A sensação mais forte que tenho tido desde que se iniciou a atual crise política, há seis meses, é a de estar vivendo num país às avessas, onde, a cada dia, encontra-se imensa dificuldade para distinguir a verdade da ficção ou separar os fatos reais de suas inúmeras versões. É como se a sociedade estivesse realizando um exercício de fuga da realidade. Fuga diante da verdade.
Uma torrente de denúncias corrói biografias políticas, lançando graves suspeitas sobre pessoas e instituições, e estas não reagem. Procuram apenas interagir com o território cada vez mais irreal que as cerca. Denúncias são cabalmente comprovadas. Provas testemunhais emergem a toda hora, a demonstrar que os fatos denunciados realmente aconteceram. Mas os implicados, os denunciados, insistem em dar vazão a seu grito de guerra: “queremos provas materiais. Onde estão os documentos para comprovar cabalmente a nossa culpa?” Como se fosse possível juntar a dinheirama da corrupção e encontrar registradas em cartórios as provas materiais dos crimes. Dessa forma, a mentira termina por ocupar o lugar da verdade, embalando o universo político e institucional com a embalagem da ficção. As mentiras em série acabam banalizando os depoimentos, amortecendo as declarações, pasteurizando os conteúdos e nivelando os atores. O resultado é trágico: as denúncias não têm mais peso, não geram impacto. Os escândalos sucessivos não chocam mais as pessoas. Tudo parece normal.
E, no fluxo dessa onda de corrosão cívica, a alma nacional vai perdendo a sensibilidade. Quando uma Nação confunde a excepcionalidade com a normalidade, a transgressão com a norma, corre o risco de submeter seu povo a um gigantesco processo de anestesia social. O governo, por sua vez, torna-se insensível às críticas. Refugia-se em um universo artificial, isolado das denúncias e das más notícias. Cria uma realidade paralela, desenvolvendo uma linguagem mítica e utópica, como forma de suplantar a dura realidade dos fatos. Imagina-se protegido numa redoma, acreditando apenas na versão oficial que ele mesmo plasmou. Enquanto navega nos sonhos, os espaços contaminados da administração federal continuam impunes. É deprimente observar os personagens centrais dessa tragicomédia desfilando arrogância pelos palcos da impunidade. Quando um cidadão tem o desplante de dizer, numa Comissão Parlamentar de Inquérito, que suas declarações, publicadas em revista de circulação nacional, não têm qualquer validade porque estava bêbado no momento em que as prestou, francamente, é para se concluir que o país assiste a um espetáculo de irresponsabilidade. Nunca se viu na história contemporânea mais recente tanto desatino, tanto deboche, tanto desprezo pela opinião pública.
Cabe perguntar, como fez Cícero no senado romano: até quando abusarão de nossa paciência? Até quando suportaremos esse espetáculo de desrespeito aos valores morais de nosso povo? E até quando o Presidente Lula, investido da autoridade que lhe foi conferida pelas urnas, permanecerá nessa atitude impassível e insustentável de negar os fatos mais evidentes? Como o presidente pode formular uma equação impossível de ser concebida? Ao mesmo tempo execra as faltas cometidas e defende o ideário ético de seus companheiros faltosos?
Felizmente, pelo menos até agora – e isso é outro motivo para espanto – o Brasil não parou. Os brasileiros continuam a trabalhar. Apesar de tudo, a sociedade avança. O Brasil real continua produzindo as riquezas necessárias para que a economia se mantenha de pé, sem se contaminar com a perigosa apatia que se abate sobre o mundo político. Muitos reconhecem que a economia está descolada da política. Essa tem sido, até agora, a nossa sorte. Mas não é possível crer que tal situação possa perdurar indefinidamente, nem isso seria desejável. Não existe possibilidade de se fazer com que o Brasil ingresse num ciclo positivo de desenvolvimento sustentado sem uma firme atuação da esfera pública na definição de prioridades, na elaboração e implementação de projetos e programas.
Urge reunificar as esferas da política e da economia. É no âmbito político, da esfera pública, que se devem travar os grandes debates sobre os rumos do país. Se a política não consegue cumprir seu papel mais importante, só se pode esperar o descrédito crescente sobre a atividade pública. O ambiente de descalabro que contamina o sistema político precisa ser urgentemente depurado. Todas as denúncias devem ser rigorosamente apuradas. As lideranças hão de chegar a uma interlocução capaz de revitalizar a agenda parlamentar, fazendo um esforço para que os interesses partidários sejam recolocados no momento adequado com vistas ao cenário de 2006. O presidente da Republica, do alto de sua autoridade, tem de assumir postura pró-ativa, evitando permanecer estático e a reboque da crise. Que cada um assuma suas responsabilidades, lembrando que os deveres são maiores para aqueles que detêm maior poder. Urge resgatar os valores republicanos, a partir do respeito aos compromissos da representação popular.
Ramez Tebet
Senador (PMDB-MS), foi presidente do Senado e presidente da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE)