escolha justificada daquela que melhor atendeu aos critérios estabelecidos. Isto porque tais dispositivos devem ser ajustados ao espírito do regulamento para garantir a aplicação harmônica da norma regulamentadora.
A discricionariedade é a liberdade no modo de agir administrativo, se assim autorizar a lei e o caso concreto[3]. A qualificação de uma entidade como organização social nada mais é que um ato administrativo e os atos administrativos são vinculados ao cumprimento da lei, mas não apenas a regra jurídica e sim ao direito, de modo que a atuação administrativa deve estar em consonância com os princípios jurídicos, em atenção à juridicidade. Por mais que a discricionariedade signifique a opção de escolha pelo administrador, a margem de liberdade apresentará um contorno jurídico, na medida em que, embora assegurada pela lei, ela encontrará limites em outros valores protegidos e estabelecidos no próprio texto legal ou no ordenamento jurídico, a ponto de não existir.
A discricionariedade administrativa apresenta um perfil segundo o qual a discrição não existirá quando contrária aos princípios administrativos e aos direitos subjetivos fundamentais dos administrados, além de não poder ocasionar descompassos entre os elementos do ato que afetem a adequação da conduta administrativa, ocasiões em que a margem de liberdade da lei desaparecerá com a redução da conduta administrativa a única decisão juridicamente aceitável[4]. É justamente o que ocorre em relação à decisão de aprovar ou não a qualificação de uma entidade como organização social, o que se confirma pelo regulamento introduzido pelo Decreto 9.190/2017, que vincula o administrador a deferir a qualificação àquela participante que, por sua documentação, estiver compatível com os motivos justificadores da opção pelo modelo do contrato de gestão. A compatibilidade significa que a entidade será capaz de cumprir as metas e os resultados com absorção do gerenciamento público, e está em cumprimento com os requisitos legais, regulamentares e administrativos.
É esta visão que deve ser considerada na qualificação de uma entidade privada, sem fins lucrativos, como organização social, uma vez que afasta a necessidade dela conquistar a atenção do gestor público, por critérios convenientes e oportunos ao interesse público. Conforme prevê o regulamento, o interesse público estará devidamente definido na decisão de publicização, que antecederá o processo de seleção para a qualificação, nos termos do inciso I do artigo 6º e do parágrafo 1º do artigo 7º, ambos do Decreto 9.190/2017.
O olhar pela vinculação na qualificação de organização social assegura ainda a governança numa entidade, uma vez que ela estará submetida ao cumprimento de como ela deve ser e agir, permitindo a conformidade de sua atuação, além de incentivar a proatividade da sociedade civil, que é o objetivo do fomento público por via do contrato de gestão. Com os critérios legais, regulamentares e administrativos delineados, a entidade terá uma escolha transparente e responsável de como deverá se comportar para alcançar a qualificação de organização social, o que conferirá autonomia a própria vontade da sociedade civil em buscar o fomento público para trazer otimização aos serviços sociais, no sentido que ela saberá o que fazer e escolhe assim atuar, de modo a ampliar a sua esfera jurídica.
Portanto, sem prejuízo de outros entendimentos e na análise breve do regulamento não com o objetivo de esgotar a matéria, com a regulação do Programa Nacional de Publicização pelo Decreto 9.190/2017, espera-se que a atuação da Administração Pública passe a ser vinculada, com o desaparecimento da discricionariedade administrativa no processo de qualificação de uma entidade como organização social – lembrando que ela existe e deve existir na opção do administrador em adotar o contrato de gestão para satisfazer o interesse público – o que garantirá a segurança jurídica ao modelo. A vinculação pode permitir a eficácia da qualificação como instância de controle e regulação visando ao desenvolvimento das políticas públicas e do terceiro setor, na área das entidades que optem pela absorção da gestão pública, ao não deixar margem para a subjetividade, conduzindo os envolvidos numa atuação processualizada e planejada.
Autora: Carolina Filipini Ferreira é advogada e especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP.