O "acintoso" cumprimento da lei

Leonardo Massud

SÃO PAULO – Já faz muito tempo que a superlotação dos presídios, cadeias públicas, centros de detenção e distritos policiais não é novidade para ninguém. Não sendo novo e, mais do que isso, em sendo recorrente, a constante exposição de uma determinada realidade, por mais abjeta que possa ser, tem a estranha propriedade de dessensibilizar os seus expectadores.

Foi possivelmente em razão disso, mas aliado também a outros fatores, que as decisões do juiz Livingsthon José Machado causaram tanta surpresa e indignação em alguns setores da sociedade, particularmente na mídia e na comunidade jurídica. Tal comoção, que inclusive gerou o afastamento do magistrado, é reflexo, porém, de uma grave inversão de valores, cuja ocorrência tornou acintoso o cumprimento da lei, da Constituição Federal, e dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Com efeito, diz nossa Lei de Execução Penal (Lei n.º 7210/84) que os condenados à pena de reclusão, em regime fechado, serão alojados em célula individual, com aparelho sanitário e lavatório, sendo seus requisitos básicos: a salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; e área mínima de 6 metros quadrados (artigos 87 e 88). Aos condenados em regime semi-aberto, a lei de execução prevê a possibilidade de alojamento coletivo, desde que respeitadas as condições acima mencionadas (artigo 91), bem como a capacidade máxima que atenda os objetivos de individualização da pena (artigo 92, parágrafo único, “b”).

Nossa Constituição promulgada em 1988, que reflete, é sempre bom recordar, a soberana vontade do povo brasileiro, assegurou a vedação às penas cruéis, assim como o respeito à integridade física e moral aos presos (artigo 5.º, incisos XLVII, “e”, e XLIX).

Tal proteção encontra-se albergada, ainda, pelos instrumentos internacionais, destacando-se, dentre eles, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela qual, de acordo com o seu artigo V, “ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.”, direito esse igualmente contemplado no artigo 7.º do Pacto de Direitos Civis e Políticos (1966), no artigo 16 da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) e no artigo 5.º, § 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica de 1969), esta última ratificada pelo Brasil em 1992.

E o que fez o juiz Livingsthon José Machado? Diante das condições vergonhosamente degradantes que se encontravam os presos condenados, submetidos à sua jurisdição, sabedor de que a prisão ilegal deve ser imediatamente relaxada (art. 5.º, inciso LXV, da CF/88), concedeu-lhes liberdade até que fossemproporcionadas condições mínimas para que as referidas pessoas cumprissem as penas às quais restaram condenados. Tal decisão tem fundamento ético e legal, na medida em que, dentro de distritos policiais e com excesso da população carcerária, mal há condições sanitárias de sobrevivência, quanto mais para que o condenado possa reeducar-se, trabalhar e reaprender a viver em sociedade. A pena de prisão deve tirar tão-somente a liberdade do condenado, não a sua dignidade pessoal (artigo 1.º, inciso III, da CF/88).

E o que fez a cúpula do Poder Judiciário mineiro? Primeiramente, cassou as decisões do juiz, proibindo-o – como se isso fosse possível – de proferir decisões futuras no mesmo sentido. Como essa decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais não vergou a coragem e a independência do magistrado de primeira instância, resolveu-se suspendê-lo por ter tido a petulância de cumprir a lei que o próprio tribunal e outros tantos, durante tanto tempo, sequer pensaram em cumprir. A responsabilidade pela soltura de presos tidos como perigosos não é, como propalado por boa parte da imprensa, do Juiz Livingsthon José Machado, mas dos Poderes Executivos mineiro, de todos os outros Estados da federação, e também da União, únicos responsáveis pelo estado calamitoso que se encontram os “depósitos de gente” que estes insistem em chamar de prisões.

Sabe-se, é verdade, que o rigoroso cumprimento da Lei de Execuções Penais não é mais possível da noite para o dia. Não se trata, contudo, de uma utopia ou de uma recomendação. É, sim, uma lei, uma obrigação do Estado.

Nesse contexto, a suspensão do bravo juiz Livingsthon, mais do que mascarar responsabilidades, avilta a independência, a liberdade funcional e o destemor que devem resvestir a judicatura, cuja espinhosa função é, muitas vezes, ao dissabor da opinião pública, fazer cumprir a lei e a Constituição.

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