O aborto na legislação penal brasileira e mundial

Renato Flávio Marcão*

A prática do aborto, lembra Nelson Hungria, é de todos os tempos, mas nem sempre foi objeto de incriminação: ficava, de regra, impune, quando não acarretasse dano à saúde ou a morte da gestante. Entre os hebreus, não foi senão muito depois da lei mosaica que se considerou ilícita, em si mesma, a interrupção da gravidez. Até então só era punido o aborto ocasionado, ainda que involuntariamente, mediante violência (Comentários ao Código Penal, 3. ed., v. 5, Rio de Janeiro: Forense, 1955, p. 262).

Na Grécia, acrescenta, era corrente a provocação do aborto. Licurgo e Sólon a proibiram; Hipócrates, no seu famoso juramento, declarava: “A nenhuma mulher darei substância abortiva”; mas Aristóteles e Platão foram predecessores de Malthus: o primeiro aconselhava o aborto (desde que o feto ainda não tivesse adquirido alma) para manter o equilíbrio entre a população e os meios de subsistência, e o segundo preconizava o aborto em toda mulher que concebesse depois dos quarenta anos. E a prática do aborto difundiu-se por todas as camadas sociais.

Santo Agostinho, apoiado na doutrina de Aristóteles, pregava que o aborto só era crime quando o feto já tivesse recebido alma, o que se julgava ocorrer quarenta ou oitenta dias após a concepção, segundo se tratasse de varão ou de mulher, respectivamente (op. cit. p. 263). Mais tarde, a Igreja Católica aboliu a distinção e passou a condenar severamente o aborto, e a pena de morte foi aplicada (morte pela espada, afogamento, fogueira) tanto à mulher como ao partícipe. A questão principal para o direito canônico era a perda da alma do feto, que ficava sem batismo (Heleno Claudio Fragoso, Lições de direito penal – Parte especial, v. 1, São Paulo : José Bushatsky, 1958, p. 48).

Também já serviram de argumento para a prática do aborto o medo da desonra, o direito da mulher de desfazer-se de um feto que não está ainda separado dela e que constitui uma porção do seu corpo, assim como a teoria do Dr. Klost-Forest, no sentido de que o feto não é uma pessoa e de que as práticas anticoncepcionais não podem ser perseguidas (L’avortement est-ce un crime?, Paris, 1908), chegando-se também à teoria alemã, calcada em Eduardo Von Liszt, que partiu da idéia de que, sendo o delito um ataque a um bem jurídico, e negando que o feto seja pessoa e, portanto, sujeito de ostentar interesses protegidos pelo Direito, conclui pela impunidade do aborto, por não caracterizar tal ato qualquer delito (Die kriminelle FruchtabtreibungI, Zurich : Orell-Füssli, 1904).

Não faltou quem viesse a questionar se é delito o aborto (cf. Antonio Alvares Garcia Prieto, El aborto, és un crimen?, Madrid : Reus, 1927), existindo a esse respeito várias teorias defensórias da impunidade, como se vê.

Em 1556 o rei Henrique II, de França, buscou lutar contra infanticídios e abortos, promulgando famoso édito em que se punia da maneira mais severa as mulheres que tivessem ocultado a sua gravidez. Entretanto, em nada conseguiu reduzir as estatísticas, que até os dias de hoje só fazem aumentar drasticamente.

Como é notório, sociólogos, religiosos, juristas e outros têm se preocupado com o estudo da questão do aborto e seus reflexos, desde longa data.

Aborto Impunível x Aborto Punível

Em 1912 discutia-se em Lugano, na Suíça, o Anteprojeto do Código Penal federal suíço quando surgiu a proposta, não aceita, de regulamentação do aborto nos seguintes termos: “O aborto ficará impune se se realiza dentro dos três meses e é executado pela mesma grávida ou por um médico diplomado” (Schwizarisches Strafgesetzbuch – Protokoll der zweiten Expertenkommission, Zurich : Art. Institut Orell Füssli, 1913, t. II, p. 183), porém, a redação definitiva apresentada em 1916 trouxe em seu artigo 112 que: “O aborto praticado por um médico diplomado e com o consentimento da mulher grávida não é punível: Se se executa para evitar um perigo para a vida ou para a saúde da mãe e se esse perigo não pode ser evitado por outros meios; se o embaraço provém de uma violação, de um atentado contra o pudor cometido em uma mulher idiota, alienada, inconsciente ou incapaz de resistência, ou de um incesto. Se a vítima é idiota ou alienada o consentimento do seu representante legal deverá ser requerido para o aborto” (Schwizerisches Strafgesetzbuch, Vorent-Wurf, 1916. Code Penal suisse, Avant-Projet 1916).

Sem resistir às pressões, notadamente da Igreja Católica, referido dispositivo legal, de eugenesia reveladora, teve seu último parágrafo suprimido em 1918.

Mesmo assim outras legislações se seguiram pelo mundo, tratando do mesmo tema da maneira suíça de 1916, como ocorreu em 1922 no Código argentino e com o projeto tcheco-eslovaco de 1925.

Os Códigos russos de 1922 e 1926, repetindo legislação de 1918, foram muito além de qualquer expectativa, chegando à impunidade do aborto de um modo geral, punindo apenas quem, sem diploma de médico ou sem preparação especial, viesse a interromper a gravidez de uma mulher, verificando-se a forma qualificada sempre que tal fato viesse a ocorrer sem o consentimento da mulher.

De 1933 a 1936, o Código uruguaio incriminou apenas o aborto não consentido pela gestante.

Hodiernamente, porém, o aborto provocado, em qualquer fase da gestação, figura como crime nas legislações penais dos países ditos civilizados, entretanto, com ressalvas em sua grande maioria, em razão de situações clinicamente especiais, avaliadas no plano jurídico.

Características

O aborto compreende, em regra, todas as interrupções provocadas da gravidez em qualquer dos seus períodos, no dizer de Coutagne (Médecine legale, p. 446), entre nós citado por Bento de Faria (Código Penal brasileiro comentado, Rio de Janeiro : Récord, 1959, v. 4, p. 46). Daí ser incompleta a lição de Zanardeli no sentido de que o aborto criminoso importa sempre a destruição do feto, aconteça dentro ou fora do ventre materno (Relatório, v. 2, p. 322), ou ainda a lição de Carrara, que distingue o feticídio do parto acelerado e faz consistir o primeiro na morte dolosa do feto no útero, ou a sua expulsão violenta do ventre materno e da qual se tenha seguido a morte.

É que, sem dúvida, o aborto provocado pode consistir na morte do feto, quando o sujeito passivo do delito for o feto, mas também pode ocorrer em relação ao embrião ou o produto da fecundação, segundo Pincherli (Código Penal italiano anotado, p. 535), também citado por Bento de Faria (op. cit., p. 48), decorrendo de tais situações conseqüências juridicamente relevantes.

Discorrendo sobre as características essenciais do crime de aborto, Sebastian Soler anota que “asi como el homicídio es la murte inferida a un hombre, el aborto es la muerte inferida a un feto. De ello se deduce que la acción debe ser ejecutada sobre un sujeito que no pueda aun ser calificado como sujeito pasivo posibile de homicicio, condición que, según sabemos, principia com el comienzo del parte. Toda acción destructiva de la vida, anterior a esse momento, es calificada de aborto, sea que importe la muerte del feto en el clustro materno, sea que la muerte se produzca como consecuencia de la expulsión prematura” (Derecho penal argentino, Buenos Aires : Tipografia Argentina, 1973, v. 3, p. 91).

As legislações brasileiras sobre o tema

O Código Penal brasileiro, mandado executar pelo Dec. 847, de 11.10.1890, tratou do crime de aborto nos arts. 300, 301 e 302, e a única possibilidade de benefício legal prevista encontrava-se no par. ún. do art. 301, que estabelecia redução da 3ª parte da pena prevista para o crime de “provocar aborto com anuência e acordo da gestante”, se o crime fosse cometido para ocultar a desonra própria. Permitia, entretanto, o aborto legal ou o aborto necessário, desde que provocado por médico ou parteira, para salvar a gestante de morte inevitável.

O Código Penal atual, Dec.-lei 2.848, de 07.12.1940, como o outro, pune o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (art. 124), o aborto provocado por terceiro (art. 125), o aborto provocado com o consentimento da gestante (art. 126), e prevê formas qualificadas em caso de superveniência de lesões graves ou morte da gestante (art. 127). Por outro lado, aumentou o rol de causas de exclusão da punibilidade, no art. 128, expressando não ser punível o aborto praticado por médico: ” (…) II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”, além, é claro, daquele autorizado para salvar a vida da gestante (inc. I).

O Anteprojeto do Código Penal elaborado pela Comissão encarregada de estudar reformas na Parte Especial do Código em vigor vai mais além. Embora mantendo as figuras típicas como estão, propõe mudanças consideráveis nas penas a serem aplicadas, chegando ao extremo de reduzir drasticamente a reprovabilidade do crime de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, na forma simples, colocando-o em situação de mera infração de pequeno potencial ofensivo, com procedimento regulado pela Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais para as ações penais de pequeno potencial ofensivo, veja-se, pequeno potencial ofensivo, já que pela proposta tal crime seria punido com detenção, de um a nove meses, o que acaba por permitir transação penal, em tese, e aplicação de penas restritivas de direitos ou exclusivamente pecuniária, não gerando nem mesmo a possibilidade de reincidência caso a(o) beneficiada(o) venha a praticar novo crime posteriormente (§ 4º do art. 76).

O que mais chama a atenção, entretanto, é o rol previsto no art.128, que trata das hipóteses de exclusão de ilicitude.

Enquanto a legislação atual autoriza o aborto, no caso do inc. I do precitado artigo, apenas para salvar a vida da gestante, desde que praticado por médico e não haja outro meio, na proposta elaborada acrescentou-se ao referido inciso a possibilidade do aborto para preservar a saúde da gestante.

É evidente que a previsão em questão poderá levar à prática incontrolável de abortos acobertados pela “legalidade”, a critério único e exclusivo dos profissionais da área médica. É que a compreensão que se pode dar à expressão “preservar a saúde da gestante” é por demais extensa e se circunscreve ao domínio da ciência médica.

O inc. II do art. 128 do Anteprojeto amplia a possibilidade de aborto lícito, antes restrita ao caso da gravidez resultante de estupro, para autorizá-lo sempre que a gravidez resultar de violação da liberdade sexual ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida.

Em arremate, o § 1º do artigo em testilha estabelece que, nos casos dos incisos II e III, e da segunda parte do inc. I, o aborto deve ser precedido de consentimento da gestante ou, quando menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou de seu companheiro.

Nitidamente procurou-se afastar qualquer discussão quanto à possibilidade de aborto legal em razão de gravidez resultante de outras práticas sexuais, notadamente do crime de atentado violento ao pudor (coito inter femora, por exemplo), adotando-se a universalidade “violação da liberdade sexual”, muito embora já se admitisse a analogia in bonam partem, como defende Damásio E. de Jesus (Direito penal – Parte especial, 10. ed., São Paulo : Saraiva, 1988, v. 2, p. 138).

Por outro lado, atendendo aos avanços da genética e das novas técnicas de reprodução assistida, andou bem a Comissão em pretender autorizar o aborto quando a gravidez seja resultante da prática não autorizada dessas ciências modernas. É que na verdade o resultado é o mesmo daquelas outras hipóteses: gravidez não desejada.

Por fim, o inc. III autoriza o aborto quando há fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais.

É evidente que a intenção do legislador é obter o aval de outros médicos para a prática extrema, além daquele externado pelo que venha executar o aborto, visando assegurar a possibilidade da prática somente nos casos comprovadamente necessários, sob o aspecto clínico que se procurou preservar.

Eugenesia como nota característica da proposta de mudança contida no Inciso Iii

O dispositivo em questão é de nítido caráter eugênico.

Sobre o tema, cumpre estabelecer distinções, mais uma vez com o ensinamento de Nelson Hungria, entre a gravidez normal, a gravidez extra-uterina e a gravidez molar.

Tem-se por gravidez normal aquela em que o óvulo é fecundado intra-útero, aí se desenvolvendo até que sobrevenha o parto. Extra-uterina quando o óvulo não se desenvolve no útero. Apresenta variedades, segundo a região mais precisa em que o óvulo se desenvolve: intersticial, se na trompa; ovária ou tuboovária etc. Em tais casos o desenvolvimento fetal não se opera senão por breve tempo; sobrevêm complicações por abundante hemorragia, ou ruptura da trompa etc., que produzem naturalmente a morte da mulher.

Outras vezes, o feto permanece no lugar, mas vem logo a deter-se em seu desenvolvimento e sofre processos progressivos, entre os quais o da calcificação, apresentando a formação de um litopédio. A gravidez molar consiste numa particular formação neoplástica, derivada principalmente das membranas fetais, sem que haja (ou sem que necessariamente haja) a presença de um embrião (op. cit., p. 289).

Ocorrendo gravidez extra-uterina ou gravidez molar, a interrupção não constituirá crime de aborto, porquanto não há vida a ser destruída em ambas as hipóteses. O produto patológico da gravidez extra-uterina não tem vida propriamente dita, e as verdadeiras molas não são fetos.

Quer nos parecer, entretanto, que a proposta da Comissão visa autorizar, definitivamente, a eugenesia, aqui relacionada à prática de aborto que pressupõe a existência de feto viável, porém com fundada probabilidade de apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais, tanto assim que se buscou tratar em outros dispositivos de questões como a eutanásia (art. 121, §§ 3º e 4º) e esterilização (art. 131), cuidando, sem sombra de dúvida, daquilo que os alemães e americanos chamaram no passado de “higenização da raça”. É o espírito da Comissão.

A busca da seleção natural pela eugenesia não vem de práticas recentes. Por outro lado, não está longe de causar polêmica a forma como o assunto vem sendo tratado no Anteprojeto de Código Penal brasileiro.

Os brâmanes tinham o costume de matar ou abandonar na selva as crianças que, dois meses depois de nascidas, lhes pareciam de má índole. Os espartanos davam à morte as crianças “defeituosas” por considerarem inútil encargo para o Estado. Os celtas davam à morte as crianças disformes ou monstruosas e também os anciãos valetudinários. Os masságetas, sardos, eslavos e escandinavos precipitavam à morte os pais enfermos que tivessem atingido velhice extrema, sendo tal prática comum entre os selvagens da Terra do Fogo, os de Fidji, os batas, entre outros.

Binding reclamou que se autorizasse legalmente o extermínio dos enfermos e feridos incuráveis que pedissem o fim dos seus sofrimentos; dos imbecis e dementes sem remédio e daqueles seres que por doença ou acidente tivessem perdido a consciência e que ao sair dessa inconsciência tivessem de cair no mais miserável estado.

O humanitarismo hodierno, entretanto, não pode ceder espaço à tal prática difundida no passado.

Mesmo assim, a “higiene racial” se mostra nítida nas leis esterilizadoras de certos países e naquelas em que se exige exame pré-nupcial para o casamento.

A bem da verdade, procriar é de todos os atos da vida o mais importante. Inobstante, práticas esterilizadoras foram difundidas em diversos países, como é o caso dos Estados Unidos, onde tal se iniciou em 1907, no Estado de Indiana; em Cuba no ano 1913 e na Dinamarca em 1917.

Vasectomia no homem e ligação das trompas nas mulheres não constitui novidade em nenhuma parte do mundo civilizado. Assim, a impotência para gerar, embora muitas vezes imposta por contingências naturais, não raras vezes é buscada conscientemente, inclusive mediante pagamento, por objetivos os mais variados.

Conclusão

O assunto relacionado ao aborto compreende tema tão polêmico quanto esterilização, eutanásia e eugenesia, todos eles abordados agora pela Comissão incumbida das “reformas” a serem instituídas na Parte Especial do Código Penal, e desde já é possível afirmar que se optou pela volta ao passado, adotando o modelo suíço de 1916 acima indicado (art. 112). Basta comparar, colocando-se, evidentemente, na mesma situação que aquele, passível de críticas as mais variadas, inclusive e especialmente da Igreja Católica.

Lá, o avanço durou dois anos, pois, não resistindo às pressões, em 1918 as mudanças vieram, em ataque à eugenesia revelada às escâncaras. Aqui, por certo não será diferente, inobstante o tempo distante.

Por incrível que possa parecer, se o modelo legal ainda serve para o Brasil, mesmo decorridos oitenta e dois anos de sua instituição na Suíça, os argumentos rebatedores daqui ainda são os mesmos que fizeram fracassar a previsão lá, ainda que em parte, no tocante à tentativa de avanço legal no campo da eugenesia em matéria de aborto. Resta aguardar.

Renato Flávio Marcão é membro do MP de SP, mestre em Direito Penal, especialista em Direito Constitucional, professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal e membro da Associação Internacional de Direito Penal.

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