O advogado e o inquérito policial

Trepidante. Seria o mínimo a se dizer sobre tão crucial fase por que passa o cidadão quando acusado ou preso por um delito.

A azáfama, o ambiente no mais das vezes bizarro e hostil, o constrangimento do flagrante ou do inevitável comparecimento e, situação ainda mais grave, quando frente a uma autoridade policial despreparada ou desonesta, acrescente se a todo o quadro acima o arbítrio, os risos a socapa, as brincadeiras intimidante dos “tiras”, o alarido da imprensa já previamente contactada, a tortura, o alquebrar de um dos fundamentos da República, a dignidade.

Nesse contexto, surge o advogado…

Em sua constitucional missão (art. 5º, LXIII, C. F./88) afigura se o advogado, para o indiciado ou preso, qual tábua de náufrago em bravio mar.

Para a autoridade policial, especificamente quando esta mostra se arredia aos cânones constitucionais e moralmente refratária, o que esta vê são apenas os pregos desta tábua. Confronto …

A gênese desse “teatro do absurdo” reside não esquecendo se da moralidade fátua, da cupidez e outros desvios na vesga visão de parte dos Delegados de se verem como “um pré promotor : tudo que não estiver na linha da acusação não interessa ao inquérito. Não conhece o Bel. a prova pura, aquela prova que não se destina nem à acusação nem à defesa. Parece que há sempre a preocupação de sempre piorar o crime. E enfeiar o indiciado” (1). Esquecem se estes que cabe a Justiça, e não à Polícia decidir a respeito da culpa de alguém.

A necessidade de vingança social, tão facilmente confundida com os imperativos da Justiça, é equívoco antigo e bem demonstra o quanto a praxis das ditaduras pelas quais passou o Brasil acabou por dar essa face draconiana e a beira do arbítrio com que, no mais das vezes, se apresenta o inquérito. Noutro vértice, isso só vem a ratificar o entendimento de que o Direito e a sua aplicação, nasce e tem como vetor, a sociedade na qual o mesmo é desta, fruto e árvore, quiçá frondosa. Direito é ideologia.

O fato é que, mercê de nova ordem constitucional, o direito infraconstitucional, bem como a sua aplicação, deverão ser reescritos, repaginados, repensados enfim, para que seja resguardada a imprescindível compatibilidade deste para com a Magna Carta, norte a ser seguido e perseguido. Já não bastam as garantias, precisamos mais, precisamos urgentemente garanti-las …

Como dito por TORNAGHI, “quem detem a força não precisa violar o Direito para assegurar a ordem; ao contrário: o abuso do poder é sintoma de franqueza e sinal de covardia.

Tais práticas, por vergonhosas e desprezíveis, não se compadecem com o refinamento de costumes que os brasileiros tem o direito de exigir daqueles aos quais eles se confiam e não é, evidentemente, para sofrer essas afrontas que a Nação estipendia e homenageia os fiadores da lei e da ordem.” (2)

Exige se para tanto que não mais se continue a ler a Constituição com os olhos cansados do autoritarismo, que “não obstante a resistência que lhe opõe a nossa prática judicial, sempre nostálgica de um inquisitorialismo mentalmente insepulto” (3) se apercebam, todos, que o inquérito policial só teria a se fortalecer com a presença da defesa ou, como dito com mais propriedade pelo Des. SÉRGIO PITOMBO, “o inquérito policial civil ganharia em eficiência, com a regular cooperação do exercício do direito de defesa.” (4)

Lançar a luz do Contraditório diferido sobre os ambientes policiais não deveria incomodar a ninguém, a não ser aqueles que, como HAMLET, desejam: “estrelas, ocultem o vosso fogo, que nenhuma luz entreveja os meus desejos obscuros e profundos.” A frágil argumentação de que as investigações restariam prejudicadas pela participação da defesa perante o inquérito só podem vir daqueles que imaginam no Contraditório “o absurdo que seria advogados de defesa coladas a detetives particulares ou a investigadores, a serviço da Polícia, do Ministério Público ou do Juiz, a espiarem as pesquisas sobre as infrações, seus autores e os elementos de convicção.” (5)

Não é esta a idéia que se propõe. Contrariando (com pesar) o extraordinário Des. AMILTON BUENO DE CARVALHO, na sua citação de ROBERTO GOMES (6), acreditamos, aristotélicamente, que a virtude realmente está no meio, no equilíbrio. E, portanto, se não pactuamos de um Contraditório exercido plenamente na fase policial, de forma, que aí sim, desequilibrar se ia o fiel da balança entre os interesses persecutórios do Estado e as garantias do cidadão, também não pactuamos da idéia de “negação, ex parte principis, da transparência na esfera pública e do princípio da publicidade, seja através da estrutura burocrática na forma de cebola, seja no emprego da mentira e da manipulação ideológica, que impedem a circulação de informações exatas e honestas” (7), posto que tais manifestações, conforme HANNAH ARENDT, são “uma das notas características do totalitarismo.” (8)

Quid inde ? Quid juris?

A resposta, a nosso ver, vem com FAUZI HASSAN CHOUKE, quando o mesmo se posiciona: “O novo processo penal, acobertando explicitamente valores de garantia ao suspeito e alterando definitivamente papéis até então cristalizados, clama por certo uma nova postura ética do órgão acusatório nessa etapa prévia, na medida em que, se a participação do investigado aparece limitada pela própria natureza da atividade que se desenvolve, deve o titular da investigação preservar também meios de prova que favoreçam àquele, tendo este compromisso assumido em muitos ordenamentos o status de lei.” (9)

Nesse diapasão, manifestou se o augusto Supremo Tribunal Federal: “A situação de ser indiciado gera interesse de agir, que autoriza se constitua, entre ele e o Juízo, a relação processual, desde que espontaneamente intente requerer no processo ainda que em fase de inquérito policial. A instauração de inquérito policial, com indiciados nele configurados, faz incidir nestes a garantia constitucional da ampla defesa , com os recursos a ela inerentes.” (RT 522/403).

“A unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que assistem ao indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto de investigações. O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias legais e constitucionais, cuja inobservância pelos agentes do Estado além de eventualmente induzir lhes a responsabilidade penal por abuso de poder; pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.” (1ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 04/10/96, pag. 37100).

Também, neste vetor, o egrégio T. R. F. 3º Região: “Da instauração do inquérito policial exsurge para o investigado o direito subjetivo de requerer provas no inquérito” (Rel. Juiz Fauzi Achoa RBCC, vol. 7/214).

A partir daí faz se imprescindível uma releitura, sob ótica constitucional, do artigo 14 do C.P.P., no tangente ao final de sua redação. Estamos com MIRABETE quando este, de forma peremptória, posiciona se: “caso a diligência ou juntada de documentos possa servir, presumivelmente, à apuração do fato ou de suas circunstâncias, ainda que favorecido o indiciado, deve deferir o pedido.” (10)

Os exemplos práticos, hauridos no dia a dia são muitos, cabendo aqui elencar alguns: reconstituição fotográfica do delito em caso de legítima defesa; oitiva de testemunha presencial não constante do B. O.; exame de corpo de delito no indiciado e suas testemunhas em caso de lesões corporais ou homicídio; juntada de documentos relativos à contribuições a entidades assistenciais, nos termos do artigo 6º, IX, do C. P. P. e, tantas outras hipóteses que, na lida diuturna, surgem aos borbotões.

Em síntese, “a inquisitoriedade não é incompatível com o exercício do direito de defesa pelo indiciado durante o inquérito policial. Seu interesse, ali, consiste, ao menos, em demonstrar que não deve ser denunciado” (11). Reitere se que, a nosso ver, tal exercício se daria nos termos lucidamente lecionados por JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO (12), ou seja, no segundo momento da fase preliminar do inquérito, isto é, na participação efetiva do advogado perante a introdução, feita pelo autoridade policial, no inquérito, dos elementos de reconstituição do fato apurado, e, jamais, durante a investigação.

Traduzindo para a prática, não teria sentido algum exigir da autoridade policial que a mesma venha a lançar aos quatro ventos as perquirições que irá proceder na vida de um suspeito e eventual indiciado, afim de adverti-los e prepará-los, tampouco seria justo imaginar se o defensor, qual papagaio de pirata, nos ombros de detetives e investigadores. Noutro vértice, perquirida a vida daquele suspeito, via prova documental ou testemunhal ou pericial, da mesma deverá ser oportunizada a defesa, a possível contraprova destes elementos de reconstituição.

Volta se a insistir. O que se quer é o equilíbrio, é o meio, é a luz, sempre asséptica, sobre provas carreadas pela investigação. Fazemos eco ao digno Parquet ANTÔNIO GOMES DUARTE, quando o mesmo brada que “o inquérito policial diante dos princípios e garantias constitucionais hoje vigentes, não pode sobreviver às fórmulas sigilosas, inquisitórias e arcaicas ainda empregadas e defendidas pela mais respeitável doutrina.

Estamos desprezando importantíssimas garantias conquistadas em lutas obstinadas travadas ao longo da história das relações sociais do povo brasileiro. Nós que de alguma forma militamos com o Direito devemos ter sempre em mente que o fim de toda atividade estatal é o homem, e que “o homem e a sociedade não se escravizam a um direito; o direito é que deve ajustar se e orientar se no sentido do fato social.” (13)

Vale aqui indagarmos junto com Voltaire: de verdad el secreto conviene a la justiça? No debiera ser sólo próprio del delito el esconderse?(14)

Por derradeiro, lembremos e nunca olvidemos: como cadáveres adiados que somos, nesta “nossa chamada vida que não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de ser.” (15), tribulações e tragédias já temos em demasia. Não necessitamos de tornar a nosso coexistência ainda mais tormentosa que já o é com tergiversações sobre os direitos dos homens frente aos próprios homens. Fingir pouca importância ao inquérito, onde até mesmo algumas provas não mais se repetem, para logo ali na frente, na sentença, usá lo, é tergiversar com o direito e a liberdade. Sejamos humanos.

Como, alhures, já tivemos a oportunidade de escrever, agora reiteramos: “Dizer, a doutrina dominante, que o cidadão indiciado é apenas objeto de investigação e não um sujeito de Direito de um procedimento jurisdicionalmente garantido, é o mesmo que dizer que o inquérito policial é seara onde a Constituição não pisa, é fôro onde o Direito bate em portas lacradas.” (16)

“É realmente doloroso ver conculcadas entre nós garantias que custaram a humanidade tantos séculos de lutas e verificar que o sangue dos que morreram para inscreve las nas declarações de Direitos não regou suficientemente o chão da Pátria (17). Assim, mercê da dor dos desaparecidos nas ditaduras, mercê ainda da grita incessante da mídia sob a batuta do movimento de Lei e Ordem, urge que atendamos o convite feito pelo Conselho Diretivo do IBCCRIM na RBCC vol. 25, pag. 4, de forma que, em cada rincão, em cada trincheira, em cada gabinete, venhamos a operar o direito sob o impacto do Garantismo, do Direito Penal Mínimo, do Humanismo, meu Deus, por incrível que possa parecer, operarmos o direito no sentido de volvermos a Beccaria e ao homem como epicentro de gravidade do Direito Criminal, até que tenhamos “não um melhor Direito Penal, mas algo melhor do que o Direito Penal.” (18)

NOTAS

(1) Seixas Santos Justiça Sisuda e Jocosa, Ed. Leud, ano 1984, pag. 19.

(2) Hélio Tornaghi Instituições de Processo Penal, Ed. Saraiva, ano 1977, vol. 02, pag. 256.

(3) Sepúlveda Pertence RT 754/533.

(4) Sérgio Pitombo Inquérito Policial Exercício do Direito de Defesa, Boletim IBCCRIM nº 83, Edição Especial.

(5) Joaquim Canuto Mendes de Almeida Princípios Fundamentais do Processo Penal, Ed. RT, ano 1973, pag. 212.

(6) Amilton Bueno de Carvalho Direito Alternativo, Ed. Síntese, ano 1998, pag. 16.

(7) Hannah Arendt, Apud Celso Lafer A Ruptura Totalitária e a Reconstrução dos Direitos Humanos, Ed. Autor, ano 1988, pag. 242.

(8) Hannah Arendt, Apud Celso Lafer A Ruptura Totalitária e a Reconstrução dos Direitos Humanos, Ed. Autor, ano 1988, pag. 242.

(9) Fauzi Hassan Chouke Garantias Constitucionais na Investigação Criminal, Ed. RT, ano1995, pag. 98.

(10) Júlio Fabbrini Mirabete Código de Processo Penal Interpretado, Ed. Atlas, ano 1999, pag. 56.

(11) Joaquim Canuto Mendes de Almeida O Direito de Defesa no Inquérito Policial, RF 173/26.

(12) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho O Sigilo do Inquérito Policial e os Advogados, RBCC, vol. 18/131.

(13) Antônio Gomes Duarte Do Inquérito à Denúncia, Ed. Cejup, ano 1996, pag. 44.

(14) Voltaire, in Amilton Bueno de Carvalho Direito Alternativo, Ed. Síntese, ano 1998, pag. 115.

(15 ) Padre Antônio Vieira Sermão da Quarta-feira de Cinza, § III, ano de 1672.

(16) Renato de Oliveira Furtado Direito à Assistência de Advogado no Inquérito Policial Breves Considerações ao art. 5º, nº 63 da C. F. RT 695/297.

(17) Hélio Tornaghi Instituições de Processo Penal, Ed. Saraiva, ano 1977, vol. 02, pag. 255.

(18) RADBRUCH, citado por Lycurgo de Castro Santos – A Prisão, o Perdão e a Lei nº 9.099/95 in Boletim IBCCRIM nº 48/12.

*Renato de Oliveira Furtado
Advogado no Estado de Minas Gerais

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