Novo ISSQN vai acirrar a briga entre municípios

Autor:  Thiago Sarraf (*)

 

No dia 1º de junho foi publicada a Lei Complementar 157/2016 — após a derrubada do veto do Executivo pelo Congresso Nacional — introduzindo diversas alterações na Lei Complementar 116/2003 (matriz do ISSQN) quanto à legitimidade ativa para a exigência do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), muitas delas atendendo a demandas das prefeituras municipais.

A par dos municípios figurarem como destinatários dos recursos com a arrecadação do ISSQN, certo é que a Constituição Federal prevê a necessidade de lei complementar (artigo 156, inciso III e § 3º) para a definição de suas alíquotas mínimas e máximas, a exclusão das exportações de seu espectro de incidência e, ainda, a regulação quanto às formas e condições dos benefícios fiscais concedidos pelas Prefeituras.

As principais alterações promovidas pela Lei Complementar 157/2016 são em relação aos serviços de (i) planos e convênios de saúde em geral (incluindo assistência médico-veterinária), (ii) agenciamento, corretagem ou intermediação de contratos de arrendamento mercantil (leasing), de franquia (franchising) e de faturização (factoring), administração de fundos, de consórcio, de cartão de crédito ou débito e congêneres, de carteira de clientes, de cheques pré-datados e congêneres, que agora deverão ser cobrados pelo município onde estabelecido o tomador dos serviços.

Tal alteração também foi implementada para os casos onde o município de estabelecimento do prestador de serviços (em regra, o sujeito legitimado a exigir o correlato imposto) descumprir o disposto no caput ou § 1º do artigo 8º-A da Lei Complementar 116/2003, ou seja, nos casos em que os serviços sejam tributados com alíquota efetiva inferior à mínima estipulada (2%), aplicando-se, portanto, em casos de supressão parcial da base de cálculo mediante o desconto de valores que deveriam integra-la ou ainda pela concessão de créditos presumidos (que será objeto de considerações posteriormente).

Neste sentido, cumpre delinear que, de acordo com a leitura do artigo 3º da LC 116/2003, o serviço em regra “considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador”, estando suas exceções taxativamente previstas nos (outrora) vinte e dois incisos que integram o aludido dispositivo (“exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local:”), sendo certo que se considera como estabelecimento prestador o local no qual se encontram “todos os bens (máquinas, equipamentos, mobiliário, veículos etc.) e pessoas suficientes para possibilitar a prestação dos serviços” ,

A questão da sujeição ativa para a exigência do imposto sempre foi objeto de controvérsias. É de se dizer que ainda nos dias atuais há quem interprete (administrativa e judicialmente, em primeira e inclusive segunda instância) pela exigibilidade do imposto no local onde ocorrida a prestação dos serviços — compreendendo-a como ocorrida no Município onde estabelecido o tomador — mesmo naqueles casos não listados dentre as exceções dos incisos do artigo 3º da LC 116/2003, nada obstante já tenha a matéria sido resolvida de forma definitiva pelo Superior Tribunal de Justiça nos Recursos Especiais 1.117.121/SP e 1.060.210/SC (submetidos ao regime do 543-C do antigo Código de Processo Civil).

Assim, o primeiro aspecto a se apontar LC 157/2016 é a tendência de disseminação da dificuldade na aplicação da lei e jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, alterando expressamente a competência ativa para a exigência do imposto sobre os serviços de arrendamento mercantil (porém sem atacar as premissas consignadas no REsp 1.060.210/SC que são aplicáveis a outros tipos de serviço, em nosso sentir), com a inclusão dos incisos XXIII, XXIV e XXV ao artigo 3º da LC 116/2003, ampliando as exceções à regra do caput em relação aos serviços já elencados acima, atribuindo nestes casos a legitimidade do Município onde estabelecido o tomador.

Em relação a tais serviços, o objetivo do legislador foi pulverizar a arrecadação do ISSQN entre os Municípios, vale dizer, ao deslocar a competência ativa de grandes polos empresariais onde os prestadores geralmente estão situados para o local de estabelecimento/residência dos tomadores (nem sempre situados nos grandes centros), pretendendo impor divisão mais igualitária quanto possível das referidas receitas.

Lado outro, ainda a alteração legislativa nos pareça harmônica com o sistema jurídico-tributário, haja vista que sob o aspecto da prestação de serviços tanto o prestador (capacidade de prestar serviços) quanto o tomador (capacidade de pagar pelos serviços) externem sinais de riqueza, há a preocupação no sentido do aumento dos custos envolvidos, quase sempre repassados ao consumidor (tomador).

Isto porque é notório que haverá maior complexidade na apuração do imposto na medida em os prestadores destes serviços (leasing, planos de saúde, etc.) deverão observar as regras do município de cada um dos tomadores de serviço para a correta aplicação da lei, sendo certo que o Brasil é composto por mais de 5,5 mil municípios que detêm a capacidade de dispor sobre o ISSQN dentro dos limites da LC 116/2003 (e posteriores alterações), inclusive em relação à alíquota (variável entre dois e cinco por cento).

Aliás, este foi o motivo precípuo — ao menos dentre as razões explícitas — do veto presidencial (derrubado pelo Congresso) em relação a tais alterações, que considerou que os “dispositivos comportariam uma potencial perda de eficiência e de arrecadação tributária”.

Inobstante, dentro do aspecto legal-constitucional é outro o dispositivo que certamente gerará distorções e acarretará maior insegurança jurídica e, portanto, majoração no número de litígios. Sob o pretexto de combater a “guerra fiscal” entre os municípios, foram incluídas algumas disposições legais à LC 116/2003, cumprindo destacar o § 4º do artigo 3º:

§ 4º Na hipótese de descumprimento do disposto no caput ou no § 1º, ambos do art. 8º-A desta Lei Complementar, o imposto será devido no local do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado.

O artigo 8º-A e seu parágrafo primeiro, incluídos pela LC 157/2006, a seu turno, dispõe:

Art. 8º-A. A alíquota mínima do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza é de 2% (dois por cento).

§ 1º O imposto não será objeto de concessão de isenções, incentivos ou benefícios tributários ou financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido ou outorgado, ou sob qualquer outra forma que resulte, direta ou indiretamente, em carga tributária menor que a decorrente da aplicação da alíquota mínima estabelecida no caput, exceto para os serviços a que se referem os subitens 7.02, 7.05 e 16.01 da lista anexa a esta Lei Complementar.

Vejamos que a interpretação conjunta destes dispositivos, aliados ao caput do artigo 3º, leva à conclusão que o ISSQN é devido, em regra, no local onde estabelecido o prestador de serviços, com exceção aos 25 incisos do mesmo artigo 3º e, ainda, se o município em questão não tributar os serviços a uma alíquota efetiva inferior a 2%.

Ocorre que o § 4º do artigo 3º não constitui somente mais uma exceção à regra ao caput do mesmo dispositivo legal. Sua eficácia traz consigo um efeito bem mais amplo e indesejado, que é pretensamente legitimar o município onde estabelecido o tomador dos serviços a exigir o ISSQN quando entender — por sua exclusiva interpretação — que a legislação do município de estabelecimento do prestador afronte o caput ou no § 1º, ambos do artigo 8º-A (instituição de alíquota efetiva mínima inferior a dois por cento, sendo assim considerada nula pela redação do § 2º do artigo 8º-A), vale dizer, sem a necessidade de qualquer outra providência, como o questionamento judicial da legislação supostamente ofensiva aos termos da LC 116/2003 (em sua nova redação).

Com o devido acatamento às autoridades municipais, é de se esperar um aumento nos casos — já corriqueiros na antiga redação da LC 116/2003 — de bitributação, impondo aos contribuintes o pagamento do ISSQN tanto no Município onde estabelecido quanto no local onde situado o tomador, ainda que o § 3º do artigo 8º-A determine a restituição do ISSQN “calculado sob a égide da lei nula”. A tendência, pelo que costumeiramente se verifica nos conflitos de sujeição ativa de ISSQN, é pela exigência do imposto pelos dois municípios e, também, pela negativa de restituição pelo município que supostamente o tenha calculado com fulcro em lei nula.

Da mesma forma, é atribuída ao contribuinte a análise prévia sobre a nulidade da legislação onde se encontra estabelecido à luz do caput e § 1º do artigo 8º-A da LC 116/2003, antes mesmo de ser declarada nula pelo Poder Judiciário, sob pena de ser tributado também no local onde estabelecido o tomador dos serviços — e ainda não ter garantida a restituição do que foi pago no município onde estabelecido (na qualidade de prestador de serviços).

Isto porque o ISSQN é tributo sujeito ao lançamento por homologação, vale dizer, “cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa” (Código Tributário Nacional, artigo 150).

Portanto, sem qualquer prévio exame sobre a ilegalidade/nulidade da legislação do local onde estabelecido o prestador de serviços, impõe-se ao contribuinte e posteriormente ao fisco (em revisão do lançamento, nos termos do artigo 149 do CTN) a análise sobre a adequação da norma à LC 116/2003, o que certamente conferirá indesejada margem de subjetividade sobre a fixação da sujeição ativa da obrigação tributária para exigência do ISSQN e, por conseguinte, contribuirá para um ambiente de maior insegurança jurídica.

Tal situação se assemelha, guardadas as devidas proporções, com a “guerra fiscal” no âmbito do ICMS, no qual os Estados glosam os créditos dos contribuintes sobre as aquisições de mercadorias com benefícios fiscais concedidos (à margem do Confaz) pelos Estados de origem aos estabelecimentos remetentes, geralmente sob a forma de créditos presumidos. A glosa dos respectivos créditos é pretensamente sustentada pelo artigo 8º da Lei Complementar 24/1975, que dispõe:

Art. 8º – A inobservância dos dispositivos desta Lei acarretará, cumulativamente:

I – a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria;

Il – a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente.

Ou seja: impõe-se ao contribuinte destinatário o dever de não aproveitar o crédito sobre operações de aquisição de mercadorias de contribuinte situado em outro Estado que conceda o benefício fiscal em favor da empresa remetente ali situada, em seu próprio prejuízo, na medida em que terá menos créditos para compensação com o débito do imposto gerado nas vendas seguintes.

Sobre tal questão, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça por inúmeras vezes, no sentido da impossibilidade na glosa dos créditos, haja vista que o impasse federativo deve ser solucionado entre os próprios Estados, descabendo a responsabilização dos contribuintes pelos aludidos conflitos institucionais. Neste sentido:

“TRIBUTÁRIO. ICMS. OPERAÇÃO INTERESTADUAL. CONCESSÃO DE CRÉDITO PRESUMIDO AO FORNECEDOR NA ORIGEM. PRETENSÃO DO ESTADO DE DESTINO DE LIMITAR O CREDITAMENTO DO IMPOSTO AO VALOR EFETIVAMENTE PAGO NA ORIGEM. DESCONSIDERAÇÃO DO BENEFÍCIO FISCAL CONCEDIDO. IMPOSSIBILIDADE. 1. Hipótese em que a decisão agravada deu provimento ao apelo recursal no que respeita ao aproveitamento de créditos de impostos relativos à transferência interestadual de mercadorias cujos remetentes em outros Estados foram beneficiados por incentivos fiscais unilaterais. 2. O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência firme no sentido de que, nas operações interestaduais, não cabe ao estado de destino exigir do contribuinte a parte do ICMS que deixou de ser recolhido ao estado de origem em virtude da fruição de benefício fiscal não previamente autorizado pelo Confaz, uma vez que esse impasse federativo deve ser solucionado em ação própria perante a Suprema Corte, não sendo possível atribuir ao contribuinte a responsabilidade tributária pelos eventuais prejuízos à arrecadação decorrentes da denominada “guerra fiscal”. Precedentes. 3. Agravo Interno não provido.”
(AgInt no REsp nº 1.535.946/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Herman Benjamin, julgado em 07/03/2017)

Nossa opinião é convergente com o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça e espera-se que tais premissas sejam aplicadas em relação à legislação do ISSQN em análise. Inicialmente porque a definição da competência para exigência do imposto deve estar prevista exaustivamente em lei, não cabendo margem para questões interpretativas.

Este inclusive é o entendimento consignado no veto presidencial neste particular, que deveria ter sido prestigiado e mantido, ao esclarecer que a “definição da competência tributária deve vir expressamente definida em lei complementar, não cabendo sua definição a posteriori, como pode ocorrer nas hipóteses previstas pelos dispositivos”.

Isto porque impor ao contribuinte a observância desta ou daquela legislação para o pagamento do ISSQN, a depender de sua própria interpretação, parece uma inversão a lógica do lançamento tributário, por ser atividade precípua do fisco (ainda que o contribuinte tenha que antecipar o pagamento nos casos de lançamento por homologação), bem como não estar respaldado a priori em qualquer decisão do Poder Judiciário, órgão equidistante e que detém a competência para afastar ou reconhecer a relação jurídico-tributária.

Sobre tal questão, cumpre destacar a seguinte passagem do Superior Tribunal de Justiça:

“Somente iniciativas judiciais, mas nunca as apenas administrativas, poderão regular eventuais conflitos de interesses (legítimos) entre os Estados periféricos e os centrais do sistema tributário nacional, de modo a equilibrar as relações econômicas entre eles, em condições reciprocamente aceitáveis”
(RMS 38.041/MG, Rel. p/ Acórdão Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, publicado em 04/11/2013).

Neste sentido, não é demais repisar que todo pagamento realizado estará sujeito a controle pelo fisco, sendo certo que o contribuinte, ao se inserir em meio à “guerra fiscal” entre Municípios, pode ser penalizado pela cobrança acrescida de multa e juros de mora a depender da interpretação da legislação do Município onde estabelecido o prestador a ser conferida pelo Município onde situado o tomador do serviço, sem prejuízo do pagamento em duplicidade e mesmo a negativa na restituição pago (em caso de discordância sobre a aplicação do § 4º do artigo 3º da LC 116/2003 à luz da legislação local), conforme já apontado.

Por tais razões, conclui-se que as mudanças trazidas pela LC 157/2016, muito embora estejam revestidas da tentativa de promover igualdade na arrecadação do ISSQN, conferindo maior parcela àqueles Municípios deslocados dos grandes centros empresariais, acabarão por aumentar os custos dos serviços os quais ora se impõe o recolhimento no local do estabelecimento do tomador, bem como — e o que é mais importante sob o ponto de vista legal — na majoração da litigiosidade ao atribuir ao contribuinte o controverso dever de analisar a validade ou não da legislação local sob o prisma da nova redação da LC 116/2003, cujo resultado poderá implicar na alteração da sujeição ativa para a cobrança do imposto e gerar questionamentos do fisco — tanto o município de estabelecimento do tomador quanto o do prestador dos serviços.

 

 

 

 

 

Autor:  Thiago Sarraf  é advogado da Nelson Wilians & Advogados Associados, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Init code Huggy.chat End code Huggy.chat