Autor: Abhner Youssif Mota Arabi (*)
Em outubro de 2016, em votação bastante acirrada, o Supremo Tribunal Federal assentou a inconstitucionalidade de lei cearense que regulamentava a prática da vaquejada no Estado. Entendeu-se, na ocasião, que o direito ao exercício de práticas culturais não pode se dar sem a devida proteção à fauna, já que decorre explicitamente do texto constitucional a vedação de “práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (artigo 225, VII, da CRFB/88).
Para além do mérito da tese em si, o fato é que tão logo decidido o caso, intensificaram-se iniciativas legislativas no Congresso Nacional para autorizar e regulamentar, em todo o país, o exercício da referida prática cultural. Mais especificamente, aqui se destaca a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 50/2016, que teve sua tramitação iniciada junto ao Senado Federal, pela qual se propõe acrescentar um novo parágrafo ao artigo 225 da CRFB/88, dispondo que “Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as manifestações culturais previstas no § 1º do artigo 215 e registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, desde que regulamentadas em lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos”. Ademais, em 29/11/2016, foi publicada a Lei 13.364, que eleva o rodeio, a vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural imaterial.
Como em outras ocasiões, tais ocorrências revelam uma reação do Poder Legislativo frente a pronunciamento judicial do Supremo Tribunal Federal quanto ao sentido e alcance de dispositivo da Constituição da República. Reabre-se, assim, interessante discussão: a quem cabe a última palavra sobre a Constituição? O tema já foi mais detidamente estudado em obra específica[1], mas aqui são destacadas algumas considerações sobre o caso específico da “PEC da Vaquejada”, bem como da Lei 13.364/2016.
Inicialmente, após o célebre debate Kelsen x Schmitt travado no início do Século XX quanto a quem caberia a competência para o exame de compatibilidade entre a Constituição de um país e suas leis infraconstitucionais, pode-se afirmar que nos modelos hoje existentes consagrou-se o controle de constitucionalidade na existência de uma jurisdição constitucional, exercida por órgãos integrantes do Poder Judiciário. Nessa linha, no modelo brasileiro, atribui-se ao Supremo Tribunal Federal o papel irrenunciável da guarda e defesa da Constituição, como esta mesma bem assegura (artigo 102 da CRFB/88).
Em razão de tal previsão, não raro se encontra a afirmação de que ao Supremo Tribunal Federal cabe pronunciar a última palavra sobre a interpretação da Constituição. Entretanto, desde já se afirma que em nosso sistema de controle de constitucionalidade, mesmo depois de proferida a última palavra pela Corte Suprema, ainda resta espaço para a (re)ação do Poder Legislativo em matéria de interpretação constitucional. Tal possibilidade é vista como bastante salutar, uma vez que estimula o diálogo institucional quanto à interpretação e à aplicação de nosso diploma jurídico maior.
Com efeito, em vários casos recentes nota-se a ocorrência de um efetivo diálogo entre o Judiciário e o Legislativo brasileiros, no sentido de que este Poder reagiu a decisões daquele, estabelecendo traços distintos do que se tinha a partir das decisões judiciais iniciais. A propósito, cita-se como exemplo os casos da definição do número de vereadores (RE 197.917); da verticalização das coligações partidárias (ADIs 2.626 e 2.628); a discussão sobre se nos casos de migração partidária para agremiação recém-criada ou resultante de fusão o congressista levaria consigo para o novo partido a proporcionalidade de participação no Fundo Partidário e do tempo de propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão (ADIs 4.430, 4.795 e 5.105); dentre outros.
Em todos esses casos, nota-se um primeiro pronunciamento judicial quanto à compatibilidade ou incompatibilidade de um ato normativo com a Constituição e uma posterior iniciativa legislativa que se coloca em sentido oposto. Essas possíveis reações legislativas podem-se manifestar, basicamente, sob duas formas: via Projeto de Lei ou via Proposta de Emenda Constitucional. E no caso específico, tem-se as duas formas.
Quando a resposta legislativa se dá via lei ordinária (iniciativas que têm sido intituladas de “leis in your face”), nota-se uma tendência em afirmar que, apesar de não se poder retirar-lhe sua presunção de constitucionalidade, tal ato legislativo, se impugnado, será submetido a uma fiscalização mais rigorosa de sua constitucionalidade. Tal conclusão parece ser, até certo ponto, óbvia: se uma determinada lei foi considerada inválida a partir de sua apreciação constitucional, a princípio não poderia outro ato legislativo ordinário posterior alterar esse resultado, sob pena de se aceitar, por via indireta, a modificação de norma constitucional por legislação infraconstitucional.
Quanto a essa forma de reação legislativa, tem-se os exemplos da ADI 2.797 (em que eram impugnados os parágrafos 1º e 2º do artigo 84 do Código de Processo Penal, inseridos pela Lei 10.628/02) e da mais recente ADI 5.105 (grande paradigma no STF quanto à superação legislativa de decisões judiciais, em que se impugnava a Lei nº 12.875/2013 que, em sentido oposto ao que havia decidido o STF nas ADIs 4.430 e 4.795, retirou das novas legendas partidárias o acesso aos recursos do fundo e ao direito de antena). De todo modo, porém, não se pode já de início atribuir-lhe a pecha de inconstitucional.
De outro lado, quando a atuação legislativa se dá via Emenda Constitucional, a reação parece se revelar desde logo mais legítima, afinal, altera-se o próprio parâmetro de controle. É claro que também uma Emenda pode se mostrar inconstitucional, mas, a princípio, desde que não se ofenda cláusula pétrea ou norma constitucional regente de seu processo legislativo[2], o diálogo institucional via alteração à Constituição se revela como mais legítimo meio de superação legislativa de decisões judiciais.
As iniciativas em relação à vaquejada revelaram-se nas duas formas elencadas: tanto via Proposta de Emenda à Constituição[3], como via lei ordinária já aprovada. Se aprovada a PEC, certamente se reacenderá ainda mais o debate sobre os limites de superação legislativa a juízos de constitucionalidade emitidos pelo Supremo Tribunal Federal, bem como sobre a quem cabe a última palavra sobre a Constituição. Em todo caso, não se pode defender o monopólio da defesa do texto constitucional ao STF, assegurando que também ao legislador se atribui a capacidade para interpretá-lo, ainda que em sentido diverso do que assentado pelo Supremo.
O que esses casos parecem sugerir é que, mesmo depois de proferida a última palavra pelo Supremo Tribunal Federal sobre a interpretação da Constituição, resta espaço para a (re)ação do Poder Legislativo, que efetivamente tem (re)agido nos casos em que foi de seu interesse se manifestar nesse sentido. Desse modo, no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, mesmo se caracterizando como um modelo forte[4], a última palavra do STF não encerra por completo a discussão constitucional, visto que tal decisão não vincula a futura atividade legiferante, a qual pode, nos limites da Constituição e conforme exemplificado pelos casos acima citados, inverter a posição originária adotada pelo tribunal. Preserva-se, assim, a separação dos poderes, incentiva-se os diálogos institucionais e evita-se o sufocamento do Legislativo pela atuação do Judiciário.
Aliás, diante desse cenário, o modelo brasileiro parece estar em um meio termo parcimonioso: nem se tem um sistema como o canadense, no qual, é relativamente simples a superação de um entendimento judicial[5]; nem um como o americano, no qual as respostas legislativas às decisões da Suprema Corte são dificultadas pelo complicado processo de reforma constitucional e pela característica de descentralização do poder político no sistema federativo lá existente. Em um cotejo entre os possíveis extremos, se o único modo de interação institucional entre Legislativo e Judiciário for a edição de emendas constitucionais, poder-se-á ter um quadro tendente à supremacia judicial. Por outro lado, se as decisões de uma Suprema Corte puderem sempre ser superadas pelo processo legislativo ordinário, aproximar-se-á de um modelo de alta flexibilidade constitucional e de supremacia legislativa. O modelo brasileiro, embora mais próximo do primeiro cenário, parece estar situado entre estes extremos, o que se entende ser institucionalmente positivo.
Primando por uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição [6], o controle de constitucionalidade deve ser também parte da interação institucional que pode se dar entre os Poderes, sendo importante ao debate democrático. Muitas vezes, a atuação judicial é importante, por exemplo, para provocar a manifestação legislativa sobre determinado assunto, instigando a introdução de determinados temas na agenda do Legislativo.
Embora não exista entre nós a previsão formal de dispositivo semelhante à notwithstanding clause canadense, fica claro que há no sistema brasileiro mecanismos que possibilitam a superação legislativa de decisões do STF. Com efeito, o controle de constitucionalidade não deve se apresentar como um veto sobre as políticas da nação, mas como forma de garantia dos direitos assegurados pela Constituição, procurando conciliá-los com o cumprimento dos programas políticos, sociais e econômicos formulados pelos outros Poderes e com as vontades majoritariamente expressadas.
Autor: Abhner Youssif Mota Arabi é assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal.