O baixo nível de proposição legislativa no Congresso

A criminalidade cresceu muito, mas muito menos que o interesse da classe média, fomentada pela mídia, sobre o assunto.

O Secretário Nacional de Direitos Humanos informa que uma das polícias que mais mata no mundo todo é a brasileira. Armas. Nem por isso estamos protegidos dos efeitos nefastos da fúria criminosa. Armas e reação. Sem minimizar a vulnerabilidade a que estamos submetidos, salta aos olhos o dado emblemático de que a informação de massa, notadamente a televisiva, multiplicou em muito o tempo de exposição dedicado à delinqüência. Armas, reação e desinteligência: uma corrosão descontrolada. Mas, vá lá, em consonância com o inciso IV, do artigo 5º da Constituição Federal, que diz que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.

O mal é a mudez imposta a quem foge do discurso padrão. Só a unanimidade presta. Armas, desinteligência, reação e liberdade relativa. O show de horrores é focado na produção laborativa das organizações criminosas, mas também na criminalidade ocasional e episódica. Tragédias familiares. É uma especiaria – quanto mais exótica mais aprazível — à feijoada completa da tragédia nacional: o crime organizado. A criminalidade cresceu muito, mas muito menos do que o interesse da classe média sobre o assunto. Não é por acaso. Persignados, prestamos reverência ao caos. O sangue é desejado e querido.

O filme Tiros em Columbine, Oscar de melhor documentário do ano palpitante em vários aspectos da violência urbana que aborda, joga na tela este provocativo de reflexão. O diretor do filme, Michael Moore, apenas sabe dizer o que sente, e sente o que diz. É eficiente e sincero. Numa palavra, honesto. Honesto como aquele policial em início de carreira que ganha mil reais por mês. Este, muitas vezes, não agüenta manter seu propósito, se não, não prospera. O documentarista não mora na casa do chapéu. Está livre para questionar: a quem interessa o nosso pânico? Indústria farmacêutica, bélica, aço, cimento, monitores de TV, câmeras, cabos, cobre, agentes de segurança, carros blindados. Produção. Ora essas! O mundo está em recessão! Empregos!

No Brasil, queremos segregar o delinqüente não mais por apenas 30 anos. Será o máximo de 40 o tempo de pena privativa de liberdade a que poderá ser submetido um cidadão. Tem um deputado que queria 50 anos. É o Fleury. Paulista, estudado, bonachão, sob o governo de quem São Paulo fuzilou seus presos. É deprimente a irreconciliabilidade com a vida. Já que não se pode matar, 40 anos são suficientes para esquecermos o facínora da vez. Ligeira amostra do baixo nível de proposição legislativa da bancada do terror. Repousam tranqüilos, com a consciência do dever cumprido, entorpecidos pelo fracasso que lhes subiu à cabeça. Uma promotora de Justiça histérica aqui, um juiz omisso lá, um advogado garimpando a malandragem no caos ali, um radialista urrando, Vagabundo, vagabundo!!! Uma escória pervertida.

De outro lado, felizmente para todos nós, há gente responsável assentada no Congresso Nacional. A reflexão cotidiana a partir de uma rotina de trabalho que não se esgota na frieza do texto legal, aponta, de indicador em riste, para uma realidade de justiça que brada que a prisão é um mal, uma excrescência, um desastre. A cadeia é o monumento que erguemos em louvor ao nosso próprio fracasso. Jaula não serve nem pra bicho, mas convencionou-se dizer que o povo quer punição severa. A falta de criatividade e o desconhecimento das alternativas já pensadas e já legisladas levam ao equívoco de que punição severa é punição privativa de liberdade. As penas restritivas de direitos, a prestação de serviços à comunidade, as multas pesadas não são nem cogitadas. É um deserto. A sinapse morreu desmilingüida.

O nosso povo, tangenciado assim, não vivencia o problema da criminalidade sob outro ângulo que não seja o cortado pela comunicação de massa. O analfabeto que se diverte com uma cervejinha depois de duas horas de ônibus indigente e relaxa assistindo programa de péssima qualidade no seu pouco horário de lazer, jamais vai conseguir entender que alguém possa ser condenado a freqüentar uma escola. É pau neles. E muita risada.

A TV controla o povo, a TV é controlada pela economia, a economia reclama produção, produção carece de demanda e a demanda é o povo. A prisão perpétua e a execução sumária são unanimidades. O linchamento é a festa. Não estamos dando Tiros em Columbine. Nem jogando boliche como aqueles garotos que chacinaram meia escola no sul do Estados Unidos. Somos uns palhaços e o nosso esporte é dar pedrada no Arlequim. E agora a mídia começa a difundir que o consumidor de droga deveria pôr a mão na consciência, refletir ou virar crente, já que é ele quem incentiva o tráfico.

Justo agora que na concha legislativa finalmente ecoa a idéia da descriminalização do usuário. Garotada, não pode fumar pedra! Paradoxalmente, o Governo pretende dar um cavalo-de-pau no projeto que limita a propaganda de bebida alcoólica. Produção, lembra? Propaganda. Quem não pode com uísque pode tomar um zoloft com gelo. Três pedrinhas, por favor. A indústria farmacêutica agradece. Mesmo porque — violência!!!violência!!!violência!!! —, não temos uma política claramente restritiva à venda de armas.

Miséria, analfabetismo, incentivo maciço à bebedeira, cadeia para o consumidor de qualquer outra droga. Unanimidade. Hipocrisia. Escravidão. Armas. Muito sangue, gargalhada e cerveja. Receita do Comando Vermelho. Um Salve para a bandidagem

Luiz Fernando Sá e Souza Pacheco é advogado criminalista, sócio do Ráo, Cavalcanti & Pacheco Advogados, conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e membro do Movimento Antiterror.

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