Nunca foram cometidas tantas de atrocidades jurídicas

por Marcelo Antonio Muriel

Conta-se que durante o regime ditatorial um militar brasileiro de alta patente em visita a um país latino-americano teria perguntado, em tom jocoso, qual a razão que levava um país sem saída para o mar a manter uma marinha entre suas forças armadas. A resposta veio rápida e com a precisão de um exocet: pelas mesmas razões que levam o Brasil a manter um ministério da Justiça. Triste há de ser a vida de um ministro da Justiça no Brasil, como a vida do ministro da marinha de um país sem saída para o mar.

Sempre tive curiosidade de saber a angústia que deve ter vivido o ministro Gama e Silva às vésperas do Ato Institucional 5, antevendo as agruras que estariam por vir. Talvez a história jamais esclareça qual teria sido o efetivo papel do ministro da Justiça na concepção e gestação do AI-5. Há até mesmo quem diga que foi graças ao ministro Gama e Silva que algumas atrocidades maiores acabaram por ser expurgadas da versão inicial daquilo que os militares da época pretendiam implantar, com ou sem o beneplácito daquele que ocupava o cargo de Ministro da Justiça. Se assim foi, jamais saberemos.

Mas o ministro Gama e Silva entrou para a história como aquele que baixou o AI-5. Será difícil, talvez impossível, dizer se a história lhe fez ou algum dia lhe fará Justiça, com o perdão do trocadilho. Mas o mínimo que se pode dizer, ou inferir, é que um homem letrado e com a formação humanística do ministro Gama e Silva, professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, tinha exata noção do que se passava no país. Tinha também exata noção do impacto que o AI-5 certamente teria sobre a sociedade, e sobre a noção que ele transmitia a seus alunos a respeito do “Estado de Direito”, de liberdades e garantias individuais, dentre outros conceitos que a humanidade tem cultivado e cultuado há pelo menos alguns séculos. Mas a história se repete, ainda que com outra roupagem e linguagem.

A gestão do governo Lula dos assuntos relacionados à Justiça não poderia ser mais desastrosa. O governo Lula deverá entrar para a história com a mais longa lista de atrocidades jurídicas de que se tem notícia, e nem se fale aqui de atrocidades outras como o mensalão e congêneres. Talvez o primeiro e mais eloqüente exemplo tenha sido a reedição do crime de lesa-majestade previsto nas Ordenações do Reino de Portugal (Manuelinas, Filipinas e Afonsinas), com a conseqüente ameaça quase consumada de expulsão de um jornalista estrangeiro que publicou fatos que desagradaram ao presidente.

Na versão original, alguns dos crimes previstos nas Ordenações estabeleciam a pena de degredo para o Brasil. Na versão das Ordenações Lulinas transmutou-se para pena de extradição do Brasil. Dura a vida do ministro da Justiça, que teve de cerzir, costurar, alinhavar e até bordar um acordo que resgatasse um mínimo de dignidade para o país no cenário internacional, depois do episódio do New York Times.

Também a situação do Judiciário brasileiro, como a dos demais poderes constituídos, encontra-se combalida. É bem verdade que essa situação não é mérito integral do governo Lula, pois vem de longe. Mas sem dúvida o governo Lula perdeu uma excelente oportunidade de acertar os rumos, ao implantar uma “Reforma do Judiciário” pífia e perfunctória, que nem de longe cumpriu o papel de reformar um organismo à beira de um colapso total.

Outro exemplo é o sistema de tripartição dos poderes da República, cuja versão Lulística deixaria Montesquieu estarrecido. Vivemos hoje uma total inversão de papéis, funções e atribuições entre o Legislativo, o Executivo, e o Judiciário. O Legislativo brasileiro de hoje não faz leis: limita-se a votar (quando sua pauta permite) as medidas provisórias baixadas pelo Executivo. Dedica-se ainda, e com muito afinco, a processar Comissões Parlamentares de Inquérito, com função de investigar e julgar irregularidades. Funções judicantes, na concepção de Montesquieu, cabem ao Judiciário, e não ao Legislativo.

Já o Poder Executivo gasta o seu tempo legislando, por meio de medidas provisórias que, para serem aprovadas no Legislativo, dependem de certos incentivos distribuídos pelo Executivo aos membros do Legislativo, pequenos “fringe benefits” como cargos em empresas públicas ou fundos de pensão, ou “complementações orçamentárias” como o mensalão. Tudo isso para permitir que o Executivo legisle, e de brinde mantenha abastecidos os cofres de um ou outro partido político.

Com essa troca de gentilezas entre o Executivo e o Legislativo, só resta ao Judiciário governar o país. Não é exagero, não. Todo o processo de privatização brasileiro, um dos maiores do mundo, foi decidido pelo Judiciário, e o que é pior, em caráter liminar. Foi decidido por juízes treinados para dirimir conflitos, não para governar nem estabelecer políticas públicas. Foi decidido por juízes, em caráter liminar, após perfunctório exame de alguns fatos unilateralmente narrados pelo autor da ação, examinados por períodos de algumas horas, ou de alguns minutos em certos casos.

Assim foram decididos alguns assuntos como data e forma de realização de leilões, utilização de moedas podres, definição de preço mínimo, e outros “pequenos detalhes” para a venda de empresas estatais que haviam sido estudados durante meses pelo Executivo, e alterados de uma penada em poucos minutos pelo Judiciário.

É preciso convir que o processo de privatização não foi obra do governo Lula. Longe disso. Mas o Judiciário continua sem limites para sua atuação, e o governo Lula nada tem feito para restabelecer o bonde nos trilhos. Exemplo dos mais gritantes foi aquele juiz federal que determinou a identificação obrigatória dos cidadãos estadunidenses que passam pelas fronteiras brasileiras. Mais um flagrante exemplo de usurpação de função, pois a definição de política externa é atribuição do Executivo, não do Judiciário.

O governo Lula mais uma vez atentou contra a ordem jurídica ao ameaçar quebra de patentes de medicamentos, conforme recentemente divulgado pela imprensa nacional e internacional, e mantém relações mais que promíscuas com o Movimento Sem Terra, cuja grande bandeira é acabar com o direito de propriedade garantido pela Constituição Federal.

Mas a barbárie não termina por aí. A novidade do momento é a invasão de escritórios de advocacia pelo país afora, em operações engendradas pela Polícia Federal, órgão diretamente subordinado ao Ministério da Justiça. Escritórios de advogados vêm sendo invadidos em busca de documentos e informações que possam incriminar seus clientes. Absurdo inaceitável e repugnante. Violação expressa não somente de um dispositivo constitucional e legal, mas vulneração direta de um princípio fundamental do Estado de Direito (aquele mesmo que o ministro Gama e Silva ensinava a seus alunos), que é a garantia do direito de ampla defesa.

Pois o governo Lula conseguiu mais essa proeza jurídica. Além de reeditar as Ordenações do Reino, de constranger Montesquieu, de flertar perigosamente com o desrespeito à lei e à ordem, e de deixar o país à deriva, acaba de reabilitar o Tribunal da Santa Inquisição, plenipotenciária instituição medieval que acreditava na confissão extorquida mediante tortura como a melhor e mais convincente das provas.

Dura a vida do ministro da Justiça! Como explicar ao governo do qual faz parte que o bem jurídico tutelado pela inviolabilidade de escritórios de advocacia não é um privilégio ou uma prerrogativa dos advogados? O bem jurídico tutelado é o direito de defesa dos cidadãos, da mesma forma que a não divulgação da fonte para o jornalista não existe para proteger o jornalista, mas sim o direito de acesso a informações pela sociedade. Mas a comparação não é boa, já que jornalistas e advogados parecem estar na alça de mira do governo Lula.

Não é difícil imaginar a angústia do ministro da Justiça, tal qual a de seu antecessor às vésperas do AI-5. Como seria possível que um advogado da estatura do ministro que hoje se encarrega dos assuntos relacionados à Justiça, com destacada prática especificamente na área criminal, encontre justificativas para permitir que a ignominiosa invasão de escritórios de advocacia continue? Qual o papel que a história reserva ao ministro?

O tempo dirá. O tempo, que tudo resolve, também ensina que inteligente é aquele que aprende com os próprios erros, mas sábio é aquele que aprende com os erros dos outros. Se o ministro da Justiça não quiser ter na história o mesmo destino que foi reservado ao ministro Gama e Silva, então há de aprender com os erros alheios e mudar o rumo de sua gestão frente a um ministério que, até agora, não encontrou uma saída para o mar.

Revista Consultor Jurídico

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