Novo Refis e as velhas inconsistências do sistema tributário

Autor:  Tadeu Puretz (*)

 

Em virtude da recente divulgação dos relatórios emitidos pelo Ministério da Fazenda, especialmente no que se refere aos julgamentos administrativos em trâmite no Carf, passamos a analisar o atual cenário da cobrança judicial de dívidas tributárias sob o prisma da legislação processual em vigor, levando em consideração os valores envolvidos em discussões no referido Conselho e as consequências diretas da eventual análise, em sede de execução fiscal, dos processos pelo Poder Judiciário.

O tema apresentado tem como pano de fundo as recentes transformações vividas pelo Carf após a deflagração da operação zelotes, que desmantelou um suposto esquema que, segundo os indícios divulgados na grande mídia, operava no conselho vendendo decisões que favoreceriam contribuintes em diversos processos. O tema também é relevante quando observados os valores envolvidos nos processos tributários que atualmente são julgados em sede administrativa.

Segundo levantamento divulgado pelo Ministério da Fazenda, o estoque de processos em discussão no Carf ultrapassa a incrível marca de R$ 613 bilhões.

Os maiores processos daquele conselho, ao contrário do que se imagina, não têm por objeto demandas que punem grandes sonegadores de impostos que se valem de operações simuladas para evitar a incidência tributária.

Os temas em discussão, ao contrário, revelam operações cotidianas de mercado, realizadas de forma frequente pelos maiores contribuintes do Brasil, com fundamento em decisões reiteradas do Poder Judiciário ou posições amplamente debatidas pela melhor doutrina, mas que continuam sendo objeto de autuações milionárias que chegam, em alguns casos, a cifras que superam 8 dígitos.

A saga diária dos contribuintes que litigam na esfera administrativa não se limita apenas a enfrentar as matérias já pacificadas pelo Poder Judiciário, mas também a aplicação de multas que superam o valor do débito discutido, tornando-as impagáveis[1]. As multas em percentuais superiores a 100% foram objeto de apreciação pelo STF em algumas oportunidades[2], consolidando o entendimento que estas não devem ultrapassar o valor do tributo sob pena de atentar contra o patrimônio do contribuinte, em evidente efeito de confisco.[3]

A soma das questões apresentadas revela um cenário devastador não só para o empresário nacional, mas também para o capital estrangeiro. Neste aspecto, não é raro encontrar nos meios de comunicação notícias[4] relatando a desistência da implementação da operação no Brasil baseada nos ”desafios do ambiente de negócios”[5].

A esta problemática ainda podemos adicionar as recentes alterações no Regimento Interno do Carf que preveem o sorteio de um, dentre os recursos com o fundamento na mesma questão de direito, para figurarem como caso paradigma e julgar os casos conexos em lote, aplicando a este conjunto de casos o mesmo resultado do julgamento daquele designado como paradigma, restringindo, assim, de forma substancial o direito de defesa do contribuinte.

A propósito, tal disposição tem impacto direto em uma das características que mais atraíam os contribuintes a optarem pela esfera administrativa em âmbito federal, qual seja, a análise acurada dos detalhes de cada processo pelos julgadores especializados em matéria tributária.

A incerteza da jurisprudência, somada à aplicação de multas claramente confiscatórias [6], e a correção dos débitos através de uma das maiores taxas de juros do mundo [7], leva o contribuinte brasileiro a um verdadeiro paradoxo, inclusive nos casos em que há bom direito envolvido na discussão: ou enfrenta todos os desafios narrados nas linhas anteriores, suportando o risco do ônus financeiro das multas majoradas, da jurisprudência instável e do voto de qualidade a favor da Fazenda Nacional ou, simplesmente, adere a um dos regulares programas [8] de parcelamento oferecidos pelo Governo Federal, aceitando suas imposições e evitando a apreciação da matéria pelo Poder Judiciário.

Os programas de parcelamento vêm se tornando cada dia mais comuns no ordenamento jurídico brasileiro, sendo lançados, em média, a cada três anos em âmbito federal, cujo movimento muitas vezes é acompanhado pelas demais pessoas jurídicas de direito público.

O Governo Federal anunciou recentemente [9] a proposta de um novo Refis para 2017, que faz parte do pacote de dez medidas microeconômicas adotadas para conter a crise.

Dentre as vantagens frequentemente apresentadas nesses tipos de programa destacam-se a suspensão da exigibilidade do crédito, introduzida no direito brasileiro a partir da vigência da Lei Complementar 104/01, a concessão da anistia de multas, redução de juros e pagamento parcelado em prazo alargado, o que torna a adesão quase obrigatória para aqueles contribuintes que estão no polo passivo das grandes autuações fiscais em trâmite no Carf.

A adesão a tais programas, contudo, não apresentam apenas vantagens: grande parte dos programas — e isso vem se tornando cada vez mais evidente — traz em seu texto normativo contrapartidas gradativamente mais severas aos contribuintes que optam pelo parcelamento.

Em livro dedicado ao parcelamento tributário, Dexheimer [10] critica algumas características dos parcelamentos tributários em âmbito federal que merecem ser objeto de destaque. São elas: (i) periodicidade da criação dos programas de parcelamento; (ii) aumento de concessões (benefícios) — os primeiros programas reduziam as multas em menos de 50%, ao passo que atualmente alguns chegam a 100%, tornando a adesão ao programa muitas vezes mais vantajosa que o pagamento regular do tributo; (iii) agravamento das exigências para adesão, como a confissão das dívidas e renúncia a impugnações administrativas.

Entre as relevantes críticas apresentadas pela autora, cumpre dar especial atenção a uma, pela relação com o objeto deste estudo: A tendência da instauração de programas de parcelamento que permitem a inclusão de débitos cujos temas são objeto de relevante discussão em âmbito administrativo e judicial. [11]

As vantagens do programa de parcelamento somadas às incertezas do processo administrativo fiscal no Brasil levam o contribuinte a descartar a possibilidade de recorrer ao Poder Judiciário para que o tema seja discutido de forma definitiva, o que poderia levar à criação de jurisprudência favorável aos contribuintes caso fossem analisados.

Nesse contexto, diversas matérias cujas teses teriam relevante chance de êxito em eventual apreciação por parte das cortes superiores não chegam a ser julgadas porque são incluídas em programas de parcelamento que exigem a desistência do litígio administrativo e judicial e a confissão irrevogável e irretratável da dívida tributária [12] como requisito de adesão.

Em alguns desses casos, o tamanho das autuações em discussão na esfera administrativa — somando o valor do tributo, multas de ofício e juros — chegam a valores praticamente impagáveis por qualquer Pessoa Jurídica em operação no Brasil. A propósito, o Carf divulgou estudo [13] recente em que revela ter em seu estoque [14] 744 processos com valores entre R$ 100 milhões e R$ 1 bilhão e 90 processos com valores que superam R$ 1 bilhão.

Nos casos daqueles contribuintes que resistiram à tentação de aderir ao programa de parcelamento e não se consagraram vencedores em âmbito administrativo, o que, segundo estudos recentes demonstram, [15] tem sido o resultado mais frequente naquele conselho [16], serão inscritos na Dívida Ativa da União e executados pela Procuradoria da Fazenda Nacional.

A defesa, a partir do ajuizamento da Execução Fiscal deve ocorrer através dos Embargos à Execução, oportunidade em que o juízo tem de ser garantido para o fim de suspender a demanda. Tal afirmação tem fundamento na própria Lei de Execuções Fiscais (LEF). Segundo este diploma legal, o executado será citado para, “no prazo de 5 (cinco) dias, pagar a dívida com os juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, ou garantir a execução” [17]

Ainda segundo a LEF, a garantia da execução pode dar-se através dos seguintes instrumentos: (i) depósito do montante integral; (ii) fiança bancária ou seguro garantia; (iii) nomeação de bens à penhora; (iv) indicação de bens oferecidos por terceiros, desde que aceitos pela fazenda pública.

O Poder Judiciário por diversas vezes[18] se manifestou pela validade das disposições contidas na norma, reforçando que a garantia da execução consiste em requisito à apresentação de Embargos à execução, tendo sido tal entendimento flexibilizado pelos acórdãos mais recentes proferidos pelo STJ.[19]

Nos casos de impossibilidade de garantia integral, ainda que se admitam os embargos — o que se faz em nome do Princípio da Ampla defesa — não haverá suspensão da execução, causando limitação à operação da empresa contribuinte. Isso se dá principalmente pela perda do direito da obtenção da Certidão Negativa de Débitos (CND) e pelo risco da determinação de penhoras durante a tramitação do processo, tornando a operação insegura sob o ponto de vista ponto de vista econômico.

Note-se que nos casos de alta monta apresentados no estudo divulgado pelo Carf (acima de R$ 1 bilhão), dificilmente será possível realizar a garantia do juízo para permitir que a empresa continue a operar enquanto discute a validade ou não do crédito tributário.

Nesse contexto, caso a empresa não tenha o montante integral disponível em caixa — o que se revela mais provável diante das cifras em análise — também não consegue recorrer às instituições bancárias e seguradoras, que não possuem lastro suficiente para garantir execuções desta monta mediante fiança ou seguro garantia, sem que a empresa tenha estes recursos depositados em contrapartidas bancárias.

O contribuinte nesta situação começa a sofrer os efeitos da condenação antes mesmo de uma decisão de primeira instância do Poder Judiciário acerca da validade do crédito tributário, o que contraria frontalmente o conceito de segurança jurídica, pilar do direito tributário nacional.

Diante destas reflexões, o cenário narrado torna o problema cíclico, na medida em que a atraente opção pela adesão aos programas de parcelamento — com a consequente confissão do débito e afastamento da apreciação do Poder Judiciário — faz com que os grandes temas em matéria tributária — aqueles que ensejam grandes autuações — não sejam definitivamente examinados pelos tribunais superiores, e a exigência de determinadas modalidades tributárias — muitas vezes em clara desconformidade com a Constituição Federal — recolhidas pelos contribuintes.

Enquanto não solucionamos tal problemática, aguardamos a publicação do novo Refis, recolhendo créditos tributários indevidos “a perder de vista”.

 

 

 

 

Autor:  Tadeu Puretz é advogado no Rio de Janeiro. L.L.M. Direito Tributário e Contabilidade Tributária pelo IBMEC-RJ. Membro da Associação Brasileira de Direito Tributário (ABDF).


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