O caciquismo e a cartolagem na Ordem dos Advogados do Brasil

Raul Haidar*

Porque democracia é o sistema político em que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, parece-nos que a entidade maior dos advogados, – a OAB – precisa urgentemente de uma reforma que a transforme numa sociedade efetivamente democrática.

Assim, a primeira mudança há de ser feita no processo eleitoral da entidade, ainda preso a uma sistemática anacrônica, onde os advogados são obrigados a, em pleno século 21, votar em “chapas”, no mais das vezes formadas em reuniões sigilosas, como se a OAB fosse uma espécie de “igrejinha” ou “ação entre amigos”, onde cargos e posições são repartidos entre os seus partícipes.

Ora, a Advocacia representa hoje uma das mais expressivas instituições que compõem a estrutura de poder do País. Possui tal “status” de componente do poder, na medida em que a Constituição Federal lhe outorga legitimidade jurídica suficiente para, por exemplo, propor ação direta de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal, o mesmo tipo de legitimidade que se atribui ao presidente da República, às Mesas dos diferentes níveis do Legislativo, aos Governadores e aos partidos políticos.

A nossa entidade não é apenas um órgão de organização, fiscalização e disciplina profissionais. Sua presença tem sido cada vez mais marcante em todos os acontecimentos nacionais e sua intervenção tem sido decisiva nos momentos mais controvertidos e difíceis da história nacional. Não só participa dos grandes debates da Nação, mas com muita propriedade quase sempre os promove, os encaminha e mesmo os decide.

Apesar desse enorme poder, infelizmente, ainda há quem imagine que a OAB possa ser equiparada ao grêmio estudantil do ginásio do Estado onde eu estudei, a uma escola de samba do terceiro grupo ou ao sindicato dos camelôs, entidades que adotam o mesmo sistema de “chapas” através do qual os advogados escolhem seus dirigentes.

Como ainda neste ano teremos eleições na OAB, parece-nos adequado refletir sobre a necessidade de que esses equívocos sejam corrigidos. Inicialmente, analisando os inconvenientes do sistema de “chapas”, o primeiro dos quais é a própria maneira até aqui adotada na sua formação, que viabiliza a eleição de conselheiros que efetivamente não vivem da profissão.

Indicados para participar das eleições em virtude de cargos públicos que exercem e não em decorrência da sua atividade enquanto advogados, algumas pessoas acabam ingressando no Conselho sem que tenham conhecimento das dificuldades que são enfrentadas no cotidiano da profissão.

Ora, não parece razoável supor que ilustres e honrados professores, eminentes funcionários públicos e mesmo bem sucedidos empresários em outras atividades (donos de imobiliárias e escritórios de contabilidade, por exemplo) possam encaminhar assuntos e resolver problemas que afligem aqueles que vivem as agruras da advocacia enquanto profissão liberal.

De igual forma, a participação cada vez maior de integrantes de gigantescas e prósperas bancas de advocacia no Conselho da OAB representa uma injusta e desproporcional subordinação de uma classe em sua grande maioria empobrecida a uma direção no mais das vezes preocupada apenas com a “pompa e circunstância” dessas mega-organizações profissionais, algumas vinculadas a bancas internacionais, cujos interesses estão muito além das rotinas, vicissitudes e dificuldades dos advogados que tentam sobreviver em pequenos escritórios. Vê-se, aqui, de certa forma, o mesmo fenômeno que se verifica em certas atividades comerciais, onde, por exemplo, grandes hipermercados estão eliminando as mercearias.

Se no comércio o gigantismo das grandes redes varejistas acaba dominando mercados, impondo regras de mercado e desnacionalizando a economia, verifica-se que o predomínio das grandes bancas de advocacia nos Conselhos da OAB pode instituir mecanismos de ampliação de poder que dificilmente poderão ser controlados, com todas as suas óbvias conseqüências de natureza aética: tráfico de influência, facilitação do nepotismo, mercantilização da advocacia, politização excessiva da entidade, etc.

Também precisa ser de alguma forma abandonado o “critério” de formação de chapas a partir de indicações de antigos conselheiros, muitos dos quais já deram importantes contribuições à Advocacia, mas que não possuem de forma alguma qualquer ascendência sobre seus colegas.

Dessa forma, chegam a soar ridículas recentes notícias segundo as quais diversos pré-candidatos iriam definir seus projetos eleitorais na OAB após a manifestação de determinadas lideranças.

O verdadeiro advogado é, pela própria essência da profissão, um líder. Aquele que se proponha a disputar o voto de seus colegas para trabalhar em prol da classe, deve ter suficiente capacidade de liderança para prescindir da benção de qualquer pessoa. Só pode ser candidato quem tenha demonstrado que efetivamente é advogado militante, que vive apenas da profissão, e que, pela sua capacidade profissional, pela sua honorabilidade e pelo seu destaque entre os colegas, mereça ser , de fato, Conselheiro da OAB.

Indicações de candidatos feitas apenas em função da vontade de pequenos grupos de pessoas, representam uma lamentável prática do velho coronelismo da política brasileira, onde “caciques” regionais resolvem impor ao povo, iletrado, inculto, subserviente, os candidatos que melhor representem os interesses dos indicadores. Da mesma forma se faz nos clubes de futebol, onde os conchavos de “cartolas” quase sempre impõem dirigentes que muitas vezes apenas representam as velhas oligarquias, os antigos “esquemas” que objetivam perpetuar administrações com nenhuma transparência e cujos chefetes não prestam contas a ninguém.

Se o “caciquismo” e a “cartolagem’ tanto infelicitam a política partidária e o futebol do Brasil, é trágico, cômico e ridículo, que pretendam instalar-se numa entidade democrática e séria como a OAB.

Trágico, porque, se bem sucedida a tentativa, estaríamos colocando a última trincheira da cidadania a serviço do atraso, da mesquinharia, do clientelismo, do nepotismo, da ignorância.

Cômico, porque advogados não são iletrados, incultos e subservientes. Não precisamos pedir a “benção” do “cacique”, beijar a mão do “coronel” ou bater palmas para “cartola”.

Ridículo também é imaginar que o destino de mais de meio milhão de profissionais universitários, no País todo, ou de mais de 200 mil neste Estado, possa estar na dependência de meia dúzia de iluminados que, cometendo o pecado da soberba, imaginam-se melhores que todos os seus colegas.

As próximas eleições da OAB devem representar um rompimento definitivo com essa estrutura arcaica de poder que é o sistema de “chapas”. Ora, um sistema eleitoral que elege pessoas que muitos eleitores não conhecem, não tem qualquer aspecto de coisa democrática. O poder não vem de quem vota, mas dos que, em conchavos e acertos misteriosos, formam as tais “chapas”, com critérios que não se relacionam exclusivamente com o mérito dos indicados ou com a sua efetiva dedicação à profissão.

Por outro lado, “chapas” representam meros agrupamentos, fechando as portas da entidade para pessoas de talento, capacidade e seriedade que deixam de ajudar a grandeza da Profissão apenas porque tiveram o azar de pertencem a um outro “grupelho” que, por esta ou aquela razão, perdeu o pleito.

Seria muito mais produtivo para todos que o Conselho fosse formado por pessoas das mais diferentes tendências e orientações. Esse seria um Conselho que espelharia a verdadeira advocacia, que não é feita só de grandes escritórios, de ilustres professores, de altos funcionários públicos ou de honrados descendentes de antigos e respeitados magistrados…

A OAB não é e não pode ser equiparada a um sindicato, a um clube esportivo ou a uma confraria de iluminados ou iniciados. Tampouco é uma capitania hereditária, uma fazenda que se possa lotear ou um condomínio fechado.

Nas próximas eleições será indispensável uma renovação total da entidade. As atividades do Conselho exigem dedicação, determinação e sensibilidade. Os advogados estamos sendo vítimas da concorrência desleal, do desrespeito e do desprezo de governantes cada vez mais medíocres, de um judiciário cada vez mais encastelado nas suas torres e mesmo de um sistema sócio-econômico que nos empurra para o empobrecimento e a insignificância.

Precisamos de novas lideranças, de um Conselho mais jovem, que melhor se identifique com o perfil da advocacia atual, que adote transparência total na administração da entidade, que não admita perseguições ou favoritismos, enfim, que se afaste desses nefastos meandros do caciquismo e da cartolagem…

Raul Haidar é advogado e jornalista em São Paulo

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