por João Antonio Wiegerinck
Como se nota, propositalmente intitulamos o artigo Tripartição do Poder, e não dos Poderes. A opção se explica com base na origem do objeto em estudo.
Montesquieu foi mal interpretado por seus opositores no ápice das ondas iluministas que banharam a obra O Espírito das Leis, quando estes entenderam a tripartição de competências como sendo uma divisão do próprio Estado, no sentido de ente político, ainda que abstrato, uno. Não faltou crítica ao trabalho magistral.
Condorcet defendia que “A interdependência do Poder impede sua separação.”; Comte ensinava “O Estado Forte depende de um Poder Absoluto centralizado e concentrado.”; Duguit preconizava “O Poder deve ser Uno, positivado e sua separação seria uma artificialidade.”; para Jellineck, “A concepção é inaceitável e a aplicação irrealizável.” e, finalizando o presente rol, temos Malberg – “A divisão do Poder paralisaria o Estado.”
Uma variante apresentada por este último, defendia um Poder unificado com diferentes níveis de funções, ou uma graduação de Poder com a função legislativa encabeçando as demais. Entretanto, como podemos notar nas experiências constitucionais até os dias de hoje, prevaleceu a idéia de Montesquieu.
De fato, o Estado em si é indivisível enquanto pessoa jurídica de direito público internacional. O que se pretendeu à época foi a divisão de tarefas estatais especializadas de tal forma que as relações sociais, cada vez mais complexas, não sofressem prejuízo com eventual inércia em termos de ações e decisões oriundas de uma única fonte, o Estado centralizado.
O que se discute quanto ao título, portanto, é o emprego da palavra Poder em lugar de Função. Parece-nos correto afirmar que a Tripartição do Poder, é a divisão do Poder do Estado em Legislar, Administrar e Julgar. Assim, mais conexo com a realidade estaria o emprego da expressão Separação das Funções do Estado, e não dos Poderes.
O Estado é uno e exerce poder. O Poder é exercido por três órgãos distintos na essência de suas Funções Originárias, ou seja, cada qual nomeado pela função para a qual foi criado. Excepcionalmente, exerce cada órgão, de forma derivada, a função originária do outro.
Dentro da breve consideração acima encontramos tanto as bases da independência dos chamados Poderes, traduzidas por funções típicas ou competências originárias, quanto a harmonia com que devem trabalhar em prol da comunidade, sendo exemplo a possibilidade de exercerem funções atípicas ou derivadas dos demais órgãos.
A estrutura delineada objetiva um Estado adequado às necessidades de seu povo, ou seja, ágil nas emergências, cauteloso nas mudanças políticas e econômicas, presente na vida de seus representados.
Perfeição não existe, seja em esfera pessoal, seja em esfera coletiva. Estados, como indivíduos, cometem erros e aprendem – ou devem aprender – com isso.
Entretanto, chama-nos especial atenção neste artigo a OMISSÃO DO ESTADO EM AGIR, quando tal providência está prevista, positivada, na Constituição Federal. Parece-nos pouco razoável que a chamada independência das funções do Estado justifique a inércia do mesmo em abrigar as necessidades populares.
Ocorrendo lacuna infraconstitucional, a doutrina nomeia tal evento como Inconstitucionalidade por Omissão, e seus instrumentos de denúncia são a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, pertinente ao chamado Controle Concentrado da Constitucionalidade, e o Mandado de Injunção, este conexo ao Controle Difuso da mesma Constitucionalidade.
Em comum, ambos têm como causa de agir a inércia do Estado em legislar ou atuar sobre matéria prevista na Constituição, cuja regulamentação é obrigatória e de sua responsabilidade, ainda que não esteja previsto o prazo para tanto no texto maior.
Do quadro formado, uma polêmica bastante atual se destaca: o caráter dado às decisões do Judiciário, mais especificamente o STF, quanto à omissão aqui descrita. Afinal, estaria o Judiciário extrapolando suas funções quando, provocado em seu dever de tutela, decide no sentido de que o Estado deixou de atuar em sua função legiferante, seja típica ou atípica tal função?
Para que possamos responder, cabe observar a presença do requisito elementar, qual seja: a omissão em foco deve ter previsão constitucional em dispositivo de eficácia limitada, quer dizer, deve ser originário de dispositivo que exige norma infraconstitucional para regulamentar determinado direito.
A nosso ver, pouco importa se a previsão constitucional é fruto do poder constituinte originário ou do poder derivado reformador — o cerne da questão é estar o direito positivado na Carta Maior.
Cabe ressaltar que o verbo empregado é exigir, e não facultar, pois não se trata de dispositivo de eficácia contida. A menção ao dispositivo de eficácia contida tem meramente cunho didático, uma vez que não comungamos da necessidade desta última classificação e ainda menos da sua aplicabilidade constitucional.
Assim, temos que o dispositivo constitucional exige atividade estatal para que determinado direito seja propiciado a quem se destina.
Presente o requisito, vamos remeter a análise da pergunta nuclear à Teoria do Contrato Social de Rousseau, na qual o povo, conjunto de cidadãos, cada qual com sua parcela de soberania, escolhe seus representantes para exercer o Poder. A contrapartida é o exercício responsável deste Poder em nome do bem comum.
Especificando o estudo ao momento presente e ao nosso país, verificaremos que, sendo a Constituição fruto do contrato social firmado, representa a vontade dos eleitores e os deveres dos eleitos. Em estudo contínuo, podemos constatar que os dispositivos constitucionais, todos eles, foram elaborados durante os trabalhos de uma Assembléia Nacional Constituinte, composta exatamente pelos representantes do povo.
Durante seus trabalhos, os parlamentares debateram exaustivamente cada artigo até que se chegasse ao texto final, votado, legitimado e promulgado em 5 de outubro de 1988. Claro está que, fruto de movimento democrático, tais parlamentares não comprometeram o Estado além de suas possibilidades e objetivos originais.
Os mesmos representantes do povo escolheram quais as matérias destinadas a posterior legislação infraconstitucional, responsabilizando o Estado perante a nação, criando a expectativa de direito em relação à regulamentação, sem, com isso, deixar suspenso o direito que o indivíduo tem positivado na Constituição. Vale dizer, não é por falta de norma regulamentadora que deixamos de ter ou exercer o direito a que ela se destina. Para tanto, provocamos as Funções Judiciárias do Estado.
Em decisão histórica em termos de colegiado, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu ter o Judiciário competência para cobrar efetividade nos compromissos assumidos no texto constitucional.
Não se trata, portanto, de ingerência, interferência ou invasão de competência do Judiciário em função legislativa do Congresso Nacional ou, como na decisão citada, na função atípica legislativa e regulamentadora do Executivo. Trata-se, tão somente, de chamar o responsável à promessa explicitada na Constituição, e por óbvio, devida ao povo.
O Judiciário não está criando situação casuística para assim decidir que uma nova norma deve ser criada. Se assim o fosse, estaria a invadir função a qual não lhe pertence, e se observado o objeto, nem o seria de forma derivada ou atípica.
O fato merece destaque porque é um ato de coragem, amparado por respeito à dignidade da pessoa humana, bem este tutelado exatamente pelo STF, na falta de uma Corte Constitucional direcionada aos Direitos Fundamentais e ao exame de Recurso de Amparo, como no caso da Espanha.
O precedente está aberto. É uma esperança que se soma a fim de mudarmos a situação vergonhosa que vivemos em termos de cidadania. Ainda mais vexatória se faz no mundo acadêmico, quando alunos questionam sobre as decisões favoráveis dadas em ADI por Omissão ou Mandados de Injunção as quais reconhecem a inércia do Estado em legislar e notificam o Poder responsável para suprir a anomia inconstitucional – perguntam-nos: “Professor, e o que acontece se o Poder responsável pela produção da norma continuar inerte depois de ser notificado pelo Judiciário?”
Até agora, respondíamos: “Nada. Não existe punibilidade aplicável por conta de discussão doutrinária cujo um dos pólos não aceita a decisão judicial como ordem, não configurando, portanto, a desobediência como crime em caso de continuidade da inércia.”
Ainda que a decisão tenha sido no intuito de fazer cumprir um ato em razão de uma omissão, o mesmo entendimento cabe à produção de normas e regulamentos previstos na Constituição e ainda inexistentes no ordenamento jurídico. Afinal, não se está a exigir o inatingível, deseja-se apenas que o Estado exerça o Poder a ele conferido pelo povo de formar responsável. É o que se deseja para que possamos todos sentir, ao menos um pouco, o que é viver em um país que se preocupa com os direitos fundamentais expressos em sua própria Carta Magna, cuidando de concretizá-los a bem de todos.
Ao término deste, desejamos levar à reflexão a necessidade dos órgãos do Estado que exercem o Poder a eles outorgado, trabalharem realmente em harmonia.
E trabalhar em harmonia não significa trabalhar isoladamente, ou mantendo a boa vizinhança porque “silenciosa e não perturba com seus problemas.” Trabalhar em harmonia é muito mais do que tolerar. Tolerar é conviver sem concordar e sem colaborar. Trabalhar em harmonia é interagir, colaborar, ter paciência com as dificuldades alheias e auxiliar quando possível. Trabalhar em harmonia, enfim, não é invadir competência, mas cooperar para que cada qual exerça a sua com independência e acima de tudo, excelência.
Revista Consultor Jurídico