Novo sistema de medidas cautelares foi marcante

Por Geraldo Prado

Não tenho a pretensão de tratar de todos os temas pertinentes à matéria penal no finado ano de 2011. Prefiro passear panoramicamente e ressaltar o que para mim ficou marcado como tendência em termos de direito penal e processual penal no Brasil.

Inicio destacando que o ano se revelou na seara penal bastante instável, com expressivas tensões envolvendo movimentos de restrição de direitos e garantias e de afirmação destes mesmos direitos, previstos na Constituição e em pactos internacionais.

No campo da legislação o Projeto de Lei do Senado 156/09 foi aprovado e remetido à Câmara dos Deputados. Pretende-se um novo Código de Processo Penal, adequado à Constituição de 1988, que estruture a Justiça Criminal brasileira conforme modelos consagrados internacionalmente, com especial atenção à feição acusatória do processo.

Há, todavia, um ponto polêmico que no projeto original acirrou ânimos e opôs integrantes de tribunais superiores e membros da comissão de redação do anteprojeto e a comunidade de profissionais do direito, principalmente advogados e Defensores Públicos. Trata-se da restrição ao habeas corpus, que de acordo com a redação primitiva (arts. 646/7) somente teria cabimento em face de atentados diretos à liberdade de locomoção. Questões tais como ilicitude probatória e excesso na acusação, que refletem na citada liberdade do acusado, deveriam ser resolvidas mediante o emprego de outros meios, normalmente menos céleres.

Afirma-se que o volume de habeas corpus distribuídos diariamente nos tribunais superiores inviabiliza a jurisdição que é exercida pelo Superior Tribunal de Justiça, em plano mais ressaltado, e pelo Supremo Tribunal Federal.

O projeto do Senado Federal, todavia, foi apensado ao Projeto de Lei 7.897/10, de iniciativa do Deputado Federal Miro Teixeira. Trata-se de texto preparado no âmbito do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e neste projeto o habeas corpus tem restabelecida sua extensão clássica (arts. 601/2).

Na Câmara dos Deputados o PLS 156/09 ganhou o n. 8.054/10 e está apensado ao projeto apresentado por Miro Teixeira. Por ora prevalece a proposta de manutenção do âmbito normativo original do habeas corpus.

Isso, todavia, encontra resistências no STJ, que aos poucos consolida entendimento no sentido de restringir o remédio heroico, como se vê no Informativo 488/11, ao noticiar o resultado do HC 198.194 – RJ, julgado em 1º/12/2011, com relatoria a cargo do Ministro Gilson Dipp.

O Supremo Tribunal Federal também protagonizou momentos de tensão em matéria penal, com decisões questionadoras de princípios acolhidos na atualidade de forma quase unânime pela doutrina.

Chamam atenção os casos sobre a presunção de inocência, em julgamento relativo à chamada Lei da Ficha Limpa (ou Suja?), e os que versaram sobre a insignificância em termos de tipicidade material do injusto penal.

Em extraordinário artigo sobre o primeiro assunto, publicado no ConJur, para o qual remeto o leitor, o jurista Lênio Streck situa com precisão a controvérsia e mostra quão desastrosas podem ser as consequências de ceder ao pragmatismo ou a ondas políticas em tema de controle de constitucionalidade, que segundo o citado jurista, sempre envolve um “problema de poder constituinte”. O trato hipossuficiente do princípio da presunção de inocência, indevidamente reduzido a um problema de “regra jurídica” e, pois, esvaziado de sua eficácia normativa, abre caminho para propostas de limitação constitucional da própria presunção de inocência, que têm por escopo atender a apelos das empresas de comunicação social que perseguem a expansão da punição penal, apesar dos altos índices de encarceramento característicos deste momento de política criminal no Brasil.

Outra face da tensão opinião pública versus direitos e garantias constitucionais teve lugar na incipiente, porém delicada retomada de jurisprudência de restrição dos conceitos de insignificância da lesão e ausência de ofensividade ao bem jurídico, que repercutem na admitida intervenção extraordinária do direito penal, identificado como ultima ratio, isto é, como derradeiro recurso de controle social.

A doutrina extraiu ambas as noções — insignificância e ausência de lesividade — do reconhecimento de que a Constituição da República reservou ao Direito Penal espaços de intervenção bastante limitados. Nem toda lesão a bem jurídico configura hipótese de acionamento das instâncias repressivas penais.

A construção deste espaço de consenso doutrinário usufruiu muito de decisões anteriores do próprio STF sinalizando para a limitação do emprego do Direito Penal e, nele, da própria sanção penal.

Este ano de 2011, no entanto, viu surgir questionamentos que à semelhança do trato da presunção de inocência no mencionado voto do Ministro Luiz Fux, invocam paradigma dado como superado em termos de dogmática penal.

Assim, alguns julgados do STF, retratados nos Informativos n. 639, 641 e 642, indicaram a hesitação da Suprema Corte em aplicar o princípio a partir de considerações sobre a culpabilidade do acusado, quando em realidade a insignificância tem seu domicílio, dogmaticamente, na área da tipicidade do injusto.

Certo, porém, que a tendência pode não se concretizar. Indício disso está no questionamento da constitucionalidade da reincidência, noticiado no Informativo 620, a propósito do julgamento do HC n. 105.175 (SP).

O destaque dado às iniciativas em torno da restrição normativa do HC (ou sua interpretação), da limitação da presunção de inocência e o balançar dos “consensos dogmáticos” em matéria penal, em virtude das reações midiáticas que afetam este tipo de assunto, tem especial significado na retrospectiva 2011. É dessa forma porque este também foi um ano em que os tribunais superiores reconheceram de maneira mais incisiva a prevalência do devido processo legal e declararam a nulidade de procedimentos investigatórios e processos penais de extraordinária repercussão na mídia.

A proteção do processo penal contra a prova ilícita e a firme resistência às denúncias anônimas, mesmo em operações como as Castelo de Areia, Satiagraha e Boi Barrica, comentadas por Alberto Zacharias Toron, neste mesmo ConJur, mostraram o valor do habeas corpus, ainda quando a ameaça à liberdade de locomoção não era direta, sublinhando o peso de conceitos extraídos da Constituição de 1988 para o Estado de Direito.

A democracia constitui ideal cuja realização demanda energia e, como salienta Ferrajoli, muitas vezes sua edificação importa na limitação da vontade da maioria, o que sempre é desgastante para os tribunais. Este é o “preço” do Estado de Direito.

Finalizo acentuando que talvez o episódio mais marcante do ano de 2011, em matéria penal, tenha sido a aprovação e entrada em vigor da Lei 12.403/11, que instituiu um novo e multifacetado sistema de cautelares pessoais no processo penal brasileiro.

O relevo da nova lei pode ser medido de várias maneiras: a) por resgatar para o Código de Processo Penal o protagonismo sistêmico perdido na década de 90, desde a edição da Lei dos Crimes Hediondos; b) porque reafirmou, no plano infraconstitucional, o valor inequívoco da presunção de inocência e retomou para a liberdade de locomoção o reclamado status de situação processual dos imputados, por excelência, no processo penal; c) porque convergiu com as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, especialmente a partir do Informe n. 86/09, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (de que cuido em meu livro Medidas Cautelares no Processo Penal… organizado pelo Ministro Og Fernandes, RT, 2011); d) também porque somou energia normativa à reforma processual penal de 2008, realocando o juiz na estrutura do processo, com as responsabilidades próprias ao tertius inter partes e não de força de segurança pública ou coadjuvante de órgão de acusação, como na tradição escancarada na versão original do Código de 1941; e) porque exigiu concretamente adesão ao mandamento constitucional da fundamentação das decisões (art. 93, inc. IX); f) e, ao fim e ao cabo, porque revelou preocupação com o abuso da prisão preventiva no Brasil, em alguns casos, não poucos, verdadeiro sucedâneo das penas criminais.

Neste contexto, claro, houve forte reação à aplicação da nova lei, que tem a seu favor a escora da Constituição da República e as responsabilidades do Estado de Direito.

O ano de 2012 terá início sob os auspícios da prometida decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a (in)constitucionalidade da incriminação da posse de drogas para uso pessoal, tema de repercussão geral, cuja solução é bastante aguardada pelo que pode representar em termos de diminuição da violência caracterizadora de nosso aparato repressivo.

Geraldo Prado é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, integrante da 5ª Câmara Criminal.

Revista Consultor Jurídico, 4 de janeiro de 2012

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