O abolitio criminis na regovação do Decreto 9.142/17

Autor: Wilson Knoner Campos (*)

 

O Decreto do Poder Executivo Federal 9.142/2017, que extinguiu a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), foi alvo de inúmeras críticas de diversos setores da sociedade, sobretudo dos operadores do direito, cujas principais censuras podem ser assim sintetizadas: (i) usurpação da competência do Congresso Nacional para deliberar sobre a matéria (artigo 49 da Constituição Federal, incisos XVI e XVII)[i], (ii) inobservância da obrigatoriedade de consulta pública prévia, por afetar os povos indígenas[ii], (iii) inconstitucionalidade por infringir a vedação ao retrocesso (“efeito cliquet”) em matéria de direitos humanos[iii], uma vez que é direito difuso das presentes e futuras gerações gozar de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que estaria comprometido pela extinção da reserva.

Mas o que este artigo pretende demonstrar – sem esgotar o tema – é que o famigerado decreto (portador de meros quatro artigos e que vigeu por 5 dias), que ganhou a primeira página dos jornais, pode ter ido muito além de simplesmente incorrer nas violações supra e permitir nova “corrida do ouro na Serra Pelada” e exploração de recursos naturais em franca rota de colisão com o princípio de direito ambiental do desenvolvimento sustentável.

Pode, em verdade, ter sepultado a punibilidade de anos à fio de crimes ambientais perpetrados no espaço da Reserva Nacional, que foi drasticamente suprimida pelo decreto, e em seguida “restabelecida” sui generis pelo Decreto 9.147, de 28 de agosto de 2017.

Daí a pertinência em tematizar exatamente os efeitos penais de extinção da punibilidade penal (artigo 5º, XL, da CF/88; artigos 2º e 107, III, do CP) em delitos ambientais decorrentes da edição e revogação do Decreto do Poder Executivo Federal 9.142/2017, que extinguiu a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca).

Eis o ponto que deve ser aquilatado: a edição do Decreto 9.142/2017, ao extinguir/reduzir espaço ambiental protegido, incorreu em supressão material do fato criminoso? Teria o aludido decreto reflexos penais idôneos de abolitio criminis pela ocorrência da retroatividade benéfica?

O exame de uma situação concreta pode facilitar a compreensão: imaginemos que uma área nacional protegida (com biomas e rios) do Pará estivesse sendo degradada e destruída por ricos fazendeiros que exercem mineração ilegal na área desde a criação da Renca em 1984.

A partir do decreto que instituiu a Renca[iv] foram criadas reservas indígenas e unidades de conservação de proteção integral e de uso sustentável. Ao se remover a proteção ambiental inerente à reserva nacional, revogou-se os espaços protegidos mencionados. Haveria, então, abolitio criminis para o predador criminoso?

Os artigos 5º, XL, da CF, e 2º do CP, positivam a retroatividade da lei penal benéfica, que pode se dar nos moldes da “abolitio criminis” e da “lex mitior” ou “novatio legis in mellus”. A primeira, caracterizada pela revogação formal do tipo penal ou supressão material do fato criminoso. As segundas, que são sinônimas, quando ao fato praticado suceda novel instrumento legislativo que seja mais vantajoso ao agente[v].

E a peculiaridade da tutela penal ambiental é que sua positivação na Lei 9.605/98 materializa norma penal em branco por excelência, sendo farta na veiculação de tipos penais que carecem de ato normativo para complementação de seu sentido[vi].

Em tese, ante a natureza de norma penal em branco, a mitigação de um espaço ambiental protegido desaguaria em aniquilação material do fato criminoso, e, portanto, abarcaria os crimes ambientais praticados desde 1984 na Renca, ainda que posteriormente restabelecidos os lindes protetivos no novo Decreto 9.147, de 28 de agosto de 2017.

Portanto, entre o decreto extintivo e o decreto restaurador da Reserva Nacional há o hiato de 5 dias de vigência da extinção da norma que foi base para a criação dos espaços protegidos.

Em se tratando de norma penal em branco, a idoneidade do reflexo da norma extrapenal decorrente da alteração no complemento normativo deve ser analisada sob a ótica do tratamento direto ou indireto do tema em instrumento legislativo. Ou seja, deve-se indagar se o decreto presidencial tratou diretamente de matéria penal, o que é vedado por se tratar de competência congressual (artigo 22, I, e artigo 48, caput, ambos da CF/88).

De outro lado, se a inovação normativa não invadiu diretamente a área penal ao regular um espaço ambiental protegido, e, porém, tão-só indiretamente influiu na figura delituosa, o sistema jurídico terá de conviver com os efeitos e eficácia da novel norma extrapenal que, mais benéfica ao agente predador, retroagirá para justificar a extinção da punibilidade do tipo penal em branco preenchido pela norma que foi esvaziada, no caso, a criadora da Renca.

A questão da antinomia normativa em casos de sucessões legislativas disciplinadoras do complemento da norma penal em branco já foi tema de debate no Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, que ao decidir pela retroatividade do superveniente complemento mais benéfico, vislumbrou não haver hostilidade aos limites temáticos na nova norma avulsa quando seu reflexo na órbita penal ocorre de forma ancilar[vii].

Daí se poder concluir, ao transportar ao caso da Renca tal argumentação jurídica do STF, que a superveniente alteração do complemento retroagirá e terá efeitos de extinção da punibilidade, porque tal consequência é inerente à estrutura aberta da tutela penal ambiental. Terá, portanto, o condão de retirar do cenário jurídico um fato típico e operará a abolitio criminis (na hipótese, crimes desde 1984).

Assim, embora inovando em termos de regência ambiental, o Decreto do Poder Executivo Federal 9.142/2017, que extinguiu a Renca, lamentavelmente fulminou a pretensão punitiva estatal tocante aos fatos ilícitos penais perpetrados pelos predadores desde 1984 na região, porquanto fez desaparecer, em termos de efetividade, de eficácia, o conteúdo necessário da completa definição do tipo penal. Removeu a base da criação posterior de áreas de proteção integral.

De tal modo, ainda que criticável sob diversos ângulos e inclusive na ótica do enfraquecimento da proteção ambiental, o decreto mencionado tem eficácia retrooperante inerente ao Direito Penal, nos termos do artigo 5º, XL, CF, e artigos 2º e 107, III, ambos do CP.

Nesse contexto, não há que se falar em qualquer inconstitucionalidade, ao menos pelo fato de o ato normativo emanar do Poder Executivo, justamente porque o que o princípio da estrita legalidade ou da reserva legal preconiza, em matéria penal, é que a criação de tipos incriminadores seja veiculada por lei formal[viii], o que obviamente não veda a redefinição do complemento da norma penal em branco pela via do decreto presidencial, circunstância que também não obsta a eficácia retroativa[ix].

O que poderia ensejar a inconstitucionalidade e impedir os efeitos retrooperantes citados seria se o ato do Poder Executivo consubstanciasse usurpação de competência para dispor sobre o temário de direito ambiental. O Supremo Tribunal Federal é enfático em asseverar que se o tema plasmado em ato normativo do Poder Executivo orbitar nos limites da competência da autoridade emissora, não haverá inconstitucionalidade[x].

E, no caso da Renca, o espaço ambiental protegido é portador de reservas indígenas (terras indígenas Rio Paru D`Este e Waiãpi), caso em que seria competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar a lavra de riquezas minerais e outras formas de exploração em terras indígenas (artigo 49, XVI, da CF). Aí, em princípio, haveria inconstitucionalidade no que abrangeu as terras indígenas. Mas não no restante do espaço sobre o qual incidiu o aludido decreto. Fosse o caso, haveria uma inconstitucionalidade parcial no tocante ao alcance das terras indígenas. E no espaço residual de incidência, não, e assim o decreto do Poder Executivo irradiaria seus efeitos normalmente, inclusive o de abolitio criminis.

Registre-se que para Juarez Cirino dos Santos, mesmo que houvesse alguma inconstitucionalidade, se presente um elo de dependência entre o núcleo do injusto penal e o complemento atingido pela normação superveniente, o vício referido não afastaria a retroatividade. Para o aludido doutrinador, nesse contexto, sempre haveria retroação[xi].

Não se olvide, ainda, a necessidade de se investigar a natureza jurídica do mencionado decreto, se nasceu em razão de situação excepcional e para atender questões temporárias, ou se sua criação se deu em caráter de definitividade. Isto para se poder aferir a incidência ou não do artigo 3º do CP, que teria então o condão de impedir a retroatividade se fosse o caso de se tratar o decreto em voga de norma excepcional ou temporária.

Mas não é o esse o caso. O decreto, embora já extinto, nasceu sem estar preso à razões de situação anormal ou permeada de efemeridade. Surgiu, em verdade, para ter a duração preconizada no artigo 2º da LINDB[xii], ou seja, até sua eventual revogação. Não fossem as duras críticas da imprensa e da sociedade civil, indubitavelmente o decreto estaria ainda vigendo e surtindo seus efeitos deletérios e funestos à área ambiental em questão.

Entretanto, o decreto vigeu por 5 dias e se assentava em motivação perene, hipótese em que resta rechaçada as limitações do artigo 3º do CP, que se incidisse, obstaria a retroatividade da nova norma complementadora[xiii].

Destaque-se que a duração do esvaziamento do complemento da norma penal em branco, se por longo período ou por breve tempo, não importa para a aferição da retroatividade: “durante, aproximadamente, uma semana, no final de 2000, o cloreto de etila foi retirado da relação de substâncias de uso proibido, por razões de incentivo a outros setores da indústria, que utilizariam o produto. Foi o suficiente para gerar a aplicação retroativa da abolitio criminis verificada.”[xiv]

Portanto, segundo assentado nas premissas acima, pode ser que o Poder Judiciário venha a se deparar com diversos Habeas Corpus e Revisões Criminais vocacionados ao reconhecimento da abolitio criminis (artigo 107, III, do CP) em razão da extinção da Renca e a inegável possibilidade de retroatividade da norma penal mais benéfica.

Uma postura em flagrante rota de colisão com os postulados de direito ambiental que apregoam o desenvolvimento sustentável, uma vez que, caso firmada a tese de abolitio criminis, estar-se-ia premiando e livrando das sanções penais os predadores que por anos a fio desmataram e degradaram a região, socializando os danos ambientais e capitalizando a riqueza decorrente da desenfreada e ilícita exploração.

Por isso é procedente a crítica de Nicanor Henrique Netto Armando sobre o exacerbado emprego de normas penais em branco:

“[A] norma penal em branco é suscetível a ter seu conteúdo modificado sem que haja uma discussão amadurecida da sociedade a esse respeito,como acontece quando os projetos de lei são submetidos à apreciação de ambas as casas do Congresso Nacional, sendo levada em consideração a vontade do povo, representado pelos seus deputados, bem como a dos Estados, representados pelos seus senadores, além do necessário controle exercido pelo Poder Executivo, que exercita o sistema de freios e contrapesos.”[xv] (sem grifos e destaques no original)

Mesmo assim, ainda que sujeita as mais duras e contundentes reprovações, parece-nos inarredável que, por efeito primário do direito fundamental que é a retroatividade da norma penal mais benéfica, a inovação normativa extrapenal em voga caracterizou abolitio criminis no tocante a diversos tipos penais em branco que permeiam a Lei 9.605/98, o que deverá ser verificado caso a caso.

 

 

 

 

 

Autor: Wilson Knoner Campos é advogado sócio da Bertol A/A. Presidente da Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC. Exerceu o cargo de Assessor Jurídico de Ministro do STJ e de Chefe de Gabinete de Desembargador do TJSC. Membro do IBCCrim. Membro da AACRIMESC. Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SC (2013/2015).


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