Autores: Ademir Antonio Pereira Júnior, Maurílio Monteiro de Abreu, José Del Chiaro e Luiz Felipe Rosa Ramos (*)
Dois mil e quinze foi um ano marcado não apenas pela complexidade dos desafios futuros, mas também pela necessidade de lidar com um legado de decisões do passado. Por um lado, foram implementadas medidas normativas, informativas e institucionais que dialogam com o futuro. Por outro lado, o Cade enfrentou diversos processos judiciais que discutiram a atuação do órgão em importantes casos do passado.
Tais circunstâncias vieram a se somar ao já demandante cotidiano do Cade, que contou, neste ano, com importantes resultados no âmbito do controle estrutural e no de condutas.
Desafios do futuro
Resoluções: contratos associativos e consultas
O ano no Cade se iniciou com a entrada em vigor da Resolução 10/Cade (publicada em 2014), que disciplina as hipóteses de notificação obrigatória de contratos associativos. A resolução visava diminuir as incertezas e especificar quais modalidades de contratos devem ser notificados ao Cade como ato de concentração. Decisões importantes foram proferidas em 2015, mas uma maior segurança jurídica depende ainda de evolução jurisprudencial.
Outro tema que demandava maior clareza foi disciplinado pela Resolução 12, de março de 2015, que regulamentou a hipótese de consultas ao Cade, conforme o artigo 9º, parágrafo 4º, da Lei 12.529/2011. As consultas poderão versar sobre (i) interpretação da legislação ou regulamentação do Cade relativa a atos de concentração, (ii) licitude de condutas já iniciadas pela consulente e (iii) licitude de condutas planejadas, mas ainda não iniciadas. A decisão se torna vinculante por 5 anos, podendo o Cade rever seu posicionamento antes desse prazo, vedada, no entanto, a aplicação retroativa do novo entendimento. Se a consulta versar sobre conduta já iniciada e existirem indícios de ilicitude, o Cade determinará a conversão em procedimento para apurar infrações à ordem econômica.
Guias
Em 2015, o Cade publicou guias sobre diversos assuntos de grande importância para a previsibilidade dos agentes submetidos à legislação concorrencial.
Um deles é o “gun jumping” (consumação de ato de concentração antes de autorizado pelo Cade), também objeto de resolução que fixou os termos do procedimento para sua apuração[1]. O Guia para análise da consumação prévia de atos de concentração econômica deu subsídios para que os agentes procedam de modo a diminuir os riscos de gun jumping, além de aclarar as consequências administrativas da prática.
O Guia programas de compliance, ainda em versão preliminar para discussão, representa um avanço no sentido de orientar as companhias acerca (i) das práticas recomendadas para evitar, detectar e colaborar com as autoridades sobre possíveis infrações concorrenciais e (ii) dos benefícios decorrentes da estruturação de um programa de compliance efetivo, inclusive do ponto de vista do seu impacto na dosimetria da pena em caso de condenação em processo administrativo no Cade.
Também se encontra disponível versão preliminar do Guia do Programa de Leniência, estruturado na forma de respostas a algumas das perguntas mais comuns sobre o tema, havendo sinalização de que outros guias, sobre TCCs e remédios concorrenciais, serão publicados.
Relação institucional
A operação “lava jato” expõe com maior intensidade questões institucionais há muito presentes e que dizem respeito à multiplicidade de (i) normas, (ii) autoridades envolvidas e (iii) programas de delação aplicáveis a uma mesma conduta. No plano criminal, a colaboração premiada é elencada entre os meios de obtenção de prova na Lei 12.850/2013. Na esfera anticorrupção, a Lei 12.846/2013 prevê a possibilidade de acordo de leniência entre pessoas jurídicas e a Controladoria-Geral da União. No campo antitruste, a Lei 12.529/2011 estabelece como critérios para acordos de leniência a colaboração com a investigação, a identificação dos demais envolvidos, a apresentação de informações e documentos que comprovem a infração, a empresa ou o indivíduo ser o primeiro a se qualificar, a cessação da prática, a indisponibilidade de provas sobre a conduta e a confissão da participação. Os benefícios são a extinção da ação administrativa do Cade, quando este não tiver conhecimento prévio sobre a infração, ou a redução de 1 a 2/3 das penas aplicáveis, nas demais hipóteses. O outro benefício é a imunidade criminal para as pessoas físicas signatárias do acordo, dado que sua celebração impede o oferecimento de denúncia pelo MP em relação aos beneficiários da leniência.
A “lava jato” tem sido um teste institucional sobre essas questões, diante da necessidade de coordenar esforços entre as diferentes autoridades e os distintos programas de delação. Existem razões para otimismo. A CGU, assim como o Cade, é um órgão técnico, com corpo de servidores próprio e competência definida. O diálogo tem tudo para se manter frutífero. Em relação ao MP, a coordenação entre este e o Cade é uma das responsáveis pelo sucesso do programa de leniência antitruste. Por outro lado, em face de diferentes programas a serem aplicados a um mesmo fato delituoso, uma aplicação não harmônica pode gerar desincentivos à negociação e celebração de leniência com todas as demais autoridades.
Informatização
Outra iniciativa importante implementada a partir de janeiro de 2015 foi o sistema eletrônico de acompanhamento de processos e de notificação digital de atos de concentração. Tal sistema ampliou a transparência dos atos processuais do Cade e o livre acesso de seu conteúdo público a qualquer pessoa que acesse o sítio eletrônico do Cade. O sistema aproximou os administrados, reduzindo os gastos com expedientes e deslocamentos. Não à toa, o esforço do Cade foi reconhecido e laureado com prêmio de boas práticas da CGU.
Discussões judiciais de decisões pretéritas
O ano de 2015 trouxe importantes alertas sobre a necessidade de que o Cade não se descuide da garantia de direitos processuais, tampouco de uma valoração cuidadosa de provas e análise do mérito em suas condenações. Casos de repercussão na história de condenações do Cade foram revisados pelo Poder Judiciário.
Em meados deste ano, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região manteve, por unanimidade, sentença que anulou condenação aplicada pelo Cade a 21 laboratórios farmacêuticos por alegado cartel e boicote à entrada de medicamentos genéricos no Brasil. A sentença de primeira instância havia decidido pela total ausência de lastro real na decisão proferida pelo órgão antitruste. A decisão apontou ainda que o Cade falhou em não trazer a Abifarma ao polo passivo e em não ter promovido a individualização da conduta de cada representante dos laboratórios[2].
Juiz da 3ª Vara Federal de Brasília determinou, por sua vez, a anulação da decisão do Cade nos autos do PA 08012.001271/2001-44, que aplicou multa à SFK do Brasil Ltda. por fixação de preços de revenda em sua cadeia de distribuição de rolamentos automotivos e industriais (AO 0019858-80.2013.4.01.3400 – Segredo de Justiça).
A Justiça Federal em Brasília anulou, ainda, multa aplicada pelo Cade de R$ 1,76 bilhão à White Martins, por suposta formação de cartel de gases industriais e medicinais. Também haviam sido condenados IBG, Air Liquide e Air Products[3]. De acordo com a juíza da 9ª Vara Federal de Brasília, as provas que sustentavam a decisão são ilícitas, porque foram coletadas após interceptações telefônicas com base em denúncias anônimas[4].
Por fim, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região anulou multa aplicada pelo Cade em processo que considerou ilegal a Taxa de Segregação e Entrega de Contêineres, conhecida como THC-2 por operadores portuários do porto de Santos[5]. O voto condutor enfatizou que a legislação brasileira qualificou a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) como responsáveis pela fixação das tarifas e definição da atuação do operador portuário. Não caberia ao Cade considerar ilegal uma tarifa entendida como válida por dois órgãos reguladores específicos.
Também em 2015, o Cade celebrou termo de acordo judicial com a Ambev, pondo fim a uma ação anulatória na Justiça Federal do Distrito Federal que questionava as penalidades aplicadas em agosto de 2009, em virtude do programa de fidelidade denominado “Tô Contigo”. Pelos termos do acordo firmado, a Ambev deverá recolher contribuição pecuniária no valor de R$ 229,1 milhões ao Fundo de Direitos Difusos (FDD), de forma parcelada.
Resultados do presente
TCCs e combate a cartéis
Em 2015, o CADE celebrou 62 Termos de Compromisso de Cessação (TCCs) que resultaram na arrecadação ainda não consolidada de R$ 513 milhões aos cofres do Fundo de Direitos Difusos do Ministério da Justiça. Esse valor representa um aumento significativo em relação ao valor arrecadado em 2014, estimado em R$ 190 milhões. Um dos destaques é o TCC firmado pela Construções e Comércio Camargo Corrêa S.A. no escopo da operação “lava jato”, com contribuição pecuniária de R$ 104 milhões[6]. Outros TCCs foram firmados em investigação de cartel em licitações de medidores de energia elétrica, que foi seguida por investigação no mercado de hidrômetros.
Em sede de Processos Administrativos sancionadores, é digno de nota o julgamento do Processo Administrativo 08012.001273/2010-24, pela condenação de empresas por cartel em licitações no mercado de equipamentos para aquecimento por energia solar. O caso se destaca por ter sido baseado em provas indiretas, a saber, pelo comportamento das empresas envolvidas dentro do mecanismo de propostas e negociações das licitações.
Fixação de preços de revenda
No ano de 2015, o Cade concluiu o julgamento iniciado em 2014, e condenou a Shell/Raízen por uniformização de preços e condições de operação de postos de combustíveis sob sua bandeira em municípios do interior paulista[7]. O julgamento ficou marcado por uma discussão sobre o meio de provas envolvendo a conduta de fixação se preços de revenda. O Cade entendeu que a análise da conduta de fixação de preços de revenda deve abranger a estrutura contratual e de relacionamento comercial de fabricantes com seus distribuidores sob a regra da razão. Como resultado dos votos, houve aplicação de multa de R$ 59,6 milhões para a Shell e 30 mil UFIRs para as pessoas físicas envolvidas.
Sham litigation
Os casos de sham litigation têm ganhado tratamento e atenção especial, com a consolidação dos critérios para sua análise.
A Eli Lilly foi condenada por abuso do direito de petição com efeitos lesivos à concorrência. Segundo a decisão, por meio de ações judicias, a empresa teria obtido a exclusividade na comercialização de medicamento de tratamento de câncer de princípio ativo “cloridrato de gencitabina”[8](Gemzar). A Eli Lilly teria omitido dados relevantes, o que lhe possibilitou obter decisão judicial favorável. A empresa foi condenada em multa de R$ 36,6 milhões e iniciou ação judicial para questionar a decisão do Cade.
Propriedade Industrial e Direito da Concorrência
Neste ano, o Cade examinou o primeiro caso envolvendo ações judiciais para proteção de patentes essenciais a standards tecnológicos. Esse tema tem sido debatido com frequência em vários países nos últimos anos, e o Brasil tem agora sua primeira decisão. A partir de representação da TCT Mobile Ltda. contra a Ericsson, o Cade iniciou uma investigação em 2014 para verificar se a Ericsson teria abusado de alegada posição dominante como detentora de patente essencial para impor valores de royalty injustos à TCT, o que constituiria estratégia de holdup de patente. Após 8 meses de investigação, a Superintendência-Geral concluiu pelo arquivamento do procedimento em meados de 2015[9] e proferiu decisão que estabelece os parâmetros para análise desse tipo de questão. Essa decisão está alinhada com as melhores práticas internacionais e destaca que (i) é legítima a propositura de ações para fazer cessar a violação de patentes legitimamente obtidas; (ii) é razoável recorrer a ações judiciais para proteger patentes essenciais quando negociações para licenciamento se revelaram infrutíferas; (iii) o Direito da Concorrência não deveria intervir em disputas comerciais privadas e que não tenham objeto exclusionário.
Condutas unilaterais
Ainda no campo das condutas unilaterais, merecem destaque dois casos envolvendo práticas discriminatórias e imposição de dificuldades à entrada de concorrentes.
No primeiro, o Tribunal do Cade, em decisão por maioria, decidiu no Processo Administrativo 08012.003918/2005-04, pela condenação da Telemar Norte Leste S.A. por abuso de posição dominante. A prática, ocorrida no ano 2000, teria se materializado por monitoramento das chamadas para o call center da Vésper, sua concorrente e então entrante no mercado de telecomunicações. A Telemar foi condenada ao pagamento de multa no valor de R$ 26 milhões.
Destaca-se ainda o TCC com as empresas Rumo Logística e Cosan S/A no âmbito do Inquérito Administrativo 08700.0011102/2013-06, que apurava práticas de açambarcamento e aumento de custos de rivais no mercado de prestação de serviços de logística ferroviária. Em razão do ACC firmado em Ato de Concentração das empresas ALL Logística e Rumo Logística, com previsões para acesso isonômico de concorrentes à malha ferroviária, o TCC se limitou à contribuição pecuniária, de R$1,531 milhão.
Controle de atos de concentração
No âmbito do controle de concentrações, o Cade consolidou a imagem de agência estruturada para oferecer resposta rápida e eficaz sobre atos de concentração.
No Ato de Concentração 08700.006567/2015-07, que tratou da aquisição da Rexam PLC pela Ball Corporation, o Cade foi a primeira autoridade no mundo a concluir a análise da operação. A aprovação foi condicionada ao cumprimento de medidas estruturais e comportamentais previstas em ACC.
De modo similar, no início do ano, um caso de grande vulto para a infraestrutura brasileira foi objeto de escrutínio da autoridade antitruste: a incorporação de ações da América Latina Logística S.A. (ALL) pela Rumo Logística e Operadora Multimodal S.A. (Rumo). A aprovação do ato de concentração (AC 08700.005719/2014-65) foi condicionada ao cumprimento de detalhadas medidas comportamentais estabelecidas em ACC para garantir tratamento isonômico aos usuários da ferrovia.
A compra da totalidade das quotas do capital da Condor Pincéis Ltda. pela Tigre S.A. – Tubos e Conexões (Ato de Concentração 08700.009988/2014-09) foi reprovada pelo Cade, no único caso de reprovação em 2015. De acordo com o órgão, a operação afetaria mercados que já contam com número reduzido de players e resultaria em concentração de 70% do market share. Os remédios sugeridos pelo CADE para a operação não foram aceitos pelas partes.
Agenda para 2016
Em 2015, a composição do Tribunal do Cade foi substancialmente alterada com a chegada de quatro novos Conselheiros. Em 2016, terá fim o mandato do presidente Vinícius Marques Carvalho e o Cade deverá conhecer novo líder. Essa nova composição será responsável por enfrentar assuntos de extrema relevância junto com a Superintendência-Geral. Dentre esses temas, incluem-se, por exemplo, a necessidade de (i) conclusão dos guias e resoluções atualmente em debate; (ii) aperfeiçoar a jurisprudência aplicável em casos de contratos associativos; (iii) promover mais integração com Controladoria-Geral da União, Ministérios Públicos (federal e estaduais) e Polícia Federal, com vistas a obter evidências de práticas cartelizantes e ações conjuntas; (iv) reformular sua estrutura para dedicar mais recursos e pessoal ao exame de condutas unilaterais, que permanecem sendo objeto de processos de duração além do razoável e com análises que merecem ser melhor desenvolvidas.
Por fim, vale notar que ano deve ter início com casos relevantes sendo debatidos, tais como a joint-venture entre Record, RedeTV e SBT para licenciamento de seus canais e a investigação do suposto cartel envolvendo a operação “lava jato”.
[1] A resolução 14 também trata da hipótese do parágrafo 7 º do artigo 88, a saber, atos de concentração que não se enquadrem no critério de faturamento previsto nos incisos do caput do artigo 88, mas cuja notificação seja requerida pelo Cade.
[2] Os autores esclarecem que representaram uma das companhias na ação judicial contra o Cade.
[3] Ação Ordinária 004916062.2010.4.01.3400
[4] Os autores esclarecem que representaram uma das companhias no processo administrativo perante o Cade.
[5] Esclareça-se que alguns dos autores representaram um dos operadores portuários no processo administrativo perante o Cade.
[6] Inquérito Administrativo 08700.002086/2015-14, cujo trâmite processual está sob sigilo no Cade.
[7] Processo Administrativo 08012.004736/2005-42.
[8] Processo Administrativo 08012.011508/2007-91
[9] Procedimento Preparatório 08700.008409/2014-00. Os autores esclarecem que representaram a Ericsson no processo perante o Cade.
Autores: Ademir Antonio Pereira Júnior é advogado da Advocacia José Del Chiaro.
Maurílio Monteiro de Abreu é advoqado da Advocacia José Del Chiaro.
José Del Chiaro é Sócio-fundador da Advocacia José Del Chiaro.
Luiz Felipe Rosa Ramos é advogado e membro da Advocacia José Del Chiaro.