O bem jurídico e a Constituição Federal

1. O CONCEITO DE BEM JURÍDICO PENAL

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS[1] percebe que a noção de bem jurídico, embora fulcral do Direito Penal, não pôde até hoje ser determinada com segurança capaz de convertê-la em conceito fechado, e talvez jamais venha a ser.

O Direito é objeto cultural, criado pelo homem e dotado de um sentido de conteúdo valorativo. A partir da noção tridimensionalista formulada por MIGUEL REALE[2], verificamos que o fenômeno jurídico é formado por um tríplice aspecto, qual seja fato, valor e norma, integrados em uma unidade funcional e de processo. A Ciência do Direito é uma ciência histórico-cultural que tem por objeto a experiência social, enquanto esta normativamente se desenvolve em função de fatos e valores para a realização da convivência humana.

O Direito é, portanto, dinâmico e não estático, configurando um sistema aberto e não fechado. Assim, a dificuldade da conceituação do bem jurídico deve ser vista não como uma impossibilidade, mas como decorrência da própria natureza do Direito.

Assim, o conceito de bem jurídico igualmente não é estático, mas dinâmico, aberto às mudanças sociais e ao avanço científico. Por isso, o seu conceito é mutável de acordo com a evolução do homem, da sociedade e do Estado.

Da mesma forma, há modificação constante na valoração dos bens jurídicos, de modo a incrementar o movimento de descriminalização e criminalização de condutas e a fixação de penas mais brandas ou mais rigorosas e, ainda, a determinar a utilização de regras processuais diferenciadas conforme a gravidade do delito praticado. São exemplos recentes na nossa legislação a Lei dos Crimes Hediondos, a Lei dos Juizados Especiais Criminais e o Código de Trânsito, mostrando a modificação da valoração dos bens jurídicos de acordo com as mudanças sociais.

O Direito Penal é resultado de escolhas políticas influenciadas pelo tipo de Estado em que a sociedade está organizada. O direito de punir é uma manifestação do poder de supremacia do Estado nas relações com os cidadãos, principalmente na relação indivíduo-autoridade. A situação histórica, portanto, condiciona o conceito de crime e, conseqüentemente, o conceito de bem jurídico e a sua importância para o Direito Penal.

Não poderemos, no entanto, jamais abandonar a necessidade de o Direito Penal proteger as lesões aos bens jurídicos, posto ser uma verdadeira conquista da cidadania. Os iluministas, quando formularam a Teoria do Estado Moderno, impuseram uma série de limitações ao poder estatal, inclusive ao poder de punir, que ficava circunscrito nas mãos dos soberanos, dando causa aos mais diversos desvirtuamentos, servindo para a manutenção dos privilégios e do status quo.

O reflexo dessa escola de pensamento sobre o Direito Penal foi a criação da Teoria do Bem Jurídico, ficando a sanção penal guardada para as condutas descritas na lei penal que violassem os bens jurídicos considerados importantes para a manutenção da própria sociedade.

Dessa forma, não é qualquer lesão a bens jurídicos que acarretará a atuação do Direito Penal, mas apenas aquelas lesões ou ameaças de lesões consideradas relevantes e justificadoras da sanção penal. Passamos, portanto, a encontrar a noção de bem jurídico penal, como aquela espécie de bem jurídico cuja importância fosse considerada vital para a manutenção da sociedade e que é objeto da proteção das leis penais.

Essa noção de bem jurídico penal é verdadeiramente limitadora do poder estatal de aplicar a sanção penal e é uma das garantias fundamentais dos cidadãos, que não poderá ser abandonada em um Estado Democrático de Direito.

O desenvolvimento dessa visão nos dias de hoje consta no Princípio da Ofensividade, pelo qual o Direito Penal somente poderá atuar diante de lesões ou ameaças de lesões aos bens jurídicos penais. Esse princípio, também chamado de intervenção penal mínima, deve ser entendido como uma limitação ao direito de punir do Estado em favor dos cidadãos, uma garantia da cidadania perante a Administração do Estado.

A conduta praticada pela pessoa para acarretar a sanção penal deve lesionar ou ameaçar bens jurídicos penais, aqueles dotados de dignidade penal ou, melhor dizendo, de relevância penal. Essa relevância dá-se por meio da carência da tutela, ou seja, da necessidade da proteção penal do bem jurídico. Caso a proteção possa ser efetuada adequadamente por intermédio dos outros ramos do Direito, como o Direito Civil ou o Direito Administrativo, não deverá haver a intervenção do Direito Penal.

A questão que se apresenta diante da Teoria do Bem Jurídico, hoje desenvolvida por meio do Princípio da Ofensividade ou da Intervenção Penal Mínima, é a seguinte: qual é o conceito de bem jurídico penal? A crítica realizada pelos defensores da Teoria da Imputação Objetiva é válida: a Teoria do Bem Jurídico não oferece conceituação do que seja bem jurídico penal.

O único caminho encontrado foi o positivismo jurídico, que afirma estar o conceito de bem jurídico penal na própria lei penal, ou seja, a criação do bem jurídico penal é feita pela norma jurídico penal.

A visão constitucional defendida hoje por inúmeros doutrinadores em todo o mundo nada mais é do que o desenvolvimento da visão positivista, reconhecendo a criação do conceito do bem jurídico penal a partir das normas jurídicas hierarquicamente superiores às demais, quais sejam aquelas decorrentes da Constituição Federal.

Essa posição dogmática não serve para a conceituação do bem jurídico, mas somente para mostrar quais bens jurídicos são reconhecidos pelo Direito Positivo vigente em determinado momento.

Há uma questão lógica não superada pela visão constitucional: a norma jurídica é apenas um dos elementos da formação do Direito, que não se esgota positivamente.

O conceito de bem jurídico existe anteriormente à norma jurídica, e, portanto, o conceito de bem jurídico penal é anterior à norma penal, ainda que de matiz constitucional.

Pagliaro refuta com precisão a visão constitucional, entendendo que não é possível existir no ordenamento jurídico uma proibição ao legislador ordinário de incriminar condutas ofensivas a valores que, sem serem contrários à Constituição, não tragam seu reconhecimento explícito ou implícito.

Conclui o renomado autor italiano: “E necessario, infatti, lasciare uma certa elasticità alla manovra del legislatore ordinario, in relazione alla possibilità che sorgano esigenze di prevenzione generale e speciale che al tempo della formazione della Costituzione non erano neppure prevedibili”[3].

Em face da rigidez das disposições constitucionais, necessária para assegurar a tranqüilidade jurídica e social do Estado Democrático de Direito, o legislador penal não pode estar limitado ao conteúdo axiológico-constitucional para o reconhecimento de bens jurídicos penais. A rapidez com que ocorrem as mudanças sociais e os valores e necessidades da sociedade de massa contemporânea fazem com que seja recomendável que o próprio legislador penal possa ter espaço próprio para a escolha dos bens jurídicos penais reconhecidos.

Também é essa a posição de FRANCISCO MUÑOZ CONDE e MERCEDES GARCÍA ARÁN, nos seguintes termos:

Debe asimismo advertirse contra una tendencia que pretende identificar bien jurídico protegido penalmente con derecho fundamental reconocido en la Constitución aunque, obviamente, detrás de todo bien jurídico haya un derecho fundamental reconocido cosntitucionalmente. En realidad, un derecho fundamental puede dar lugar a diversos bienes jurídicos, que merezcan distinta proteción penal. (…) el legislador penal está legitimado no solo para seleccionar las distintas acciones merecedoras de penas, sino para marcar los limites de la proteción penal y la diferente protección penal que merece cada uno de ellos, utilizando para ello criterios político-criminales extraídos de las propias formalidades y limites del Derecho Penal[4].

É o próprio legislador penal quem tem a incumbência de determinar a proteção penal, observados os limites do Direito Penal, por meio de critérios político-criminais e não dogmático-constitucionais.

A resposta à questão formulada sobre o conceito de bem jurídico penal somente pode ser dada por intermédio da visão social do bem jurídico, e não da visão exclusivamente positivista.

A perspectiva social do bem jurídico está presente, com importância e destaque variados, ou ainda que de forma incipiente, em todas as suas formulações teóricas, até hoje.

BIRBAUM[5] já concebia que só a totalidade, isto é, a sociedade, e nunca o indivíduo, poderá decidir quais objetos hão de ser abrangidos pela proteção das normas do Direito e que significado ou valor lhes advém como objeto de regulamentação jurídica. Concebe o bem jurídico como valor social suscetível de ser lesado.

BINDING[6], com o seu acentuado positivismo legal, defendia que pode converter-se em bem jurídico tudo que aos olhos do legislador tem valor como condição para uma vida saudável dos cidadãos. O bem jurídico é sempre bem jurídico da coletividade, e somente como bens jurídicos sociais os objetos dos juízos individuais de valor gozam de proteção jurídica.

LISZT[7], com a conceituação predominantemente pré-jurídica, em que os bens jurídicos são interesses protegidos pelo Direito, embora criados pela vida e não pela ordem jurídica, também vê os bens jurídicos como interesses vitais para a comunidade, condições da convivência pacífica e ordenada da vida em sociedade.

Assim, desde a formulação inicial do conceito de bem jurídico, inclusive com a formação da teoria do bem jurídico, o que está sempre presente é a referência sistêmico-social, que vem ganhando importância fundamental em toda a doutrina penal sobre o conteúdo material do ilícito. Inclusive, a Teoria da Imputação Objetiva de Jakobs, que mitiga a importância do conceito de bem jurídico para a doutrina penal, aponta a danosidade social como fundamento para a caracterização penal da conduta, ou seja, utiliza uma perspectiva social funcionalista para justificar a atuação do Direito Penal e reconhece que a formulação do conceito de bem jurídico é um filtro para que a danosidade social da conduta seja reconhecida como penalmente relevante.

Podemos afirmar com COSTA ANDRADE:

Considerações análogas se poderiam fazer a propósito das tentativas mais recentes de substituição do conceito de bem jurídico pelo de danosidade social nos termos do funcionalismo sistémico-social. Uma substituição que valeria quer como fundamento material (e limite) da criminalização, quer para efeitos de definição do objecto da infracção. Também elas acabam – à revelia dos pressupostos metodológicos e dos princípios doutrinais que começam por invocar – por apelar para a referenciação sistémico-social do objecto da infracção, mediatizada pela subjectivização dos pertinentes juízos de valor pelo legislador[8].

Conceituamos, então, o bem jurídico como objeto da realidade, que constitui um interesse da sociedade para a manutenção do seu sistema social, protegido pelo Direito, que estabelece uma relação de disponibilidade, por meio da tipificação das condutas.

Adotamos a perspectiva sistêmica-social como núcleo central do conceito de bem jurídico, sem abandonar a referência normativa mediante a qual o Direito atua, especificamente no que se refere ao Direito Penal, por meio do tipo, que é uma estrutura protetora tanto da sociedade quanto do indivíduo, uma vez que tutela bens jurídicos considerados imprescindíveis para a vida social, assim como estabelece os limites da atuação penal do Estado, principalmente naquilo que não foi objeto de tipificação, garantindo aos indivíduos a sua liberdade.

Na feliz expressão de MANOEL DA COSTA ANDRADE: “O tipo legal vale pelo que incrimina e, nessa medida, protege; como vale outrossim pelo que não incrimina e, nessa medida, igualmente protege”[9].

O tipo penal também estabelece uma relação de disponibilidade que é inerente ao bem jurídico, ou seja, a possibilidade de fruição, de uso pelas pessoas dos objetos da realidade que são os bens jurídicos penais.

Os objetos da realidade são convertidos em bens por intermédio de uma consciência valoradora que decide sobre o seu significado para a regulamentação jurídica. Essa eleição de bens jurídicos é realizada pelo sistema social, de acordo com a danosidade social das condutas, sendo seu próprio beneficiário, ou seja, há uma aferição social de bens jurídicos, tendo em vista a própria existência do sistema social.

Apontamos como critério de aferição social de quais bens jurídicos deverão ser considerados bens jurídicos penais a relevância do objeto para o funcionamento do sistema social, que se traduz na necessidade da sua tutela penal.

Aquilo que puder ser adequadamente tratado por outros ramos do Direito, como o Direito Civil ou Administrativo, não deve ser objeto de tutela penal. A criminalização de condutas deve ser criteriosa, para garantir a eficácia das sanções penais e, assim, garantir o próprio sistema social.

2. AS FUNÇÕES CONSTITUCIONAIS EM RELAÇÃO AO BEM JURÍDICO PENAL

Vamos analisar as questões relativas às funções e às normas constitucionais em relação à escolha dos bens jurídicos penais por parte do legislador ordinário, uma vez que já firmamos posição no sentido de que não há vinculação sobre o legislador no que se refere aos bens constitucionalmente relevantes, não sendo função da Constituição instituir um conjunto axiológico de bens a serem tutelados pelo Direito Penal.

As disposições constitucionais, entretanto, são de extrema relevância para todo o Direito, por se tratar de normas hierarquicamente superiores no sistema normativo, em especial para o Direito Penal, que está limitado pelas garantias constitucionais aos indivíduos.

2.1. A função limitadora

Entendemos que a Constituição Federal não tem por função a criação axiológica de um sistema no qual possamos depreender bens jurídicos, mas exerce importante papel de limitação da perspectiva social do bem jurídico, estabelecendo os princípios normativos que deverão nortear o legislador penal na tipificação das condutas.

A Constituição, conforme lição de CANOTILHO[10], deve ser vista como uma “ordem-quadro”, ou seja, uma ordem fundamental do Estado e da sociedade, devendo instituir “princípios relevantes para uma sociedade aberta bem ordenada”, definindo uma “ordem essencial constitucional básica”, capaz de recolher as tensões da integração comunitária e o pluralismo social, econômico e político.

Dentre as funções da Constituição não se inclui o estabelecimento de bens jurídicos penais, mas sim a limitação do poder, por ser a “lei superior”, vinculando juridicamente os titulares do poder estatal. Realiza, então, a sua “função garantística” dos direitos e liberdades inerentes ao indivíduo e preexistentes ao estado[11].

A Corte Constitucional italiana decidiu exatamente nesse sentido a respeito da questão posta em análise sobre as funções e o papel da Constituição, nos seguintes termos citados por MARINUCCI-DOLCINI:

La Corte costituzionale ha infatti affermato che la Costituzione ha sì posto “il principio della più stretta riserva di legge in materia penale”, ma “in nessun modo” ha vincolato “il legislatore al perseguimento di specifici interessi”: come ha sottolineato lo stesso massimo sostenitore della teoria in esame, la Corte si è sempre astenuta dal sindacare, salvo il limite della incompatibilità, l’oggetto prescelto di tutela[12].

Essa interpretação constitucional realizada pela Suprema Corte italiana deve ser a mesma em relação à nossa Constituição Federal, que estabelece diversos princípios e normas garantidoras do indivíduo, em relação ao poder de punir criminalmente do Estado, mas se abstém de indicar ou controlar os objetos escolhidos para a tutela penal, salvo no limite da incompatibilidade, ou seja, o legislador ordinário não poderá de nenhuma forma afrontar os princípios e normas constitucionais, mas tem liberdade para a escolha dos bens jurídicos penais.

As limitações que a Constituição Federal estabeleceu para o legislador penal estão previstas no art. 5.º, como direitos e garantias individuais e coletivos. Referimos como exemplos os seguintes princípios basilares do Direito Penal:

1.º) Princípio da legalidade estabelecido no inc. XXXIX, da seguinte forma: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

2.º) Princípio da irretroatividade da lei penal estabelecido no inc. XL: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

3.º) Princípio da responsabilidade pessoal disposto no inc. XLV: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação de perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.

4.º) Princípio da presunção da inocência disposto no inc. LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

5.º) Princípio da individualização da pena, determinado no inc. XLVI: “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição de liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”.

A doutrina italiana também é amplamente majoritária nesse sentido, de que o poder discricionário do legislador ordinário na escolha dos bens a tutelar penalmente não está vinculado ao âmbito dos bens constitucionalmente relevantes, mas encontra um limite intransponível nos princípios ou direitos de liberdade garantidos pela Constituição[13].

O legislador ordinário não pode proteger bens incompatíveis com a Constituição, como o racismo, as discriminações por motivo de sexo, crença, religião, consciência etc., que são objeto dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, constitucionalmente protegidos.

2.2. As obrigações constitucionais expressas de tutela penal

A Constituição Federal, além de impor limites ao legislador ordinário na escolha dos bens jurídicos penais, impõe ao legislador penal a obrigação de incriminar a ofensa de determinados bens jurídicos ou determina a exclusão de benefícios, ou até mesmo a espécie de pena a ser aplicada em certos crimes.

O art. 5.º da Magna Carta traz diversas obrigações de incriminar ao legislador ordinário, nos seguintes termos:

Art. 5.º (…)

XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais;

XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

(…)

As normas supra-referidas significam que a Constituição Federal antecipou-se ao legislador ordinário na valoração político-criminal de certos bens jurídicos, que normalmente seria tarefa deixada à legislação infraconstitucional.

Isso ocorreu, primeiramente, em virtude das razões históricas existentes no momento em que a Assembléia Nacional Constituinte elaborava a Magna Carta. A democratização do País e o desejo de evitar o retorno do regime de exceção do período da ditadura militar e das práticas que levaram à ruptura política no País fizeram com que o constituinte determinasse a punição criminal de condutas que atentassem contra direitos e garantias individuais e o regime democrático, de condutas de terrorismo etc.

Outro motivo para a opção constitucional é a estrutura econômico-social do País, a qual fez com que a Constituição determinasse a punição rigorosa do racismo, do tráfico de entorpecentes e dos crimes hediondos como forma de ressaltar a resposta que a nossa sociedade democrática deve dar a tais condutas.

Essa dinâmica, fruto de desigualdades econômicas e sociais acentuadas, também é a razão para as determinações constantes dos arts. 225, § 3.º, e 227, § 4.º, da Constituição Federal, com a seguinte redação:

Art. 225. (…)

§ 3.º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

(…).

Art. 227. (…)

§ 4.º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

(…).

A proteção ao meio ambiente e à infância e juventude é considerada interesse difuso, que merece atenção especial em face dos abusos do poder econômico e dos desequilíbrios sociais de nossa atualidade. Também o futuro da sociedade é protegido, com a preservação ambiental para as gerações futuras e a tutela da criança e do adolescente vistos como pessoas em desenvolvimento e que serão os futuros cidadãos do País. Então, a importância desses interesses para a sociedade fez com que a Constituição determinasse a proteção criminal.

O critério pelo qual são impostas as obrigações constitucionais não é outro senão a relevância do bem jurídico, que se traduz na necessidade da sua tutela penal.

A questão que resta para ser discutida é a força vinculante das obrigações constitucionais de incriminação.

São três as possibilidades para análise: a primeira é a existência anterior de legislação penal incriminadora, que será recepcionada pela Constituição; a segunda é a hipótese de inexistir legislação penal a respeito do bem tutelado pela obrigação constitucional, com a omissão do legislador em cumprir o mandamento constitucional; a terceira, também com a inexistência da legislação penal, mas com o cumprimento por parte do legislador da obrigação constitucional.

1.ª) Caso exista anteriormente a lei penal incriminadora, sendo recepcionada pela Constituição, as normas constitucionais terão eficácia imediata naquilo que modificarem a legislação anterior, e a força vinculante impedirá eventual tentativa de descriminalização das condutas, tratando-se de norma inconstitucional qualquer uma que não esteja de acordo com o mandamento constitucional de criminalização.

2.ª) Inexistindo a legislação penal incriminadora, na hipótese de omissão do legislador, a Constituição estabelece a ação de inconstitucionalidade por omissão, no art. 103, § 2.º , nos seguintes termos:

Art. 103. (…)

§ 2.º Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.

A intenção constitucional é conceder plena eficácia para as suas normas, assim, a ação de inconstitucionalidade por omissão vem permitir a concessão de eficácia para aquelas normas que dependem de complementação legislativa, portanto atingem as normas constitucionais de eficácia limitada de princípio institutivo e de caráter impositivo em que a Constituição obriga o legislador a expedir comandos normativos[14].

Quando a Constituição determina ao legislador que tenha uma conduta positiva, com a elaboração de legislação que garanta a eficácia da norma constitucional, e este se omite, tendo, então, conduta negativa, configura-se a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total ou parcial, na hipótese de descumprimento incompleto do mandamento constitucional.

3.ª) Nesta terceira hipótese a ser analisada, o legislador cumpriu o mandamento constitucional. Então, a eficácia da norma constitucional agora é plena, novamente vinculando as futuras legislações, impedindo eventual tentativa de descriminalização e, caso exista lei nesse sentido, será considerada inconstitucional, por ser incompatível com a obrigação constitucional de incriminação.

[1] Questões fundamentais do Direito Penal revisitadas. São Paulo: RT, 1999. p. 62.

[2] Filosofia do Direito. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 507-511.

[3] PAGLIARO, Antonio. Principi di Diritto Penale: Parte Generale. 6.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 1998. p. 229.

[4] Derecho Penal: Parte General. 3.ª ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1998. p. 91.

[5] Apud COSTA ANDRADE, Manuel da. Consentimento e acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1991. p. 37.

[6] Apud COSTA ANDRADE, Manoel da. Op. cit. Consentimento e acordo em Direito Penal. p. 39.

[7] Apud COSTA ANDRADE, Manoel da. Op. cit. Consentimento e acordo em Direito Penal. p. 39.

[8] Op. cit. Consentimento e acordo em Direito Penal. p. 41.

[9] Op. cit. Consentimento e acordo em Direito Penal. p. 23.

[10] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2.ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. p. 1272-1273.

[11] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 1276.

[12] Corte Constitucional, 5 de junho de 1978, n. 71, Giur. Cost., 1978, p. 602. Apud MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso di Diritto Penale. 2.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 1999. vol. 1, p. 353.

[13] No sentido do texto: Angione, Bricola, Fiandaca, Nuvolone, Musco, Pagliaro, todos referidos e analisados por MARINUCCI-DOLCINI. Op. cit. Corso di Diritto Penale. p. 344-356.

[14] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 6.ª ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 576.

* Gianpaolo Poggio Smanio
Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP; Professor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus; Promotor de Justiça de São Paulo

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